Jessica
—Mamãe, a tia Nanda chega de viagem quando?
Valentina me ajudava a guardar a louça. Minha filha estava agora com 6 anos. Esperta, inteligente e atenta a tudo ao seu redor. Continuava morando no mesmo bairro de quando fiquei grávida, depois de anos vivendo no Rio de Janeiro eu já havia me acostumado a cidade Maravilhosa. Nanda me deixou responsável pela casa, me cobrando apenas as despesas de água e luz. Minha amiga trilhava o caminho que eu não pude, por conta da minha gravidez inesperada. E agora dois anos depois, penso que Valentina foi o milagre em minha vida. Que o destino a colocou, para que eu mudasse de verdade. Vivendo uma vida normal, criando minha filha sozinha, longe de tudo que lembrava o meu passado sujo. Ainda trabalhava na mesma clínica de estética, porém eu era formada, depois de ter concluído o curso através da bolsa de estudos em uma faculdade particular. Fernanda foi quem me incentivou a seguir com essa profissão, mesmo me dizendo que eu ganharia muito mais continuando os programas no Rio de Janeiro, já que por conta da minha filha era inviável me mudar para a Europa como minha amiga fez. Fernanda trabalhava em parceria com Juliana a dona da agência de modelos, que recrutava as garotas para as festas com políticos e agora agenciava mulheres para o exterior. Era contra esse trabalho, contudo Fernanda dizia que o que faturava enganando garotas, ela nunca conseguiria nem se trabalhasse por 20 anos. Eu não concordava, mesmo com tudo que fiz quando nova. Depois do nascimento da minha filha, minha mente e visão de vida havia mudado.—Sua tia, fica apenas para as festas de final de ano, mocinha. Depois ela volta para a Europa como já havia te explicado.Com a louça toda guardada, de mãos dadas com minha filha vamos assistir à novela infantil, antes que ela pegue no sono. Me preparava para a formatura que aconteceria no próximo mês. O ano se aproximava do fim e desejava apenas coisas boas. Valentina iria para a primeira série. Sabia ler e escrever como uma menina de 10 anos. A inteligência que minha menina tinha, surpreendeu até as professoras quando a matriculei na creche perto do nosso bairro. Agora ela estudava no período da tarde, já que a minha chefe por entender que era sozinha, decidiu me colocar para trabalhar apenas meio- período. Nos dias em que eu precisava chegar tarde, a filha da vizinha buscava Valentina na escola e cuidava dela em sua casa. —Mãe, a senhora sabia que na escola, os pais vão poder participar da dança com os filhos — ao ouvir o que minha filha contava, tentei disfarçar a mágoa na voz sempre que o assunto: pai surgia em nossas conversas. Para Valentina o pai estava morto. Quem perguntava eu mentia que ele era um bandido que morreu em uma invasão na favela que Fernanda morava. Quando fui registrá-la, tive que convencer o funcionário do cartório, implorando que ela tivesse pai desconhecido na certidão. A paternidade era um segredo que apenas Fernanda e eu sabíamos. Minha amiga insistia sempre no mesmo assunto, de que eu não deveria privar minha filha do luxo e riqueza que a família do pai possuía. Porém revelar a verdade, seria mexer nas feridas que já estavam curadas em meu coração. Ele agora não era apenas um médico cheio do dinheiro, agora exercia um cargo de poder e vivia a vida muito bem. Ao menos era isso que toda a imprensa mostrava. Sempre com a mãe cobra do lado, ou sozinho nos eventos que mostrava na televisão. Por muitas vezes me peguei pensando, se ele ainda amava Viviane mesmo depois de tantos anos. Pelo pouco que sabia, Pedro e Viviane viviam felizes em Estrela Guia. Com os dois filhos. Fernanda é quem descobria tudo por mim. Até a doença que minha tia teve, que não conseguir ter pena devido ao que houve entre nós duas. —Eu estarei ao seu lado no dia da sua formatura, meu amor — beijo o topo da cabeça dela, tentando não chorar. —Queria que meu pai fosse vivo para dançar comigo. Minha amiga disse que ela tem um novo pai, que a mãe se casou novamente. Só a senhora que não casa.—Sua mãe não quer casar e eu já disse que esse tipo de conversa não é para a senhorita — Aponto para a televisão, mostrando a cena da novela. Assistimos tudo, até que deu a hora de colocar Valentina na cama. Fizemos o nosso ritual de todos os dias, depois de escovar os dentes, ela vestiu seu pijama e fui me deitar ao seu lado até que ela pegasse no sono. Com cuidado eu saí do quarto dela, indo para a cozinha preparar chocolate quente para tentar dormir depois. Vi a hora no relógio da cozinha, quase onze horas da noite. Peguei a minha caneca voltando para a sala, ligando a televisão num canal qualquer. Meu celular se encontrava em cima do sofá. Percebo o aparelho vibrando com uma chamada de São Paulo. Evitava ao máximo atender qualquer ligação, porém Fernanda me avisou que esperava uma resposta de uma garota que ela conheceu quando esteve em Santos. Atendi com um “alô” um pouco mal-educado. Ao ouvir a voz masculina do outro lado da linha, de primeira não reconheci. Somente depois de ouvir meu nome é que identifiquei o homem misterioso.—Jéssica, não desliga que sei que é você — o homem fala e engulo em seco. Se ele sabia meu número, com certeza sabia onde eu morava e era questão de tempo aparecer na minha porta.—Como você descobriu meu número? Pergunto, já que por tantos anos eu consegui me esconder sem que ninguém soubesse.—Um passarinho acabou abrindo a boca e não foi difícil somar dois mais dois e chegar até você. Agora eu preciso que me escute, mesmo que não queira.—Não tenho nada para falar, escutar ou alguém aí nessa cidade para me preocupar — respondo me preparando para desligar a chamada.—Eu não sei como as coisas entre você e Maria chegaram a esse ponto. O que você precisa saber é que sua tia está morrendo. Eu sei que você tem consciência do estado de saúde dela e mesmo assim em todos esses anos nunca a procurou. O que precisa entender agora é que Maria não tem muito tempo de vida, já que a doença se alastrou para outras partes do corpo. Ouço a situação em que titia vivia, sem acreditar que a mulher que antes se gabava tanto, hoje em dia estava morrendo para o câncer por não ter se tratado quando preciso. —Pedro, na boa eu não posso fazer nada para ajudar minha tia. Ela escolheu esse caminho, eu sigo o meu aqui no Rio de Janeiro e de verdade não pretendo retornar.Afirmo, tentando encerrar a ligação antes que eu me arrependesse até que Pedro diz algo que mudaria toda a minha vida.—Maria já imaginava isso, porém ela precisa te pedir perdão por algo que te fez no passado. Saiba que faço isso pela minha esposa e Sofia. As duas insistiram para que eu te encontrasse e trouxesse de volta. Quem sabe assim Maria possa morrer tranquila, depois que você a perdoar.Ao ouvir a última frase, meu coração se compadece e mesmo a contragosto, acabo concordando. Antes aviso que não poderia viajar agora, que ainda precisava resolver algumas coisas antes de voltar. Existia Valentina, não queria que soubessem da minha filha, muito menos que aquelas pessoas me olhassem com pena, por retornar anos depois com uma bastarda nos braços.—Se você se refere a sua filha, não precisa esconder a criança. Eu sei que você teve uma filha de um traficante ou assim é o que você fala. Então se a menina é o problema, saiba que sei sobre toda sua vida no Rio de Janeiro. Entendo que a menina está estudando ainda, por isso vou esperar que você resolva tudo e assim pode me ligar para que eu te envie as passagens e você retorna para São Paulo.Pedro encerra a ligação, pedindo que eu salve o contato dele na agenda, que ligue se precisar de algo e fico perdida sentada ali naquela sala sem saber o que fazer. Eu fui encontrada, Pedro e provavelmente Viviane sabia da minha filha. Como voltaria para São Paulo, mesmo que fosse por alguns dias?—Pensa Jéssica! Pensa como vai fazer para retornar sem que o seu passado te assombre outra vez.Jéssica—Jess, não acredito que você esperou eu voltar pro Brasil pra me contar essa bomba.Fernanda havia chegado de viagem na noite passada. Minha amiga retornou dois dias antes da formatura da Valentina. Com presentes para minha filha e as novidades da sua última loucura na Inglaterra. Valentina brincava no quintal de casa, enquanto nós duas conversávamos bebendo o chocolate que minha amiga trouxe da França. Era sábado e a formatura aconteceria na segunda-feira na parte da tarde na escolinha. Eu havia reservado minha passagem e da minha filha para o próximo final de semana. Duas semanas se passaram desde a ligação do Pedro. Dias depois foi Sofia que me ligou, implorando que eu voltasse. Que minha tia havia melhorado depois que Pedro contou que eu decidi retornar.—Nanda, sabe que voltar inclui lembrar de tudo, encontrar pessoas que não desejo. Preciso fingir que não ligo, quando chegar naquela comunidade com uma menina na barra do vestido.—Hey garota! Nada de falar assim da minha
JéssicaSentada na sala de casa, esperava Fernanda sair do quarto. Nossas coisas estavam prontas em uma única mala de viagem. Decidi levar pouquíssimas coisas já que eu tinha certeza que ficaria ali no máximo uma semana. Fernanda acabou decidindo ir comigo, depois de ter me encontrado chorando na varanda na noite da formatura da minha filha. Enquanto a maioria das meninas dançaram com os pais, Valentina foi a única da sala que não e mesmo demonstrando tá tudo bem com isso, não consegui esconder por muito tempo a tristeza depois que minha filha dormiu. Chorei de raiva e ódio por ter que esconder a verdade dela. Fernanda me disse que eu precisava ter a coragem de procurar Leonardo e contar sobre a filha. Porém eu nunca faria algo assim. Ser tratada com desprezo por ele, como na noite em que Valentina foi concebida era algo que não desejava outra vez.—Jess, demorei porque aproveitei para lavar o cabelo, já que nosso voo é depois do almoço — Fernanda se senta ao meu lado. Minha amiga era
JessicaEu deveria ter confiado na minha intuição, que me dizia para não trazer Valentina comigo. Mal desembarquei nesta cidade m*****a e coloquei os pés novamente nesta comunidade, minha filha some da minha vista por causa de uma brincadeira. Pensei que ela estava falando por falar quando viu toda aquela agitação de pessoas e a entrada de Estrela Guia decorada com balões e outros enfeites. Não tinha ideia de que estava acontecendo um evento nesta tarde, e agora, ao lado da Nanda, procurávamos minha filha como duas loucas. Saí perguntando a alguns moradores desconhecidos, vi os conhecidos me olhando surpresos ao me verem ali novamente, já que eu estava mais velha e muito mudada. — Amiga, fica calma, tudo bem? Vamos encontrar aquela mocinha. Eu vou por esta rua, e você segue na frente, onde tem aqueles carros parados. Viu como tem um monte de gente ao redor? Nanda me diz e, carregando a mala de viagem numa mão, ando apressada, me aproximando daquela multidão que se encontrava perto de
LeonardoEla teve uma filha! A surpresa que tive ao encontrar Jéssica depois de anos foi justamente no dia da inauguração da nova escola em Estrela Guia. O nosso rápido reencontro apenas de olhares mostrou que ela, de certa forma, ainda mexia comigo. A garotinha encantadora era filha dela? E me perguntava, curioso, quem seria o pai?Enquanto as pessoas ali conversavam sobre política e os moradores da comunidade, entre outras coisas, meu pensamento se encontrava nela e em como mudou em anos. Mais velha, porém, o olhar de desprezo por mim permanecia o mesmo. Jéssica realmente me odiava por tudo que fiz no passado. Fui um canalha ao ter acreditado no que mamãe me disse e descobrir pela Sofia que a tia foi quem fez toda a negociação para conseguir dinheiro usando o que eu e a sobrinha tínhamos me pegou de surpresa. Em um dos encontros com Sofia, minha amiga contou que Maria confessou no hospital que Deus a castigava por ter se aproveitado da sobrinha por anos. Sofia não conseguia entender
Jessica—Tia Jess a mamãe comprou esse doce para mim!Ao ouvir Valentina me chamando de tia Jess, solto um suspiro de alívio. Minha filha era esperta e inteligente demais. Leonardo olhou confuso para mim, depois para Fernanda que se encontrava parada ao meu lado e por último para minha filha.— Como assim tia? Ela não é sua filha?Leonardo pergunta e antes que eu possa responder, Fernanda saí na frente e se apresenta para ele.—O governador aqui na porta da casa da tia da minha amiga. Nossa me sinto honrada com isso, o senhor é muito mais bonito pessoalmente que na televisão.Fernanda diz sem pudor algum, sorrindo para Leonardo e para um homem alto, barbudo e de óculos escuros que estava parado como uma estátua ao lado dele.—Me chamo Fernanda e essa mocinha aqui é a Valentina a minha filha.Minha amiga, estende a mão para ele, deixando- o confuso com essa informação.—É... o prazer é meu! Senhora!—Senhora não, por favor. Assim o senhor me faz parecer uma velha.Assisto a cena sem ac
LeonardoPedi para Fábio dirigir pelas ruas de São Paulo, antes de chegar até a mansão. Eu precisava organizar as ideias depois de descobrir que a menina não era sua filha e sim da amiga dela. A mulher que se apresentou como Fernanda lembrava muito uma das garotas que participavam das festas que o Marcelo organizava. Será que Jéssica não omitia que a menina era sua filha, com medo de que eu pensasse o pior dela? A garotinha chamada Valentina lembrava muito Jéssica. O mesmo sorriso e postura. As vezes era a convivência que faziam com que semelhanças aparecessem.—Senhor eu posso seguir para a mansão agora?Fábio pergunta me tirando do transe e respondo que sim. Assim que chegasse em casa, ligaria para um amigo pedindo que procurasse qualquer informação sobre Jéssica a amiga e a criança que acompanhava as duas.Como aquela garota se encontrava tão diferente. Mas bonita, que meu corpo não pôde deixar de reagir a presença dela. Eu desejava conversar a sós com ela. Porém Jéssica foi irred
JéssicaAcordei cedo, deixei o café da manhã pronto. Fernanda e Valentina ainda dormiam e na noite anterior avisei minha filha que precisaria sair bem cedinho. Mesmo sendo domingo, me encontraria com Pedro no escritório dele. Era melhor resolver o que era preciso. Pediria para que ele vendesse a casa da titia. Pretendia voltar apenas para o velório. Quando contei isso para Fernanda minha amiga disse que eu estava certa. Não poderia ser hipócrita ao ponto de chorar pela tia Maria. Só eu sei o que passei desde criança. Os homens que ela levava para casa, a exploração que vivi desde quando me entendi por gente e passei a ter corpo de mulher. Enquanto eu andava até o escritório dei de cara com alguns conhecidos. Descobri que Dona Noca faleceu 4 anos atrás. Encontrei Livia que agora era uma moça ao lado da mãe dona Carmem, que estava aposentada depois de sofrer um acidente de trabalho e ficar impossibilitada de trabalhar. Livia era mais nova que eu uns seis anos e fiquei feliz por saber qu
JéssicaO carro de aplicativo se aproximava da entrada do hospital em que minha tia se encontrava internada. As visitas estavam liberadas durante o dia inteiro e achei melhor ir antes do almoço. Depois de conversar e dizer com todas as letras que meu lugar não era mais em Estrela Guia, me despedi do Pedro, chamei um Uber e vim para o hospital. Paguei a corrida e agradeci ao motorista. Me encontrava na entrada e respirei fundo antes de entrar e pedir informação sobre o quarto que tia Maria ficava. No caminho liguei para Nanda que me disse que em casa Valentina já havia tomado café e agora assistia desenho na televisão. Ela compraria o almoço e perguntou se eu chegaria muito tarde. Avisei que era apenas o tempo de falar com tia Maria, ficar alguns minutos e voltar. Não queria me arriscar andando por aí, com medo de dar de cara com Leonardo novamente.Fui até a recepcionista e disse o nome completo da minha tia e meu grau de parentesco.—A paciente já aguardava a visita da senhorita — a