Londres, dois anos depois.
Quando a Sra. Howard fora chamá-la em seu quarto, dizendo que alguém desejava vê-la, Ártemis Templeton franziu o nariz, já antecipando o que lhe esperava: um velho, pomposo e rabugento mordomo, cheirando à água de colônia, que viera em nome de seu senhor, o lorde qualquer-coisa, para contratá-la. Nunca era muito diferente disso! Mas, mesmo diante de tal perspectiva, ela tinha de receber a pessoa. Depois que os Stratkery haviam se mudado para Kent, ela ficara desempregada, e, em pouco tempo, também ficaria sem dinheiro. A Sra. Howard era muito boa, mas dependia dos aluguéis para viver. Também não podia voltar para a vila, pois lá, não a deixariam pagar por suas despesas, o que Amie não considerava justo.
Seguida de perto pela dona da pensão, desceu a velha escada de madeira rumo à sala de visitas. Involuntariamente, parou por um instante na porta, para observar o visitante que, distraído, olhava a rua movimentada pela janela.
O jovem negro, medindo quase dois metros de altura, virou-se e sorriu antes de tomar-lhe a mão para beijá-la polidamente.
—Jesus dos Reis, senhorita. Secretário pessoal do conde de Hallen. Muito prazer em conhecê-la.
Ele tinha traços bonitos, fortes, acentuados pela cabeça raspada e as roupas impecáveis. Seus olhos eram incrivelmente verdes.
—O prazer é meu, senhor. Sente-se, por favor.
—Creio que sabe por que estou aqui, miss Templeton.
—Acredito que seu patrão esteja interessado em meus préstimos como dama de companhia, estou certa?
—Exato. Sua Graça tem uma sobrinha que mora com ele desde o falecimento de sua irmã e o marido...
—Ouvi falar do acidente...
—O caso é que a babá de Ethnee decidiu nos deixar, e precisamos de alguém para substituí-la.
—Compreendo. – Então ela olhou-o nos olhos e disse: - Permite-me uma pergunta, senhor?
—Mas é claro!
—Tenho algum motivo para me preocupar com esta partida repentina da antiga governanta?
Os olhos do secretário arregalaram-se momentaneamente e, depois, ele riu.
— É uma pessoa franca, miss Templeton! De forma alguma. Ethnee é uma menina extremamente doce e bem educada.
—Entendo, e quanto ao conde? – Amie se permitiu sorrir também.
—Não terá de se preocupar com Sua Graça, miss Templeton. Lorde Hallen é recluso e raramente deixa sua biblioteca.
—É uma pena. Sua presença deve fazer falta à pequena lady.
O Sr. Dos Reis pigarreou e desviou o olhar do dela, não querendo fazer qualquer comentário que desabonasse seu patrão e bom amigo, mas tinha de admitir que concordava com a moça.
—O conde recebeu ótimas referências suas, senhorita, e espera que esteja pronta para assumir seu cargo imediatamente.
—Com toda a certeza, Sr. Dos Reis!
—Ótimo, não esperávamos menos da senhorita. – Ele se levantou encerrando a visita. – Sua Graça a espera amanhã, às oito horas. Um coche virá buscá-la.
—Como o senhor quiser. Até amanhã.
Ele fez uma breve reverência e saiu, acompanhado pela dona da pensão.
—Que homem encantador! Muito distinto, não?
—De fato.
—Uma pena o conde de Hallen viver isolado, não acha? Era um homem tão bonito... Eu o vi certa vez, em Bow Street. Retirou-se da sociedade depois que a irmã morreu, sabe? Há pouco mais de dois anos...
—Sim, eu soube.
—Mas que ótimo emprego conseguiu, menina! De quanto será o salário?
Amie sorriu, era impressionante a facilidade que a mulher tinha de saltar de um assunto a outro!
—Não falamos nisso, mas tenho certeza de que será excelente! – Ela sorriu animada. – Vou sair, Sra. Howard, mas voltarei para o jantar.
—Está bem, querida. – Agatha recebeu o beijo na testa que Amie lhe deu e sorriu. Vai ver suas crianças no orfanato?
—Sim. Preciso contar-lhes a novidade! E vou até a vila também.
A Sra. Howard olhou-a sair e suspirou feliz. Ártemis Templeton era a criatura mais bondosa que ela já conhecera e merecia tudo de bom que a vida lhe destinasse.
10 de Maio de1888.
O secretário do conde de Hallen esteve aqui hoje, para contratar-me. Tomarei conta da sobrinha do lorde. A Sra. Howard disse que ele, o conde, não é visto em público desde que sua irmã morreu, há cerca de dois anos. Uma estranha e triste coincidência.
Estou muito animada com este novo emprego. Imagino que deva ser maravilhoso fazer parte do quadro de criados do conde de Hallen. Nunca vi sua casa, mas lembro de ouvir papai dizendo como a família St. James é importante e influente... Uma carruagem virá me buscar amanhã cedo. Estou muito ansiosa.
—Tudo acertado, amigo. Ethnee já tem uma nova acompanhante. – O conde levantou os olhos dos papéis que lia para dar atenção ao seu secretário. – Mandarei uma carruagem buscá-la amanhã.—Perfeito. Obrigado, Jesus.—Precisa comunicar à sua mãe...Connor fez uma expressão hilária de desgosto e largou novamente os papéis.—Tem razão.—Vou mandar um criado chamá-la.—Não precisa. Irei até lá.—E eu, vou me esconder.Jesus fez o possível para esconder seu espanto diante da atitude de seu patrão, já que, como dissera à governanta, ele raramente deixava a biblioteca. Durante o dia, pelo menos.Lorde Hallen riu e saiu para o corredor, rumo ao salão rosa, onde certamente encontraria a mãe.A condessa de Hal
Que linda mulher era aquela! Sentado à sua escrivaninha, com uma enorme pilha de papéis esquecida sobre o tampo polido, Connor Saint James, o conde de Hallen, não conseguia parar de pensar na mulher que contratara para cuidar de sua sobrinha e que, estranhamente, parecera-lhe familiar.Não pudera ver-lhe os cabelos, pois ela usava uma touca de linho branco, mas o rosto era harmonioso, lembrava um coração. A pele era de um branco perolado e os olhos eram da cor do crepúsculo. Ele jamais vira beleza igual em sua vida! Mas os olhos... Vinha sonhando com olhos como os dela há muito tempo... Com efeito! Não era nisso que deveria estar pensando! Coisas mais urgentes mereciam sua atenção. Connor franziu as sobrancelhas, tentando concentrar-se em coisas mais importantes.—No que está pensando, meu amigo?—Para ser franco, Jesus, na governanta.—Ela &eacu
No relógio do hall soaram as doze badaladas da meia-noite e Amie revirou-se novamente na cama.Não conseguia conciliar o sono, e, como de costume, ficar na cama não adiantaria nada.Resolveu então, ir até a biblioteca de lorde Hallen e procurar um livro que a fizesse dormir, ou, pelo menos, ajudasse a passar o tempo. Apertando bem o penhoar de tecido fino em torno do corpo, desceu as escadas, empunhando um pesado castiçal. Seria uma invasão, ela sabia, mas se ele não ficasse sabendo...Não parecia haver luz dentro do aposento. Ela entrou, agradecendo à Sra. Fitzwaring pelo ótimo trabalho na conservação das dobradiças.As prateleiras de livros ocupavam todas as paredes, exceto onde estavam as janelas em arco, que conferiam uma luminosidade agradável à biblioteca durante o dia. Uma grande lareira de mármore azul e branco dominava o ambiente
O brilhante sol da manhã terminou por despertar Connor do que ele julgava sua melhor noite de sono em anos.—Ah! Finalmente acordou!A voz do amigo e secretário soou por trás do cortinado quando o conde se espreguiçou ruidosamente na cama.—Jesus? Que horas são?Abrindo as cortinas, Connor viu o amigo confortavelmente instalado em uma das poltronas escuras. Pilhas de papéis espalhavam-se pelo chão e em seu colo.—Passa das onze, milorde. Sua mãe deve estar feliz esta manhã! Está agindo como o nobre que é! – zombou o enorme rapaz de pele escura.— Cale a boca, Jesus! Nem você vai me tirar do sério esta manhã!—Você nunca está tão feliz assim logo que acorda. A que se deve esse fabuloso estado de espírito?—À Ártemis! – disse o conde simplesmente.
Mais tarde, naquela mesma noite, a Sra. Fitzwaring foi visitar a convalescente, trazendo-lhe uma bandeja com chá e bolo.—Boa noite, miss Templeton. Sente-se melhor?—Oh, sim! Muito melhor, obrigada.—Que bom. Fiquei preocupada quando desmaiou na cozinha.—Eu peço desculpas. Acho que causei a maior confusão lá em baixo. O conde foi muito gentil e atencioso durante toda a tarde.—Milorde sempre foi assim. Preocupava-se com todos, desde pequeno.—A senhora está aqui há muito tempo, não é, Sra. Fitzwaring?—Sim. Quarenta e cinco dos meus sessenta anos foram dedicados à família St. James.—Quarenta e cinco?! Mon Dieu! É uma vida inteira!—De fato. Mas foi uma vida muito feliz. Minha mãe era a governanta antes de mim. Eu comecei como ajudante de cozinha aos quinze anos.&mda
Na manhã seguinte, após o passeio, enquanto Ethnee descansava em seu quarto, Amie desceu até a biblioteca, bateu e não obtendo resposta, entrou. Como sempre fazia, parou à entrada, contemplando o lindo ambiente.Onde, por Deus, ela iria encontrar um livro de lendas chinesas?- pensou ela, ao parar ao pé de uma enorme estante de madeira escura, forrada de livros, do chão ao teto.Levou alguns minutos para entender o método de organização do conde, mas assim que o fez, deduziu que os livros que procurava deviam estar no piso superior da biblioteca.Seus passos na antiga escada de metal ressoavam como acusações aos seus ouvidos. Estava invadindo a privacidade de seu patrão! Outra vez. Imediatamente as lembranças do beijo trocado no sofá invadiram os pensamentos de Amie.—Oh Dieu! – gemeu.Em seguida, tratou de exp
A caleche rodava pela rua movimentada, o sol estava a pino. Amie afagava os cabelos de Ethnee, que se aninhara em seu colo, enquanto observava o movimento da rua.—Ethnee, ma chérie, você se importaria em responder-me uma pergunta?—Claro que não, Amie, pode falar.—Seu tio me parece ser muito triste. Por quê? Eu entendo que ele sofra pela perda de seus pais, mas este sofrimento já deveria ter arrefecido.Houve um longo silêncio antes que a menina finalmente respondesse.—Tio Connor se culpa pela morte de meus pais.—Imaginei que fosse isso, mas por quê? Seus pais não morreram em um acidente de carruagem?—Sim, foi isso o que aconteceu.—Continuo não entendendo. Era ele quem conduzia o veículo?—Não. Quero dizer, não sei. Não me lembro de quase nada daquela noite... – Ethne
Connor ouviu o barulho de passos apressados no hall e abriu a porta da biblioteca.—Vai sair assim tão cedo, miss Templeton? – disse, aproximando-se.A voz agradavelmente forte roubou por completo a atenção de Amie, que errou o laço que dava na fita de seu chapéu.—Bom dia, milorde! Sim, vou sair. Hoje é quinta-feira, vou visitar alguns amigos e tenho uma porção de coisas a resolver no orfanato.Ela ainda estava atrapalhada com a fita de cetim sob o queixo. Então, com um sorriso travesso, ele se aproximou e afastou-lhe as mãos.—Deixe-me ajudá-la com isso, sim?As mãos dele estavam frias. No entanto, onde quer que elas tocassem, a pele de Amie parecia pegar fogo. Ela sentiu o rubor tingir sua face, o que alargou o sorriso do conde, formando as duas covinhas no rosto bonito, que davam ao lorde um quê de garoto traquina.&md