Inglaterra, 1886.
A morte rondava os desventurados de Londres naquela noite de dezembro, mesmo os que tinham a sorte de contar com um teto sobre suas cabeças. Mas, apesar do frio, em uma das muitas pequenas vilas de imigrantes em White Chapel, um pequeno grupo de amigos reunia-se no pátio, próximo à janela da moribunda.
Ali, onde tantas culturas se misturavam e nem sempre homogeneamente, senhoras idosas vestidas de preto, crianças, jovens e adultos rezavam, cada um em sua própria língua e religião, por aquela alma tão querida. Todos sabiam que aconteceria em breve, e a tristeza marcava os rostos amigos que faziam a vigília.
O médico, por fim, saiu do pequeno cômodo, olhar contrito, o chapéu nas mãos.
Anne Thèrese Templeton não mais estava neste mundo. As pessoas que moravam naquela vila, crianças e velhos, jovens e adultos, de repente, sentiram-se órfãos.
No entanto, ninguém ali, eles tinham certeza, sentia-se mais triste do que a jovem filha de Anne.
A pequena multidão abriu passagem para a moça que saía correndo da casa. A menina a quem chamavam carinhosamente de Amie.
Ela correu sem direção pela noite de Londres, não sabia para onde estava indo e nem se importava. Queria apenas se afastar daquilo tudo. Dos rostos cheios de pena; do cheiro de doença que pairava por toda a vila. Sua mãe morrera. Estava órfã agora, completamente sozinha em um mundo pouco gentil com as mulheres.
Não tinha nada mais pelo que viver agora. Nada! Todos os sacrifícios, as humilhações e pecados tinham-se provado inúteis.
A brisa fria, por fim, a atingiu e Amie parou, olhando em volta. Estava na margem do rio Tâmisa, próximo ao local de construção de uma grande ponte.
Caminhou até a margem e sentou-se no muro de proteção, olhando com atenção as águas negras do rio lá embaixo.
—Boa noite, moça! – Uma voz possante arrancou-a de seus pensamentos. – Procura companhia?
—Ora essa, monsieur! – exclamou, enxugando o rosto – Por quem me toma? Não sou esse tipo de mulher!
—Oh, queira me perdoar mademoiselle! Não tive a intenção de ofendê-la!
Ele fez uma reverência que beirava à zombaria. Amie manteve-se à sombra, longe das luzes dos lampiões. Não lhe agradava que alguém, mesmo um estranho, testemunhasse sua autopiedade.
—Mas a senhorita tem de concordar comigo que não existe nada que uma moça respeitável possa estar fazendo a esta hora, nas margens do rio...
Ele parou de falar e olhou para aquela linda e tristonha criatura. Era magra e parecia extremamente frágil em suas roupas velhas e rotas. O que teria acontecido? Aproximando-se da jovem, colocou a mão em seu ombro e percebeu que ela estava chorando.
— Monsieur está certo, claro. – murmurou ela, entre soluços – Eu não deveria estar aqui. Nem sei ao certo como cheguei aqui...
O instinto protetor, tão arraigado nele, aflorou diante daquela criatura tão digna de pena e, ao mesmo tempo, tão fascinante. Ela o encarou pela primeira vez e seus olhos refletiram a luz dos lampiões.
—Permita-me acompanhá-la de volta a sua casa, mademoiselle. Não me parece em condições de andar sozinha pelas ruas.
—Obrigada, monsieur.
Ela saltou do muro e aceitou o braço que ele lhe oferecia e isso a fez lembrar-se de outros tempos, tempos mais felizes.
—Pelos Céus, você está tremendo! Tome, vista isso. – Retirando a capa de tecido pesado, o estranho colocou-a sobre os ombros de Amie com um sorriso indulgente. – Posso perguntar o que a trouxe até aqui?
—Se eu soubesse, monsieur... Saí andando sem rumo há algumas horas e me vi aqui, perto do rio com ideias horríveis a passar por minha mente.
—Entendo. Mas o que houve para que a senhorita cultivasse tais pensamentos?
—O rumo que minha vida está tomando, J`y pense. Minha mãe morreu há poucas horas, meu pai há muito... Agora, nada mais tenho em minha vida.
O olhar dela estava fixo no chão e lágrimas silenciosas corriam por seu rosto pálido.
—Nada? Não acredito!
—Não há absolutamente nada mais em minha vida que valha a pena. – Ela deixou os ombros penderem, sem energia para mantê-los erguidos e retos, como sua mãe lhe havia ensinado.
—A vida é um dom, minha cara, um dom que só vale a pena ter quando é passado adiante. Com toda a certeza, vai encontrar uma forma de fazê-lo.
Amie parou de súbito e o encarou.
—Talvez o senhor tenha razão, monsieur. Talvez eu devesse apenas voltar para casa e dormir. As coisas sempre parecem piores à noite, não?! – Ela sorriu e secou as lágrimas. – Merci beaucoup!
Erguendo-se na ponta dos pés, pois ele era bem maior do que ela, Amie depositou um beijo no rosto do cavalheiro e saiu correndo, de volta para casa.
E ele ficou vários minutos parado ali, em meio à névoa da madrugada, questionando se aquilo tudo realmente acontecera.
Embora não tivesse conseguido observar o semblante da moça com clareza, os magníficos olhos dourados ficariam gravados em sua mente por muito tempo.
02 de Dezembro de 1886
A doença dos pulmões finalmente roubou minha mãe de mim. Não sei se me sinto terrivelmente triste ou aliviada. Mamãe sofria muito, acho que foi melhor assim. O médico disse que, geralmente, a tuberculose arrasta-se por muito mais tempo.
As pessoas na vila me olham, algumas sentem pena, outras pensam que Nat deveria vir cuidar de mim. Pessoalmente, prefiro continuar sozinha. Nathanael só fez mal a mim e à mamãe.
Tive pensamentos horríveis ontem à noite. Por um minuto pensei em dar um fim a tudo. Mas então, um estranho chegou e me salvou. Ele era muito bonito, alto e forte... Disse-me uma coisa que me abriu os olhos. Fez-me ver que sempre há algo pelo que viver. Ele colocou sua capa em meus ombros, para me aquecer e, na pressa de voltar para casa, esqueci-me de lhe devolver. Acho que nunca mais o verei de novo, mas vou guardar sua lembrança e sua capa, assim poderei sentir aquele perfume delicioso e envolvente, que me faz sentir reconfortada e confiante.
Que Deus abençoe o galante cavalheiro que salvou minha vida de muitas maneiras!
Londres, dois anos depois.Quando a Sra. Howard fora chamá-la em seu quarto, dizendo que alguém desejava vê-la, Ártemis Templeton franziu o nariz, já antecipando o que lhe esperava: um velho, pomposo e rabugento mordomo, cheirando à água de colônia, que viera em nome de seu senhor, o lorde qualquer-coisa, para contratá-la. Nunca era muito diferente disso! Mas, mesmo diante de tal perspectiva, ela tinha de receber a pessoa. Depois que os Stratkery haviam se mudado para Kent, ela ficara desempregada, e, em pouco tempo, também ficaria sem dinheiro. A Sra. Howard era muito boa, mas dependia dos aluguéis para viver. Também não podia voltar para a vila, pois lá, não a deixariam pagar por suas despesas, o que Amie não considerava justo.Seguida de perto pela dona da pensão, desceu a velha escada de madeira rumo à sala de visitas. Involuntariamen
—Tudo acertado, amigo. Ethnee já tem uma nova acompanhante. – O conde levantou os olhos dos papéis que lia para dar atenção ao seu secretário. – Mandarei uma carruagem buscá-la amanhã.—Perfeito. Obrigado, Jesus.—Precisa comunicar à sua mãe...Connor fez uma expressão hilária de desgosto e largou novamente os papéis.—Tem razão.—Vou mandar um criado chamá-la.—Não precisa. Irei até lá.—E eu, vou me esconder.Jesus fez o possível para esconder seu espanto diante da atitude de seu patrão, já que, como dissera à governanta, ele raramente deixava a biblioteca. Durante o dia, pelo menos.Lorde Hallen riu e saiu para o corredor, rumo ao salão rosa, onde certamente encontraria a mãe.A condessa de Hal
Que linda mulher era aquela! Sentado à sua escrivaninha, com uma enorme pilha de papéis esquecida sobre o tampo polido, Connor Saint James, o conde de Hallen, não conseguia parar de pensar na mulher que contratara para cuidar de sua sobrinha e que, estranhamente, parecera-lhe familiar.Não pudera ver-lhe os cabelos, pois ela usava uma touca de linho branco, mas o rosto era harmonioso, lembrava um coração. A pele era de um branco perolado e os olhos eram da cor do crepúsculo. Ele jamais vira beleza igual em sua vida! Mas os olhos... Vinha sonhando com olhos como os dela há muito tempo... Com efeito! Não era nisso que deveria estar pensando! Coisas mais urgentes mereciam sua atenção. Connor franziu as sobrancelhas, tentando concentrar-se em coisas mais importantes.—No que está pensando, meu amigo?—Para ser franco, Jesus, na governanta.—Ela &eacu
No relógio do hall soaram as doze badaladas da meia-noite e Amie revirou-se novamente na cama.Não conseguia conciliar o sono, e, como de costume, ficar na cama não adiantaria nada.Resolveu então, ir até a biblioteca de lorde Hallen e procurar um livro que a fizesse dormir, ou, pelo menos, ajudasse a passar o tempo. Apertando bem o penhoar de tecido fino em torno do corpo, desceu as escadas, empunhando um pesado castiçal. Seria uma invasão, ela sabia, mas se ele não ficasse sabendo...Não parecia haver luz dentro do aposento. Ela entrou, agradecendo à Sra. Fitzwaring pelo ótimo trabalho na conservação das dobradiças.As prateleiras de livros ocupavam todas as paredes, exceto onde estavam as janelas em arco, que conferiam uma luminosidade agradável à biblioteca durante o dia. Uma grande lareira de mármore azul e branco dominava o ambiente
O brilhante sol da manhã terminou por despertar Connor do que ele julgava sua melhor noite de sono em anos.—Ah! Finalmente acordou!A voz do amigo e secretário soou por trás do cortinado quando o conde se espreguiçou ruidosamente na cama.—Jesus? Que horas são?Abrindo as cortinas, Connor viu o amigo confortavelmente instalado em uma das poltronas escuras. Pilhas de papéis espalhavam-se pelo chão e em seu colo.—Passa das onze, milorde. Sua mãe deve estar feliz esta manhã! Está agindo como o nobre que é! – zombou o enorme rapaz de pele escura.— Cale a boca, Jesus! Nem você vai me tirar do sério esta manhã!—Você nunca está tão feliz assim logo que acorda. A que se deve esse fabuloso estado de espírito?—À Ártemis! – disse o conde simplesmente.
Mais tarde, naquela mesma noite, a Sra. Fitzwaring foi visitar a convalescente, trazendo-lhe uma bandeja com chá e bolo.—Boa noite, miss Templeton. Sente-se melhor?—Oh, sim! Muito melhor, obrigada.—Que bom. Fiquei preocupada quando desmaiou na cozinha.—Eu peço desculpas. Acho que causei a maior confusão lá em baixo. O conde foi muito gentil e atencioso durante toda a tarde.—Milorde sempre foi assim. Preocupava-se com todos, desde pequeno.—A senhora está aqui há muito tempo, não é, Sra. Fitzwaring?—Sim. Quarenta e cinco dos meus sessenta anos foram dedicados à família St. James.—Quarenta e cinco?! Mon Dieu! É uma vida inteira!—De fato. Mas foi uma vida muito feliz. Minha mãe era a governanta antes de mim. Eu comecei como ajudante de cozinha aos quinze anos.&mda
Na manhã seguinte, após o passeio, enquanto Ethnee descansava em seu quarto, Amie desceu até a biblioteca, bateu e não obtendo resposta, entrou. Como sempre fazia, parou à entrada, contemplando o lindo ambiente.Onde, por Deus, ela iria encontrar um livro de lendas chinesas?- pensou ela, ao parar ao pé de uma enorme estante de madeira escura, forrada de livros, do chão ao teto.Levou alguns minutos para entender o método de organização do conde, mas assim que o fez, deduziu que os livros que procurava deviam estar no piso superior da biblioteca.Seus passos na antiga escada de metal ressoavam como acusações aos seus ouvidos. Estava invadindo a privacidade de seu patrão! Outra vez. Imediatamente as lembranças do beijo trocado no sofá invadiram os pensamentos de Amie.—Oh Dieu! – gemeu.Em seguida, tratou de exp
A caleche rodava pela rua movimentada, o sol estava a pino. Amie afagava os cabelos de Ethnee, que se aninhara em seu colo, enquanto observava o movimento da rua.—Ethnee, ma chérie, você se importaria em responder-me uma pergunta?—Claro que não, Amie, pode falar.—Seu tio me parece ser muito triste. Por quê? Eu entendo que ele sofra pela perda de seus pais, mas este sofrimento já deveria ter arrefecido.Houve um longo silêncio antes que a menina finalmente respondesse.—Tio Connor se culpa pela morte de meus pais.—Imaginei que fosse isso, mas por quê? Seus pais não morreram em um acidente de carruagem?—Sim, foi isso o que aconteceu.—Continuo não entendendo. Era ele quem conduzia o veículo?—Não. Quero dizer, não sei. Não me lembro de quase nada daquela noite... – Ethne