APESAR DE NÃO HAVER JANELAS ABERTAS no Setor B, a penumbra que encobre o local é cortada por pequenos feixes de luz que escapam pelas frestas. Não há muitas lâmpadas funcionando por ali, mas desconfio que a escuridão não seja problema para vampiros.
Passos explodem contra as paredes do corredor. Byrn puxa o meu braço bruscamente para dar passagem aos cinco soldados com armaduras negras e capacetes, segurando suas armas e marchando ritmicamente. Meu coração dá um salto diante da autoridade deles no instante em que os percebo, pois a simples presença é alarmante, como se representassem perigo.
Não tenho medo dos vampiros; ninguém tem. Eles cuidam de nós e protegem o que nos é precioso: nossas famílias. Apenas não sinto confortável quando os vejo em grupo, receio que signifique uma movimentação da defesa e que alienígenas estejam por perto, atacando locais próximos de Bawarrod.
Byrn e eu ficamos paradas, abaixamos um pouco nossas cabeças em sinal de subordinação e esperamos que eles passem por nós. O soldado da frente se difere um pouco dos outros e percebo que sua armadura possui uma protuberância maior na região do tórax. Seios. É uma mulher. Essa é a primeira vez que vejo uma entre soldados.
Sabe, antigamente, vampiros moviam-se apenas durante a noite e logo foram apelidados de demônios, não apenas por seus hábitos notívagos, mas por seus olhos brilharem como os de animais predadores na escuridão. A luz do sol era uma grande desvantagem para suas táticas, no entanto, quando a guerra contra alienígenas se intensificou, o exército passou a usar essas armaduras que protegem não apenas dos danos da batalha como também dos raios UV. Eles são ultrassensíveis à incidência solar.
— Os soldados são os que mais precisam de sangue, se você tiver o sangue forte, pagarão bem. — Byrn cochicha.
— Mesmo? — pergunto quase sem voz só de imaginar que um desses cinco soldados possa querer meu sangue.
— Eles usam energia vital em suas magias, precisam de sangue para repor ou morrerão. — Ela ergue a cabeça e me puxa de volta para o corredor. O pequeno batalhão faz a curva à direita, todos juntos, como robôs programados e sem identidade. — Basicamente dão suas vidas quando usam magia para nos proteger, nada mais justo do que darmos as nossas como gratidão.
— Você acredita mesmo nisso? — pergunto um pouco desconfiada. — Parece um pouco controverso.
— Não há nada de muito controverso. — Byrn abre bem os olhos azuis com deslumbre. — É uma troca de favores.
— Somos escravos em condições precárias e eles vivem no luxo, como isso poderia ser uma troca?
— É como um trabalho. Eles nos protegem, nós pagamos com sangue.
— Para algo vital, o sangue é pouco valorizado por aqui. — Eles pagam muito pouco. Nessa equação, nossas vidas não valem nada.
— Eles analisam o seu sangue e determinam em qual escala está. Fazemos exames periódicos para determinar o preço justo e garantir a qualidade do sangue. É algo lógico. — Byrn dá de ombros enquanto caminhamos, virando no corredor à esquerda. Nossos passos são bem mais silenciosos que os que ouvimos quando os soldados passaram, mas minha galocha apita contra o assoalho.
— Se são os vampiros que determinam o valor mínimo do quanto têm de nos pagar, é claro que nunca será justo. Eles sempre determinarão um valor que seja bom para eles, mesmo que seu sangue valha mais.
— Ai, Jay! — Byrn coloca a mão na testa, rindo. — Você pensa cada coisa maluca.
— Não é maluca! — Faço bico, emburrada. Desisto de provar meu ponto.
Para mim é claro que os vampiros controlam o sistema monetário e fazem o que querem com ele, determinando o valor do nosso sangue e da nossa mão de obra. Somos reféns disso. Ou entramos no esquema, aceitando o valor imposto, ou seremos ostracizados. Não parece muito justo!
— De qualquer forma! — Byrn revira os olhos azuis e abana a mão, espantando minhas ideias. — Você já tem um vestido para amanhã?
— Vestido?! — Entro em pânico e olho para Byrn com espanto. Ela faz que sim com um aceno de cabeça e um sorriso no rosto. — Eu mal tenho roupas limpas.
— E aquele seu vestido roxo, o que você usou ano passado no Festival da Colheita?
— Vendemos. — Balanço a cabeça de um lado para o outro. — Mamãe ficou anêmica e seu sangue perdeu valor, ela começou a doar menos e tínhamos que fazer algo para pagar as taxas de moradia antes que nos expulsassem.
— Oh, Jay! — Byrn coloca as duas mãos na boca, assustada. Suas sobrancelhas negras e grossas se comprimem quando ela percebe minha real situação. — Por que não disse que as coisas estavam tão críticas?
— Ah, sei lá. Acho que agora que não temos mais o que vender é que ficou crítica de verdade. — Comprimo os ombros e mordo a boca, soltando todo o ar dos meus pulmões em sinal de derrota. — Se eu não doar, mamãe pretende vender o apartamento para que eu e meu irmão possamos viver com a minha tia e tio, mas... Eles não aguentariam sustentar todos nós e eu acabaria tendo que doar ainda assim.
— Droga, Jay, você devia ter avisado! Por isso Lyek está te passando comida às escondidas, você não tem nem o que comer?
— Está difícil, mas Nytacha ganhou uma cesta de frutas e dividiu conosco. Deu para segurar por uns dias — confesso desviando o olhar da minha amiga. — E tia Lilane tem dividido seu jantar. Você sabe, a lavanderia é um trabalho confortável, mas não dá muito dinheiro.
— Isso é verdade. Bem, então você não tem tempo a perder. Tem que aproveitar os nobres amanhã à noite e precisa do seu certificado para ser uma doadora! — Byrn começa a andar mais depressa. — A primeira doação é muito valiosa, esses vampiros adoram carne fresca, e você tem que tirar o máximo proveito disso!
— Como farei tal coisa?
— Eu vou te ajudar! — ela brada, empinando o nariz fino. — Venha, é aqui que você faz sua inscrição.
Byrn para na frente de uma porta de madeira sem qualquer identificação; eu nunca acharia esse lugar sem me perder. Respiro fundo e tomo coragem para adiantar-me e abri-la.
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Preencho uma pilha de papéis no balcão e Byrn auxilia a responder com paciência. São perguntas sobre tudo, desde a minha alimentação aos hábitos de limpeza. Apesar de achar uma invasão à privacidade, procuro compreender que essas podem ser questões de saúde e que influenciem no valor do meu sangue. Valorizo todos os pontos.
Junto todas as folhas, batendo na superfície do balcão para alinhar, e chego perto da mocinha sentada em uma cadeira de madeira. Ela é humana e ergue os olhos escuros em minha direção, interrompendo o lixar de unhas.
— Terminou, meu bem?
— Sim... Ahn... — Olho para seu crachá do setor e tento ler seu nome. — Arimá.
— Pode esperar que logo virão chamá-la. — Ela pega as folhas da minha mão e joga por cima da mesa, olhando rapidamente, dá uma carimbada e as passa para uma pasta arquivo. Só então percebe que ainda estou ali, parada na frente dela. — Posso fazer mais alguma coisa por você?
— Demora muito para sair o certificado?
— Quarenta e oito horas.
— Tudo isso?! — Essa não! Vejo os meus planos escorrerem por água abaixo.
— Por que tanto tempo? Quando fiz o meu ficava pronto no mesmo dia! — Byrn desencosta da parede e se aproxima.
— Impossível. O avaliador não faz exames perto de festas da nobreza.
— Ou seja, eles impedem que novos doadores vendam sangue para os de fora? — Cruzo os braços. Como isso poderia ser justo? Claro que não é!
— Você vai ter que esperar — Arimá suspira. Byrn murcha os ombros e, derrotada, descruzo os braços,.
— Ela não pode esperar, está numa situação crítica. — Byrn estreita os olhos azuis. Olho para ela em pânico, num silencioso pedido para que ela pare de dar detalhes. Afinal, pode dar a ideia errada de que eu topo qualquer negócio, mesmo um preço abaixo do mercado. Claro que toparia, estou desesperada, mas não preciso anunciar!
— Eu queria ajudar, mas não posso fazer nada. — Arimá volta a lixar as unhas. De repente, ela para e olha para mim, como se lembrasse de algo só agora. — A menos que...
— “A menos quê”? — Byrn se inclina na mesa.
— A menos que você se inscreva para uma vaga fixa, não como autônoma. — Arimá solta a lixa em cima da mesa, remexe em suas gavetas e pega uma pilha de folhas amarelas.
— Um contrato fixo? Como funciona? — Já interessa. Se houver qualquer chance de eu conseguir esse certificado hoje, vou tentar.
— Você receberá um salário mensal e doará apenas para quem te contratou até o fim da sua vida. — Ela explica. — Você não vai poder se oferecer para os nobres como autônoma, mas tem garantia mensal de pagamento.
— Uau, isso parece ótimo! — Byrn se anima e um sorriso enfeita o seu rosto. — Dê mais uma ficha dessas, então!
— Ah, só tem uma vaga atualmente. — Arimá estende a pilha de papel amarelo. — É um bom negócio, mas é relativo, vai depender de quanto tempo você se mantém saudável para doar. Alguns contratantes são mais exigentes que os outros.
— Ainda assim parece um bom negócio. — Byrn pega a pilha.
Até desanimo um pouco e abaixo a cabeça, mas tento não ser pessimista. A festa dos nobres não é a primeira e nem será a última, então posso tentar de novo da próxima vez. Terei que me contentar em fazer a primeira doação para algum soldado.
— Melhor ser você, Jay. — As folhas amarelas alcançam meu campo de visão. Levanto a cabeça e Byrn está sorrindo.
— Quê? Tem certeza?
— Absoluta. Você precisa mais que eu. Quando houver mais alguma vaga, venho para me candidatar. — Ela dá de ombros. — É sua grande chance. Os nobres pagam mais que os soldados e o pagamento é garantido.
— Será que não é uma armadilha? — Ergo uma sobrancelha, desconfiada.
Arimá dá uma risadinha, enquanto volta a lixar as unhas.
— Você sabe como é lá embaixo? Muitas pessoas balançam seus certificados na cara dos soldados e se oferecem, é um verdadeiro leilão de sangue, mas o preferido é sempre quem oferece o melhor sangue pelo menor pagamento . — Ela explica como se debochasse da situação. Algo no jeito que ela diz, faz parecer como um antro de prostituição. — Se eu fosse escolher, certamente preferiria os fixos.
— E por que você não se oferece para uma vaga, então? — indago. Arimá soa como uma vendedora, valorizando um produto a níveis irreais, mas desconfio quando o vendedor não usa o produto que vende.
— Minha irmã tem um fixo há dois anos, e o que pagam a ela dá para a família inteira. Não preciso doar, só trabalhar para justificar minha falta de doação.
— Uau. — Byrn resfolega e chacoalha as folhas amarelas. — Jay, não perca essa, pode ser a solução da sua vida.
É realmente uma boa proposta, e se o que dizem é verdade, acho que não posso perder essa chance. Pego as folhas.
— Certo. E para quem é a vaga?
— São informações confidenciais. Não aparece no sistema. — Arimá lixa as unhas.
— Imaginei que fosse. — Finjo chateação e aproximo-me do balcão para preencher as folhas novamente.
Na realidade, basta pensar um pouco: o contrato é vitalício, ninguém o abandona e provavelmente nem possa abandonar, dura enquanto você puder doar, é saudável e não tem doenças, ou enquanto é vivo. Pensando de forma lógica: qual foi o nobre que perdeu um doador recentemente? Exato, o “Glutão”.
Um ano de doação não vai ser suficiente para tirar minha família da miséria, então precisarei dar um jeito de sobreviver mais tempo. O maior tempo possível. Agora entendo o que Byrn quis dizer com tirar a maior vantagem possível da primeira doação.
É DIFÍCIL PARA UMA GAROTA QUE está passando por necessidades financeiras graves se conformar com o tipo de luxo em que vive a família de Byrn. Ela, sua mãe e seu pai são doadores. O apartamento em que entrei é duas vezes maior que o meu, a sala decorada e aconchegante, limpa, com móveis de madeira e carpete marrom cinzento. Um lugar silencioso e que cheira a produto de limpeza, uma das coisas mais difíceis de conseguir hoje em dia, além de comida. DEPOIS DE MAIS UM DIA DE TRABALHO na lavanderia, Byrn deu mais uma sacola com dois potes, contendo refeições para minha mãe e meu irmão. Eu a abracei forte. Quando puder, vou retribuir todo favor que ela fez.Tenho uma sensação de dívida terrível com todos os meus amigos, especialmente Lyek e Byrn, que têm me auxiliado sem que eu precise pedir.(5) Sociedade dos Vampiros
O SALÃO É VERDADEIRAMENTE SUNTUOSO e digno de um castelo cheio de pompa. O teto é branco, com pinturas douradas e três grandes lustres de cristais se projetam para baixo. Há muitas portas, brancas e douradas, separadas por pilastras redondas, todas elas fechadas, lacradas, quase sinto como se estivesse sem ar. O chão é de madeira, os saltos explodem, mas a música é alta e as vozes se sobrepõem umas às outras de uma maneira instigante e até familiar. É uma festa normal, como se eu apenas estivesse na época errada. Garçons passam bem vestidos, oferecem bebidas e docinhos dignos d
UM RAIO DE LUZ INCOMODA MEUS OLHOS, despertando-me. Meu corpo inteiro dói como se eu tivesse sido atropelada por um caminhão. Não sei exatamente quanto tempo minha mente vacilou, mas a impressão é de que quase morri. Consigo enxergar os lampiões da saleta e percebo que o vampiro ainda me abraça e entorna meu sangue como um elixir. Se não parar, vou morrer.Seguro em seus o
A PORTA ESTÁ TRANCADA, tento girar a maçaneta e ela não cede. Dou socos, talvez mamãe esteja dormindo exausta, mas não escuto nem Johin.Aos poucos, a irritação da porta ter sido deixada trancada como se esquecessem de mim dá lugar à preocupação. E se mataram minha família? Posso ter feito algo muito grave ontem, algo que tenha irritado algu&eac
— NÃO ME INSULTE NA FRENTE DOS NOBRES. — Devon puxa um lenço vermelho do bolso da frente do paletó e estende para mim. Desde que nos encontramos, é a primeira vez que ele dirige palavras a mim.Pego o lenço macio, de qualidade, e seco os olhos, tentando não borrar a maquiagem. Olha, um gesto de bondade! Quase me convence que é um lorde, se eu não conhecesse o l
— JAYLEE, SAIA DO BANHO E VÁ BUSCAR sua prima! — Minha mãe espanca a porta do banheiro do meu quarto. — Você vai se atrasar!Desligo o chuveiro e me enrolo com o robe azul claro. Abro a porta, liberando o vapor do banho e encaro minha mãe, de saia cinza e blusa preta, os cabelos castanhos escuros presos em um coque, de brincos e bochechas coradas. Sabe quanto tempo eu não a ve
Um zumbido constante maculava a audição. Com as roupas manchadas de sangue, invadi a arqueria gritando, chamando por ajuda. Román estava lá com Devon e mais alguns nobres da casa Lunysum, treinando arco e flecha. Não sei se consegui pronunciar as palavras direito, mas me acompanharam ao local do incidente.Nytacha estava deitada com os olhos travados, como se fossem de vidro, focando no nada,