(7) Au Au

UM RAIO DE LUZ INCOMODA MEUS OLHOS, despertando-me. Meu corpo inteiro dói como se eu tivesse sido atropelada por um caminhão. Não sei exatamente quanto tempo minha mente vacilou, mas a impressão é de que quase morri. Consigo enxergar os lampiões da saleta e percebo que o vampiro ainda me abraça e entorna meu sangue como um elixir. Se não parar, vou morrer.

Seguro em seus ombros fortes, sentindo toda a rigidez de seus músculos. Empurro Devon com força para me soltar, tenho que chutar o corpo dele inclusive. Ele cambaleia com a boca cheia de sangue e corro para a porta, sem olhar para trás. Abro com violência e atravesso o salão correndo, com os olhos de todos para cima de mim, até que alcanço a porta principal, segurando meu pescoço. Não dói, mas o vestido de Drarynina está com uma mancha vermelha que escorre por entre meus seios e se alastra pela barriga.

Atravesso a porta de entrada, desviando de alguns carros que estacionam e andam devagar, sendo conduzidos, enquanto alguns nobres ainda chegam à festa ou vão embora. Corro pela escuridão pelas ruas de paralelepípedo e paro apenas quando alguém segura meu pulso com força. Giro e encaro Lyek.

Jay?

Lyek! — berro e me abraço a ele, tremendo de medo e chorando.

O que você está fazendo aqui? Por que está vestida desse jeito? Isso é sangue?! — Ele me segura antes que eu desmaie e me tira para longe dos carros, só então percebo que estava na garagem.

●●●

Alguns momentos depois, estou mais calma, sentada no capô de um carro vermelho; acho que é um Porsche. A camiseta de Lyek está no meu pescoço, úmida de água, e me limpo do sangue com ela, enquanto Lyek suspira, olhando para o céu de estrelas que podemos ver por uma fresta na garagem.

Vou tirar você dessa, Jay. — A voz de Lyek soa longe, pensativa. — Devíamos nos casar.

Não vou abandonar minha família. — Desço do carro, negando a ideia antes que, por desespero, acabe aceitando. — Você sabe.

Sei.

E não adiantaria muito agora, guarde para alguém que realmente precisa. — Dou um sorriso de agradecimento e ele me olha com estranheza. — Obrigada mais uma vez, Lyek. — Giro para sair.

Jay — ele segura em meu braço para me impedir e seus os olhos grandes me prendem —, pensaremos em outra coisa.

É melhor eu voltar. — Aceno que sim e entrego a camiseta para ele.

Tenha cuidado. — Lyek pede e agradeço sua preocupação com outro sorriso.

Você também.

Viro para sair, mas volto, deixando um beijo em sua bochecha, a barba pinica meus lábios. Lyek abaixa a cabeça sorrindo tímido e me afasto, retornando ao caminho da entrada. A música animada escapa pelas frestas, percebo que a festa continuou sem mim. Os guardas abrem a porta para que eu retorne, o som do salão me engole e respiro fundo antes de entrar.

A princípio, ninguém me vê, mas conforme avanço pelo salão, vampiros e humanos olham para mim. A mancha de sangue no meu vestido é mais que um troféu e o exibo para mostrar que consegui. Se alguém duvidava, que perca as dúvidas agora. Drarynina me olha com um pouco de orgulho e uma garota com uma adaga tatuada no braço puxa a manga de Román, apontando para mim, mas ele não sorri, parece preocupado, e como só tenho visão de um de seus olhos, fica difícil saber o que ele está pensando. Do seu lado, Lady Lucretia coloca a taça de bebida na boca e ergue as duas sobrancelhas escuras. Tento fingir que não os vejo, andando calmamente pelo salão, e quando um garçom passa por mim com pães de mel, pego um e coloco na boca, mastigando como um ogro.

A porta por onde saí está fechada e esqueci de pegar a chave, mas giro a maçaneta e a encontro aberta, os lampiões ainda acesos. Fecho a porta e encosto a cabeça, respirando finalmente. Por hora, minha família está a salvo. Coloco a mão no pescoço, a mordida não dói, não tem marca saliente e arrisco dizer, sem olhar no espelho, que não ficou marca. Porém, onde as mãos de meu mestre seguraram com força, está bem dolorido.

Você é uma vergonha. — A voz de Devon atravessa o som de minha respiração, aquele equilíbrio indecifrável como um enigma difícil, mas não quero ser uma vergonha, quero ser valorosa.

Olho para o lado, ele está em pé em frente ao espelho, amarrando o laço da gravata cinza, há uma bancada com uma bacia de água e panos vermelhos. Ele é um dos homens mais poderosos de Barrawod, mas não está livre da sujeira, tanto quanto eu. De alguma forma, me sinto quase poderosa.

Perdão, senhor. Achei que se corresse longe o suficiente, o senhor não viria atrás de mim. — Mordo a boca, onde está a ferida que eu mesma fiz, para não acabar rindo. É um pouco fascinante que algo tão violento quanto uma mordida de vampiro não deixe marcas e seja tão suave.

Devon não diz nada, absolutamente nada, nem parece incomodado com o que eu disse. Termina o nó de sua gravata, ajeita a barra das mangas bufantes e coloca os anéis grandes e dourados nos dedos.

Quando termina e vem em minha direção, giro e abro a porta para ele sair. Devon segura, espalmando a mão e fechando a porta com um estrondo. Fico entre seus braços, espremida como um ratinho.

Não. — Devon tem agora um sorriso de canto em seu rosto, apenas a pontinha do canino para fora. — Você não vai voltar para lá com esse vestido. Tire-o.

O quê?! — hesito.

Tire, agora! — ele grita. O som grotesco de sua voz me dá medo, meu coração acelera, ainda assim, tento não demonstrar que ele me assustou. Viro um pouco o rosto, mas não fecho os olhos diante da histeria.

Ele quer me humilhar. Devon é um general acostumado a ser reverenciado e quase nunca desafiado, não terei apreço se o envergonhar, ou ainda, se me curvar ou fugir correndo com medo. Preciso me controlar para controlá-lo.

Giro, ficando de costas, com a bochecha na porta, e empino o bumbum de uma forma que encosto nele.

Se me quer tanto assim fora do meu vestido, tire você — provoco.

As mãos dele percorrem minhas coxas e bumbum, tão quentes e sensuais que me envergonham. Devon me aperta contra a porta, sinto peso contra minhas costas. Deixo-o fazer o que quiser, me convencendo de que preciso, enquanto seus dedos percorrem a cinta-liga e sua respiração esquenta minha nuca. A ansiedade toma conta de mim, respiro mais depressa.

Você pediu. — Ele tira as mãos de mim e rasga o meu vestido, explodindo as costuras.

Dói um pouco. O vestido escorrega para o chão e Devon se afasta de mim, não muito, apenas o suficiente para que eu possa girar e ficar de frente para ele. Qual o problema desses vampiros com vestidos? Eu pretendia levar esse para Byrn!

Devon observa meu corpo, mas não encosta-se a mim novamente, é mais como quando um treinador observa os músculos de um cavalo. Ele segura no topo da minha cabeça puxando meus cabelos e me atira com força contra o chão, no meio da sala. Caio com tudo e por centímetros não bato a testa contra a mesa de centro.

Quando eu disser para você fazer algo, você faz — Devon me repreende, num tom de voz duro, mas seu rosto inexpressivo.

Sim, senhor — concordo, rangendo os dentes. Me sento com as pernas de lado, massageando meu ombro esquerdo.

Ele anda até a estante de livros, abrindo uma de suas gavetas de costas para mim. Escuto o barulho de correntes e ele retorna com uma prateada e grande, segura em meu cabelo, puxando os fios, me forçando a sentar. Meu couro cabeludo arde, já não aguento mais. Ele enlaça a corrente no meu pescoço, dando duas voltas, prendendo com um cadeado. A corrente é longa, parte está no chão e ele segura uma extremidade.

Qual o seu nome? — pergunta.

Jaylee. — Fico em pé.

Eu disse que você podia se levantar? — Ele puxa meus cabelos de novo e me atira mais uma vez contra o chão.

Ai!

Devon pisa em minhas costas com um dos pés, me mantendo no chão. Ele é muito mais forte do que eu, de um jeito que tenho certeza de que quando interrompi sua mordida, foi porque ele deixou. Agora nem consigo me mexer, com a bochecha grudada no chão.

Você não é Jaylee é um cachorro, e cachorros andam em quatro patas. Fui claro?

Sim, senhor — concordo.

Cachorros não falam, rosnam. Quando muito, latem. — Ele aperta mais a pisada nas minhas costas. — Agora lata.

Au-au. — Faço sem muita vontade.

Parece que está entediado. — Com o pé, ele alivia o peso de minhas costas e puxa meu ombro, me fazendo erguer. Fico ajoelhada, com as mãos no chão. — Não gosto de dar a mesma ordem duas vezes, então seja boazinha. Lata direito dessa vez.

Tomo fôlego, juntando a raiva que estou sentindo dele:

Au! Au!

Melhor assim. — Soa satisfeito. — Antes de irmos, tente decorar para seu bem: se um homem tentar pôr a mão em você, morda para arrancar seus dedos. Mas se for uma mulher, deixe que acaricie você e rosne, de vez em quando, especialmente se a mulher for bonita demais.

Auf! — Quis dizer “sim”.

Ele abre a porta, todo o silêncio escorre e a música da festa volta a ressoar, não aquela clássica, mas no lugar da orquestra há um DJ e o salão parece ainda mais animado, com convidados dançando na pista. Algo acontece e, portanto, a maioria para o que está fazendo para olhar para nós. Devon e seu novo cãozinho, como ele mesmo fez questão de enfatizar.

Ele me puxa pela festa, adentrando o salão, e vou acompanhando seus passos firmes e típicos de um militar. Meus sentimentos são um misto de vergonha e raiva, aliás, diria até mais que raiva. Acho que odeio Devon. Não, tenho certeza, do fundo do meu coração humilhado, eu o odeio, e tudo o que ele representa também.

O primeiro a chegar perto de nós é um nobre convidado de outra localidade, faz alguma piada a respeito de mim e desconto raivosamente em seus dedos, quase acertando uma bela dentada quando ele tenta passar a mão em meus cabelos. Devon ri, se diverte com minha encenação, e sua risada é ótima, leve, sem exageros, como quase tudo nele, ao menos no campo superficial, naquilo que ele demonstra para os outros. Uma ou duas garotas, permito que cocem minhas orelhas e até finjo que estou gostando.

Depois de me exibir pelo salão inteiro, Devon finalmente caminha até uma das poltronas do salão e se senta, me permitindo descansar os joelhos. A parte ruim é ficar com a bunda no chão frio, mas, aos poucos, a temperatura do meu corpo amacia a madeira.

Você me preocupou por um instante, Riezdra. — Kaiser Bawarrod se aproxima com uma taça de espumante em cada mão, estendendo uma para Devon, que aceita. — Belo espécime você tem aí.

Um pouquinho rebelde, mas nada que o treinamento não resolva. — Devon dá dois tapinhas na minha cabeça. Kaiser Bawarrod vem fazer o mesmo e fico em dúvida se devo mordê-lo ou não, então apenas rosno, olhando-o com firmeza e dando sinal para ele não me tocar. — Não é porque você me deu um presente que ela vá gostar de você.

Kaiser Bawarrod explode numa risada, intensa, poderosa e elegante ao mesmo tempo. Nobres, até quando defecam devem ser elegantes. Acho que Kaiser Bawarrod, o Imperador, é o único homem que fica acima de Devon, e tenho a impressão de que falam de igual para igual. Kaiser dá um largo gole no espumante, o pomo de adão protuberante se remexe enquanto ele joga a cabeça para trás.

Seja sociável hoje, Devon, dance com Lucretia. — Kaiser solta a taça em cima da mesinha de canto, perto da minha cabeça, e se afasta com um sorriso quase sádico no rosto.

Vejo Devon jogar os olhos para cima, como se estivesse de saco cheio, ou algo assim. Por acaso ele não quer dançar com Lady Lucretia? Que tipo de homem recusa dançar com a mulher mais bonita e mais poderosa da sociedade? Isso me intriga e talvez seja algo no qual eu deva prestar atenção e usar como uma vantagem. De fato, esses vampiros nos tratam como lixo ou até com tanta indiferença que, às vezes, nem percebem que existimos. Ser socialmente invisível nem sempre é algo ruim.

Fico ainda por ali, fingindo ser um cachorro mais interessado nos petiscos que meu mestre me dá, mesmo que já não aguente mais comer biscoitos ou pão de mel. Devon é um homem importante e muito procurado para pequenas conversas, mas ao mesmo tempo em que ele quase sorri, é notável sua falta de interesse ou de vontade em conversar com os nobres.

A única hora em que ele demonstra interesse em algo é quando Román passa na frente da gente, fugindo de uma garota loira de outro castelo e indo em direção à saída do salão.

Ah! — Ele acena com a mão, chamando Román, que para de andar e olha para nós com insatisfação estampada no rosto. — Onde pensa que vai?

Estico a cabeça por cima da perna do meu mestre para olhá-lo, ele desvia o olhos cinzento de cima de mim.

Qualquer lugar é melhor que essa droga. — Román responde sorrindo. Atrás dele, vejo Lady Lucretia sorrindo e caminhando até onde estamos.

Sente aqui, agora. — Devon aponta a cadeira ao lado. Como um bom soldado, Román não o desobedece, mas solta um suspiro indisciplinado e marcha em nossa direção, jogando-se contra a poltrona. — Reporte qualquer coisa da fronteira. — Devon coloca a mão na testa, pensativo.

Você sabe tudo da fronteira.

Apenas diga qualquer coisa.

Certo. — Román suspira sem compreender, mas não ousa desobedecer. — Os guardas na fronteira estão com uma ou duas dificuldades de manter o perímetro.

Devon! — Lady Lucretia dá um gritinho e chega empolgada, balançando seu vestido pomposo e cheio de panos drapeados. — Vamos dançar!

Agora não, Lucretia, estou ocupado. — Ele aponta para Román, que é obrigado a tossir para não acabar rindo. — O que você estava dizendo sobre a fronteira?

Dificuldades no perímetro. Temos que rever algumas estratégias urgentes. — Román lança um sorrisinho amarelo.

Oh, urgentes? — Lady Lucretia coloca a mão no corpo, como se lhe faltasse ar.

Muito urgente. — Román faz que sim com a cabeça.

Mas você pode passear com meu cachorro enquanto isso. — Devon estica para ela a corrente que segura. — Se você for simpática, talvez ela não morda você.

Com um sorriso de quem não conseguiu o que queria, Lady Lucretia pega a corrente, olha para mim e solta um suspiro.

Oh, bem. Vamos cachorro. — Ela empina o nariz e começa a andar, puxa a corrente no meu pescoço, me enforcando, fico de quatro para andar, quase sendo arrastada.

Vá. — Devon dá um tapa na minha bunda e olho para ele, revoltada, mas ele já desviou a atenção de mim, conversando com Román sobre mantimentos que, provavelmente, nem são necessários, puro fingimento.

Lady Lucretia me arrasta pelo salão, desfilando comigo. Se perguntam quem eu sou, ela responde, “o cachorro de Devon, estamos dando uma voltinha”, e continua pelo salão. Uma ou outra menina se aproxima, trocam palavras rápidas e até rosno para um rapaz que, além de querer mexer em mim, não tirou os olhos dos peitos enormes de Lady Lucretia.

Um nobre quebra um copo e sou obrigada a passar por cima dos cacos de vidro, não me cortam, mas um ou outro me pinica e finca no meu joelho, tenho que, disfarçadamente, passar a mão na perna para tirar.

Já estou cansada de engatinhar, de ser tocada por garotas, de rosnar quando são belas ou quando são homens, de fingir estar em fúria para morder os dedos das pessoas, quando Lady Lucretia anuncia:

Até que gosto de você. — Ela se abaixa um pouco e me afaga, penso em rosnar, mas como fiquei sabendo que ela quem mandou matar o escravo que me antecedia, prefiro aceitar o carinho. Finjo que está ótimo e que suas unhas não estão me incomodando. Quando se cansa, Lady Lucretia se levanta e me puxa. — Vamos devolver você pro seu dono.

Damos a volta completa no salão. Devon e Román ainda estão conversando quando nos aproximamos, mas Lady Lucretia apenas solta a corrente por cima dele e se joga, abraçando-o por trás.

Awm, Devon, vamos dançar. Você não pode passar a festa inteira cuidando de assuntos do exército, é para isso que você tem Román e Drarynina — choraminga, tentando conseguir sua atenção a todo custo.

Agora não. — Devon apenas desfaz o laço dos braços finos de Lady Lucretia, afastando-a. — Por que não vai dançar com Mordecai? Ele nunca recusa.

Ele tem cheiro de alho. — Lady Lucretia faz cara de insatisfação.

Devon e Román ainda trocam uma ou duas palavras sobre estratégias que não existem, ou, se existem, são desnecessárias, já que a conversa é falsa, e Lady Lucretia coloca as duas mãos na cintura, percebendo que não conseguiu a atenção desejada.

Outra coisa que Byrn vai morrer quando ficar sabendo é que Lady Lucretia definitivamente está adorando a possibilidade de se casar com o Glutão. Acho que posso dar a ela o certificado de garota apaixonada que tem os sentimentos ignorados. Pobre Lady Lucretia!

Já que você não vai me dar atenção, vou brincar com seu cachorro. — Ela se estica para pegar a corrente solta na perna dele.

Eu danço com você. — Devon fica em pé e segura no pulso dela. A corrente, entrega para Román. — Leve meu cachorro para a sala de estar.

Román faz cara de tédio e pega a corrente ficando em pé. Devon e Lucretia se afastam, ela gira contente, sorrindo e o abraça enquanto começam a dançar. Eles até formam um belo casal, mas vê-la agarrá-lo desse jeito, e a forma com que ele fica desconfortável ao redor dela, me dá até um pouco de raiva.

O que você está fazendo? — Sinto um puxão no braço e Román me ergue do chão, me arrastando. Ando um pouco trôpega, com as pernas até dormentes de tanto ficar na mesma posição. Ele me arrasta até a saleta de Devon novamente e me atira contra o sofá, impaciente.

Ai! — Caio sentada. Olho para minhas mãos, estão negras de sujeira do chão, bem como meus joelhos. Román vai até a bacia de água, pega uma toalha vermelha e a molha. Joga a toalha em minha direção.

Limpe-se e avise se tiver algum ferimento.

Como se você se importasse! — resmungo, atirando o pano de volta na cabeça dele. E daí que ele é um nobre e que pode m****r me matar? Não ligo e não me importo! Além do mais, ele é o babaca brincando com os sentimentos de Nytacha.

Você tem razão, eu não me importo com você. — Ele tira o pano de cima da cabeça e caminha, até ficar na minha frente, curvando-se para me olhar bem nos olhos. — Mas eu me importo com Nytacha e ela se importa com você.

Escutar o nome de minha prima em um momento em que eu quase me esqueço de quem sou, cria um efeito anestesiante no meu corpo e meus olhos se enchem de água, prestes a chorar. Román estende o pano para mim, respiro fundo e pego. Ele se ergue, colocando as duas mãos no bolso da calça, afastando-se.

Você realmente se importa com ela? — pergunto, passando o pano no meu rosto, pescoço e ombros.

Se você quer sobreviver, jogue o jogo — Román diz, com a voz baixa, caminhando até a porta. Ele segura na maçaneta e olha para mim por cima do ombro, quase com piedade. — Nesse tabuleiro, você precisa reconhecer seus aliados e seus inimigos. Definitivamente, não faço parte da segunda opção.

Comprimo os lábios e faço que sim com a cabeça. Acho que isso me responde a pergunta. De fato, ele se importa com Nytacha e eu, definitivamente, preciso de um aliado nessa bagunça.

Então, o que faço agora?

O que escravos fazem. — Ele abre a porta e me deixa sozinha na saleta.

Respiro fundo mais uma vez, a porta fecha e a quase escuridão me envolve. Levanto do sofá e ando até a tina de água, mergulho a toalha e passo novamente no meu corpo, me banhando, limpando a sujeira do chão do salão. Largo a toalha em cima da bancada, junto aos panos sujos de sangue, e tento puxar a corrente do meu pescoço, mas o cadeado impede que eu tire.

Volto para o sofá e me sento, meu corpo todo dói e me sinto tão exausta que acabo adormecendo. Acordo com o barulho do aspirador de pó e dou um pinote, percebendo que estou coberta com uma manta branca e felpuda, acho que pele de um urso, forrada com veludo. Pisco algumas vezes e percebo uma mulher passando aspirador na poltrona e outra esfregando a mancha de sangue no tapete, ambas humanas, com uniformes de empregada preto e avental vermelho.

Uma terceira mulher se aproxima de mim com uma bandeja dourada, com tampa de abóbada e um vaso de flores, colocando na minha frente, em cima da mesinha de centro. Sinto o cheiro de café e leite, pão assado e algo doce, talvez geleia. As faxineiras não param o serviço só porque vou comer, continuam ali, fazendo barulho, e o aspirador de pó me dá dor de cabeça.

É pra mim?

Sim, quando terminar é só sair, nós limparemos. — Ela me lança um sorriso simpático e se afasta, pegando uma vassoura.

Fixo os olhos no vaso de flores brancas ao lado da bandeja, há um cartão. Pego e abro o pequeno envelope vermelho, em tinta dourada está escrito “Au-Au” e a marca de carimbo de borboleta. Engulo seco. Acho que estamos mesmo com um acordo.

Abro a bandeja e meus olhos crescem para cima de um café da manhã de rainha. Bem, o que eu acho que rainhas comem no café da manhã. Há pães e bolos diversos, mel, geleia, frutas, suco, café, leite! Preciso dar um jeito de levar um pouco para casa.

Como o que consigo e uso a caixa do vestido que foi rasgado para levar o restante, como estou sem roupas, sigo pelo corredor do castelo de cinta-liga mesmo.

É de manhã, mas ainda está cedo e todos se dirigem para seus turnos. As pessoas me olham e abrem caminho para eu passar. Os garotos me engolem com seus olhares, porém ninguém mexe comigo, decerto amedrontados com o bracelete em meu braço.

Sobrevivi ao primeiro dia, no entanto, a única coisa que consigo pensar é que preciso transformar esse bracelete em uma tatuagem.

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