Entre o Passado e o Coração
Entre o Passado e o Coração
Por: Stefani Banhete
Prólogo

Inglaterra, 1886.

A morte rondava os desventurados de Londres naquela noite de dezembro, mesmo os que tinham a sorte de contar com um teto sobre suas cabeças. Mas, apesar do frio, em uma das muitas pequenas vilas de imigrantes em White Chapel, um pequeno grupo de amigos reunia-se no pátio, próximo à janela da moribunda.

   Ali, onde tantas culturas se misturavam e nem sempre homogeneamente, senhoras idosas vestidas de preto, crianças, jovens e adultos rezavam, cada um em sua própria língua e religião, por aquela alma tão querida. Todos sabiam que aconteceria em breve, e a tristeza marcava os rostos amigos que faziam a vigília.

O médico, por fim, saiu do pequeno cômodo, olhar contrito, o chapéu nas mãos.

Anne Thèrese Templeton não mais estava neste mundo. As pessoas que moravam naquela vila, crianças e velhos, jovens e adultos, de repente, sentiram-se órfãos.

No entanto, ninguém ali, eles tinham certeza, sentia-se mais triste do que a jovem filha de Anne.

A pequena multidão abriu passagem para a moça que saía correndo da casa. A menina a quem chamavam carinhosamente de Amie.

Ela correu sem direção pela noite de Londres, não sabia para onde estava indo e nem se importava. Queria apenas se afastar daquilo tudo. Dos rostos cheios de pena; do cheiro de doença que pairava por toda a vila. Sua mãe morrera. Estava órfã agora, completamente sozinha em um mundo pouco gentil com as mulheres.

Não tinha nada mais pelo que viver agora. Nada! Todos os sacrifícios, as humilhações e pecados tinham-se provado inúteis.

A brisa fria, por fim, a atingiu e Amie parou, olhando em volta. Estava na margem do rio Tâmisa, próximo ao local de construção de uma grande ponte.

Caminhou até a margem e sentou-se no muro de proteção, olhando com atenção as águas negras do rio lá embaixo.

—Boa noite, moça! – Uma voz possante arrancou-a de seus pensamentos. – Procura companhia?

—Ora essa, monsieur! – exclamou, enxugando o rosto – Por quem me toma? Não sou esse tipo de mulher!

—Oh, queira me perdoar mademoiselle! Não tive a intenção de ofendê-la!

 Ele fez uma reverência que beirava à zombaria. Amie manteve-se à sombra, longe das luzes dos lampiões. Não lhe agradava que alguém, mesmo um estranho, testemunhasse sua autopiedade.

—Mas a senhorita tem de concordar comigo que não existe nada que uma moça respeitável possa estar fazendo a esta hora, nas margens do rio...

Ele parou de falar e olhou para aquela linda e tristonha criatura. Era magra e parecia extremamente frágil em suas roupas velhas e rotas. O que teria acontecido? Aproximando-se da jovem, colocou a mão em seu ombro e percebeu que ela estava chorando.

Monsieur está certo, claro. – murmurou ela, entre soluços – Eu não deveria estar aqui. Nem sei ao certo como cheguei aqui...

O instinto protetor, tão arraigado nele, aflorou diante daquela criatura tão digna de pena e, ao mesmo tempo, tão fascinante. Ela o encarou pela primeira vez e seus olhos refletiram a luz dos lampiões.

—Permita-me acompanhá-la de volta a sua casa, mademoiselle. Não me parece em condições de andar sozinha pelas ruas.

—Obrigada, monsieur.

Ela saltou do muro e aceitou o braço que ele lhe oferecia e isso a fez lembrar-se de outros tempos, tempos mais felizes.

—Pelos Céus, você está tremendo! Tome, vista isso. – Retirando a capa de tecido pesado, o estranho colocou-a sobre os ombros de Amie com um sorriso indulgente. – Posso perguntar o que a trouxe até aqui?

—Se eu soubesse, monsieur... Saí andando sem rumo há algumas horas e me vi aqui, perto do rio com ideias horríveis a passar por minha mente.

—Entendo. Mas o que houve para que a senhorita cultivasse tais pensamentos?

—O rumo que minha vida está tomando, J`y pense. Minha mãe morreu há poucas horas, meu pai há muito... Agora, nada mais tenho em minha vida.

O olhar dela estava fixo no chão e lágrimas silenciosas corriam por seu rosto pálido.

—Nada? Não acredito!

—Não há absolutamente nada mais em minha vida que valha a pena. – Ela deixou os ombros penderem, sem energia para mantê-los erguidos e retos, como sua mãe lhe havia ensinado.

—A vida é um dom, minha cara, um dom que só vale a pena ter quando é passado adiante. Com toda a certeza, vai encontrar uma forma de fazê-lo.

Amie parou de súbito e o encarou.

—Talvez o senhor tenha razão, monsieur. Talvez eu devesse apenas voltar para casa e dormir. As coisas sempre parecem piores à noite, não?! – Ela sorriu e secou as lágrimas. – Merci beaucoup!

Erguendo-se na ponta dos pés, pois ele era bem maior do que ela, Amie depositou um beijo no rosto do cavalheiro e saiu correndo, de volta para casa.

E ele ficou vários minutos parado ali, em meio à névoa da madrugada, questionando se aquilo tudo realmente acontecera.

Embora não tivesse conseguido observar o semblante da moça com clareza, os magníficos olhos dourados ficariam gravados em sua mente por muito tempo.

02 de Dezembro de 1886

A doença dos pulmões finalmente roubou minha mãe de mim. Não sei se me sinto terrivelmente triste ou aliviada. Mamãe sofria muito, acho que foi melhor assim. O médico disse que, geralmente, a tuberculose arrasta-se por muito mais tempo.

As pessoas na vila me olham, algumas sentem pena, outras pensam que Nat deveria vir cuidar de mim. Pessoalmente, prefiro continuar sozinha. Nathanael só fez mal a mim e à mamãe.

Tive pensamentos horríveis ontem à noite. Por um minuto pensei em dar um fim a tudo. Mas então, um estranho chegou e me salvou. Ele era muito bonito, alto e forte... Disse-me uma coisa que me abriu os olhos. Fez-me ver que sempre há algo pelo que viver. Ele colocou sua capa em meus ombros, para me aquecer e, na pressa de voltar para casa, esqueci-me de lhe devolver. Acho que nunca mais o verei de novo, mas vou guardar sua lembrança e sua capa, assim poderei sentir aquele perfume delicioso e envolvente, que me faz sentir reconfortada e confiante.

Que Deus abençoe o galante cavalheiro que salvou minha vida de muitas maneiras!

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