O hospital sempre foi meu refúgio. Um lugar onde a racionalidade prevalecia, onde eu podia me perder em exames, diagnósticos e cirurgias, afastando-me de tudo que parecia incontrolável. Mas agora, caminhar pelos corredores não era mais um alívio. Cada rosto familiar, cada som das máquinas, cada passo ecoava o vazio que ela deixou. Alby. Eu nunca soube como alguém podia preencher tanto espaço até que ela não estivesse mais nele. Antes, meu apartamento era apenas um lugar onde eu descansava entre turnos. Hoje, era um mausoléu de memórias — dela, de nós, do que nunca dissemos e do que jamais teremos a chance de viver. Entrei na sala de descanso do hospital, onde a luz fria contrastava com o calor abafado do ambiente. Poderia ter um quarto só para mim, mas sempre me permitir estar aqui para a necessidade de alguma emergência ou algo mais. Meus colegas conversavam sobre casos difíceis e procedimentos desafiadores, mas eu mal conseguia ouvir. Meu trabalho, que antes me preench
A cidade era um contraste perfeito com tudo que eu já conhecera. As ruas eram tranquilas, quase aconchegantes, e o vento parecia sussurrar promessas de algo que eu mal conseguia imaginar: paz. Pela primeira vez em muito tempo, eu sentia como se pudesse respirar sem carregar o peso de ser a Alby que precisava agradar, justificar ou pedir desculpas. Naquela manhã, sentei-me em um pequeno café. O cheiro de café fresco misturava-se com o som suave de música ao fundo, enquanto eu folheava um livro sobre design de interiores. Trabalhar com Luana tinha sido um presente inesperado, como uma janela aberta em meio a uma casa sufocante. Cada página daquele livro era um lembrete de que eu estava aprendendo algo novo, algo que era só meu. Luana chegou pontualmente às dez. Sempre cheia de energia, ela parecia ter o poder de iluminar o ambiente. — Você está com uma cara melhor hoje — comentou ela, roubando sem cerimônia um pedaço do meu bolo de laranja. Eu ri. Algo que, admito, estava
Eu sempre achei que a vida fosse feita de grandes escolhas, como se cada passo dependesse de um destino premeditado, algo grandioso, como se fosse um livro escrito antes mesmo de abrirmos a primeira página. Eu vivi muitos anos achando que meu caminho já estava traçado, que eu sabia quem era, onde estava indo e o que queria da vida. Mas aqui, nesta cidade nova, tudo parecia um campo em branco. E, para minha surpresa, é nesse espaço em branco que comecei a me encontrar de verdade.Minha nova vida começou com algo simples: uma pintura. Eu não sabia o que estava fazendo, nem por que estava fazendo, mas, de algum jeito, as cores foram sendo misturadas como se tivessem uma razão própria. O azul do mar, o dourado do sol. Cada pincelada parecia me levar a um lugar dentro de mim que eu nunca imaginei explorar. Fazia anos que não me aventurava em frente a um cavalete e foi singular me ver novamente desbravando uma tela em branco.Sempre fui apai
Há momentos na vida em que sentimos que a alma precisa ser exposta. Eu não sei como explicar isso exatamente, mas foi assim que aconteceu. As primeiras pinceladas na tela pareciam algo simples, quase como um pequeno movimento do pulso. Mas logo tudo se transformou, e eu percebi que a cada cor que eu colocava, eu me revelava um pouco mais. Eu comecei a pintar de uma forma frenética, como se o mundo estivesse se comprimindo e eu estivesse tentando gritar, mas sem palavras. Só com pinceis, tinta e tela.Cada tela era uma explosão de emoções que eu não sabia que tinha. As primeiras eram incertas, tímidas, como quem testa a água de um rio gelado. Eu estava tentando entender o que estava se passando dentro de mim, tentar captar uma sensação sem saber ao certo o que seria. Eu pintava, e as cores fluíam, e a cada uma eu sentia uma parte minha se soltar, como se estivesse deixando um pedaço de mim na tela, pedindo para ser visto.A primeira tel
Era uma manhã como qualquer outra, ou pelo menos, eu pensei que seria. Eu estava na minha pequena cozinha, preparando um café forte, meus pensamentos ainda sobre a tela que estava finalizando. Cada pincelada era um convite para o desconhecido, uma dança entre a luz e as sombras que eu estava começando a entender. A arte me consumia, mas de uma forma que eu gostava. Era como se eu tivesse encontrado uma linguagem secreta, um código que só eu sabia decifrar.Eu ainda estava imersa nas minhas cores quando ouvi a campainha tocar. Levantei-me, esperando ser mais um vendedor ou o entregador da farmácia. Mas quando abri a porta, Luana estava ali, com um sorriso largo e um homem ao seu lado. Eu o reconheci instantaneamente, afinal ele havia estado aqui algumas semanas atrás. Não mencionei o ocorrido com minha amiga, achando que não devia dar tanta importância a um passeio no parque a noite, uma boa conversa sobre arte e um sorvete sem ne
Eu me peguei pensando em Alice. Não aquela Alice de um livro infantil, mas a Alice que me foi confiada. A Alice que passou a ser minha razão de viver. A Alice que eu passei a criar, a educar, a ensinar, a que ganhou vida em minha mente ao longo de tantos dias solitários, e que agora, de alguma forma, começou a se materializar naquelas telas em branco que eu tanto temia.Alice era uma menina forte e vulnerável ao mesmo tempo. Ela enfrentava o desconhecido, sem saber o que estava por vir, mas com uma coragem silenciosa que me tocava profundamente. Eu a via como alguém que nunca se rendia, que desafiava o escuro, buscando sempre uma luz. Essa Alice me atraía, mas também me assustava, porque eu sabia que, para representá-la em cores, eu precisaria me deixar levar para lugares dentro de mim que eu ainda não havia explorado.Quando comecei a pintar, a sensação foi quase visceral. Cada pincelada que tocava a tela parecia uma extensão d
Nunca imaginei que isso aconteceria. Quando comecei a pintar, a ideia de expor minhas obras parecia um sonho distante, uma fantasia que eu tentava ignorar. Eu estava feliz apenas criando, entre as cores e os pincéis, vivendo no meu próprio mundo. Mas agora... agora estava prestes a acontecer. A minha primeira exposição. Minha. Exposição.Era um sábado, um dia quente e abafado. O tipo de dia em que o ar parece pesar no peito. Eu estava no pequeno estúdio que mandei em casa para trabalhar, em frente a uma das telas que eu considerava minha favorita. A série de Alice estava ali, diante de mim, mas, de repente, ela parecia outra coisa. Não mais as obras de uma mulher que tentava se encontrar, mas algo mais grandioso. Algo que eu não sabia se estava pronta para lidar.Eu passei as mãos na frente do rosto, como se pudesse afastar a sensação de desconforto que estava me consumindo. O evento seria no final da tarde, na
A noite estava fresca, com uma brisa suave que acariciava o meu rosto enquanto eu caminhava em direção ao restaurante escolhido por Luana para comemorar o sucesso da exposição. Eu ainda não conseguia acreditar que as coisas haviam acontecido tão rápido. Como se as estrelas tivessem se alinhado de uma forma que, até então, parecia um sonho inatingível. A galeria lotada, os elogios, as conversas sobre as minhas pinturas, sobre Alice e tudo o que elas representavam... era surreal.Quando cheguei, a porta do restaurante se abriu diante de mim, e o brilho quente das luzes internas me envolveu. O lugar estava decorado com elegância simples, mas tinha aquele toque de aconchego que fazia você se sentir à vontade desde o primeiro passo. Luana estava lá, com um sorriso tão largo que parecia que ela não cabia dentro de si mesma, radiante como sempre. Ela me puxou para dentro, e logo me vi no centro de uma celebração que, por um momento, parecia