Prólogo – Imaginação
Ter o mundo nas mãos, em extrema evidência, pode ser mais perigoso do que ter mãos quase imperceptíveis no mundo. Se na segunda opção é muito difícil manter uma simples vida no planeta; a primeira pode, num breve momento de descuido, erradicar facilmente toda a vida nele.
Essa linha de raciocínio atravessou minha mente e foi suficiente para me laçar e me lançar numa jornada interna.
Apaguei as luzes do quarto. Coloquei uma música relaxante para tocar no computador e desliguei a tela. Acendi algumas velas. Sentei com as pernas cruzadas e fechei os olhos. No instante seguinte eu estava tanto no meu quarto, quanto estava longe.
Era tudo cinza ao meu redor, em várias tonalidades oscilantes, em todas as direções. Mas havia brilhos aqui e ali, semelhantes a relâmpagos. Acima e abaixo. O chão parecia um espelho do céu. Um zunido estranho se apagava em meus ouvidos. Havia estrondos, surdos e distantes, aparentemente vindos tanto de baixo como do alto. Eram semelhantes a trovões.
Me virei e vi um espelho. Tinha o tamanho de uma porta emoldurada por prata trabalhada. O espelho era o único objeto ali naquela vastidão cinza. O outro eu dentro dele acenou e fiz o mesmo, em resposta. Ele sorriu e perguntou:
– Lembra da primeira vez que estivemos aqui e o que sentimos?
Acenei com a cabeça e respondi:
– A sensação imediata foi de extrema paz. Uma fuga de tudo, exceto do medo de não entender nada daquilo. Não era como estarmos vivos, mas de alguma forma sabíamos que não era como estarmos mortos.
Ele concordou e ampliando o sorriso, completou:
– E a paz se foi. Uma euforia cresceu em nós como uma aranha a arranhar nossa alma com suas patas afiadas, com intenção de nos envolver num aperto de loucura. O medo se tornou imenso, mas, a vontade de compreender tudo aquilo foi maior. E no fim das contas percebemos que a aranha era uma parte de nós e por isso, controlável.
– Imaginação – falei.
– Sim – ele concordou, sorrindo como eu. Claro que concordaria. E desdobrou o significado da palavra, dizendo: – Mentiras e verdades se complementando. Fazendo amor entre os lençóis de nossa mente, sem o menor pingo de vergonha.
Eu ri, mas não pude sustentar tal riso por mais de um segundo. E falei, ao me aproximar do espelho:
– E nem toda a diversão, entrelaçada à jornada do pirata Ônix, foi o bastante para me poupar da dor de quem tira a própria máscara e encara o espelho mais nítido no fim de um espetáculo.
Meu reflexo fez uma reverência enfática em agradecimento e de perto eu via fios grisalhos em seu cabelo e cavanhaque. Ele refletia o meu porvir, como tinha de ser. E ainda escutando o eco do passado, falei ao meu eu futuro:
– E nem a lembrança de toda a risada e nem todo o charme da maquiagem do pirata amenizaram a dor da máscara recém desgrudada da pele. Sangue escorreu das feridas feitas por mim mesmo. Feridas na alma, sentidas na carne. Lâminas e água salgada do mar.
Meu reflexo olhou para o alto. Mexeu no cavanhaque e, como um ator que relembra uma fala, recitou:
– A verdade, por mais divertida que seja, quando vertida numa taça traiçoeira, há de inverter nossas próprias concepções de nós mesmos. Embriaga e nos obriga a encararmos nossos segredos mais íntimos. Vulneráveis, nos encolhemos feito embrião na barriga de nossas mães. Precisamos renascer na dor de morrer um pouco para nós mesmos. Nos desfazermos de nossas ilusões.
Concordei, recuperei o sorriso e disse:
– E foi então que a aventura fantástica se tornou ainda mais fantástica, não é?
– E ainda assim... exata – ele disse e fez um garrafão aparecer do nada, entre suas mãos, do outro lado do espelho. Era translúcido e eu podia ver o interior.
Havia um feto bem desenvolvido, embora não ultrapassasse um palmo, em tamanho. Estava de olhos fechados, em concentração. O cordão umbilical se transformava numa planta e a planta numa serpente, a rodear o pequeno corpo. Da cintura para baixo, o feto não tinha pernas, em verdade. A parte inferior de seu corpo se transformava, de forma bastante harmoniosa, em uma mão fechada. A serpente-planta sustentava o feto-mão no centro do garrafão, equilibrando-o na ponta de sua língua bifurcada. Numa das pequenas mãos do feto, diante dele, estava uma pequena maçã, como se ele a ofertasse. Na maçã, porém, havia um punhal cravado a atravessá-la, assim como atravessava, também, a mãozinha do feto, embora ele parecesse sereno. Pela lâmina do punhal escorria sangue e uma gota na sua ponta estava prestes a pingar.
Arregalando os olhos, falei:
– Vai dar um belo trabalho explicar isso em palavras... no formato de uma história. Será que vale mesmo o esforço?
Aquela hesitação não surpreendeu o meu reflexo futuro, claro que não. E ele respondeu, pacientemente:
– Você sabe a minha resposta, já que estou aqui. E sabe que um dia a minha resposta será também a sua.
Quase me desculpando, mesmo sem precisar, falei:
– Claro que já entendi o poder da imaginação: vivenciar de forma segura acontecimentos que, mesmo ilusórios, podem mexer com nossa realidade. Mas será que você pode me dizer algo que eu ainda vou descobrir, só dessa vez?
Ele não foi condescendente, mas respondeu:
– Não. Vou te lembrar, porém, de algo tão importante quanto o que acabou de dizer: O que é uma realidade, senão um faz de conta coletivo? Nesse caso, sua ilusão, sua fantasia, uma realidade individual, se torna uma realidade um tantinho coletiva quando você a compartilha. Toda fantasia individual pode afetar a fantasia coletiva, chamada de realidade, porque ela carrega verdades válidas tanto para o individual quanto para o coletivo. E essa – ele ergueu o garrafão um pouco – tem muitos ensinamentos que podem afetar positivamente uma quantidade considerável de vidas.
Acenei minimamente com a cabeça, embora concordasse ao máximo e falei:
– Obrigado. De fato, já sabia disso, mas são traços de um desenho que precisam mesmo ser reforçados de quando em quando. Muitas mãos esfregando ele o tempo quase todo acaba borrando um bocado.
Meu reflexo também sabia disso e simplesmente me ofertou o garrafão. Eu o peguei através da borda do espelho.
Abri o garrafão e o aroma era de tempestade vindo em minha direção. Tinha o peso de milhares de vidas. Isso me assustou um pouco e meu reflexo falou:
– Me pediu para eu dizer algo que ainda iria aprender, pra te encorajar. O que posso dizer é que aprendizados são como frutos. Não surgem do nada. Nossas vivências dão forças a eles para crescerem e amadurecerem. Quando alguém te faz uma pergunta sobre algo; o que você faz é colher um fruto desse tema, no seu pomar de vivências, e o seu saber é a resposta que pode oferecer a quem fez a pergunta. E o sabor da resposta-fruta dependerá do quanto ela foi desenvolvida. Então, o que me diz sobre desafios?
Fechei os olhos por um instante e saboreei a fruta que poderia responder a pergunta e falei:
– Todo desafio traz a única arma capaz de superá-lo. O propósito de cada desafio é oferecer o conhecimento que irá desfazê-lo. Encontrar essa arma e conseguir usá-la são as partes mais desafiadoras e... interessantes.
Ele bateu algumas palmas e falou:
– Eu não responderia melhor.
Rindo, perguntei:
– Que é uma forma de dizer que vou acreditar nessa resposta por mais algum tempo ainda, não é?
Ele fez uma careta discreta e falou:
– E vamos torcer para a razão disso ser por termos encontrado uma resposta madura.
Olhei para o garrafão e perguntei:
– O que faço com isso?
Ele deu de ombros, como se muitas respostas servissem, e ofereceu uma:
– Se eu fosse você, viraria num só gole.
Bufei um riso. Coloquei a bico da garrafa na boca e ergui a parte inferior para tentar engolir... aquilo lá dentro. A sensação, porém, foi de que eu fui engolido pela garrafa... caindo para cima.
A crescente sensação de me encolher me fez lembrar da Alice no país das Maravilhas e me vi diante do feto-mão dentro da garrafa. A agora bebê tinha um tamanho real, assim como a maçã e a serpente-planta. A gota do sangue na ponta do punhal finalmente caiu, numa velocidade reduzida.
Coloquei a ponta do dedo sob a gota e quando ela tocou meu dedo tudo explodiu num brilho intenso que me consumiu...
Por um instante achei que estava caindo em todas as direções, mas enxerguei letras de luz no meio do brilho que se sustentava e quase me cegava. Entendi que as letras faziam parte de frases, mas elas riscavam o espaço de luz cruzando em todas as direções numa velocidade estonteante.
Percebi que eu não tinha mais um corpo, uma forma. Era apenas pensamento, mas me concentrei e, feito um pequeno príncipe, lacei um desses riscos de luz na luz e o li.
“Meu papel aqui é meramente tentar fazer com que entenda o seu.”Mas a frase escapou. Eu não ia conseguir. E por isso chamei pelo velho Holdur, um personagem criado por mim para contar as minhas histórias. O criei para ser capaz de fazer isso. Ele viveu naquele tempo futuro imaginado.
Ele respondeu ao meu chamado e o timbre de sua voz fez ecoar cores. Cada palavra dita ajudava a construir um cenário naquele branco intenso, como tinta viva jogada numa tela etérea tridimensional.
Era como assistir uma obra de arte ganhando vida. Um mundo extremamente nítido, em som, imagem e sensações, surgiu. E me deixei levar pela narração de Holdur que me contaria o que eu precisava saber para obter respostas sobre questões importantes.
espostas sobre questões importantes.
Não posso contar a história de Dáverus, o deus, sem contar a história de Irelay, o humano. Saber a razão de Irelay ter se tornado Dáverus é tão importante na escolha que você precisa fazer, quanto saber o que Dáverus fez depois de ter se tornado tal deus.Mas para chegar em Irelay, preciso falar brevemente sobre mim, uma vez que fui o seu mestre.Eu nasci há 483 anos atrás. O Novo Tempo era novo, tinha treze anos apenas. Eu não esperava viver tanto como já vivi. Principalmente porque me tornei um homem amargurado, numa guerra entre as máquinas e os humanos. As máquinas eram objetos inteligentes alimentados com fontes de energia variadas, que hoje em dia seriam vistas como formas de magia.Acreditei que morreria naquela guerra que terminou no ano 82. Estava errado, no entanto e graças ao poder de uma deusa
Quando Irelay me pediu para treiná-lo, o avisei que deveria ficar na ilha mística, sem notícias do mundo externo, por um ano.Seriam necessárias as quatro estações para ele compreender os quatro elementos. No final de seu treinamento, ele deveria ser capaz de passar no meu teste. Não seria fácil, mas ele estava determinado, como o verão pedia. Era o ano 197 do Novo Tempo.Não havia coincidências. Ele havia chegado três dias antes da melhor estação para iniciar um treinamento para alguém como ele, destinado a grandes feitos.Irelay estava em pé, diante de mim, nas primeiras horas do seu primeiro dia de treino. Estávamos no alto de um monte e ainda estava escuro ao redor dele, tanto quanto em sua mente despreparada. A diferença é que faltava pouco para o amanhecer do dia, mas muito para a luz tomar
Uma única lágrima escorria pelo rosto moreno emoldurado pelo cabelo negro. Os olhos eram da cor de mel e ela era chamada de Kamyra. E ela disse ao seu amado Irelay:– Você prometeu que não me deixaria.Ele tinha a expressão de angústia profunda estampada no rosto e falou:– Meu amor, o meu reino foi tomado pelo Lord Fell M’og...– Não sou insensível à morte do seu pai, mas o seu reino passou a ser este, quando se casou comigo e veio governá-lo comigo.– Governá-lo apenas enquanto Fell M’og não chega?! – Irelay se exaltou. Olhou as mãos tremendo e se sentou na luxuosa cama. O quarto iluminado apenas por velas.Colocou a mão aberta sobre o peito por um instante. Inspirou profundamente, fechou a mão sobre o peito, como se tivesse arrancado algo invis&ia
Irelay treinava todos os dias para limpar sua mente e passei nossos combates da aurora para o crepúsculo.Dia após dia ele apanhava. Tinha muita coisa na cabeça.Na última noite de verão comíamos a minha especialidade: batatas negras preparadas numa fogueira. Comemos em silêncio próximos a um riacho raso que cantava para nós. Com a barriga feliz, fui dormir ao som das águas passando pelas pedras.Irelay estava mirando o fogo, tentando entender sua essência. O fogo cresceu e por um instante ele achou que estava obtendo poderes sobre aquele elemento, mas logo viu a silhueta de uma mulher tomar forma nas chamas e de repente ela deu um passo adiante, para espanto do meu pupilo.A mulher estava nua. Seus olhos eram vermelhos, o cabelo também. A pele rosada, a luz da lua era suficiente para Irelay ver o suficiente para precisar prender o fôlego por um instante.Sorrin
Quando parou diante de mim, pela primeira vez, Irelay já carregava há dias o peso do mundo nas costas.– Foi você, então, quem conseguiu encontrar a ilha de Phemba e, há dias, vem subindo essa Montanha Aranha. – Falei, debaixo de meu chapelão de palha, quando um jovem ofegante parou diante de mim. Sentado estava e sentado fiquei. – Então é você quem perturba minha paz...– Não vim até aqui para que o senhor perca a sua. Vim para que eu encontre a minha. – Ele respondeu, tentando recuperar o fôlego.– Superou a guardião da montanha – e ele fez uma careta se lembrando do quão difícil foi escapar de uma aranha –, assim como superou todas as minhas armadilhas do caminho; mas somente quando superar as próprias, encontrará a paz que procura – afirmei, antes de morder uma fruta
O verão se foi. Phemba não mais apareceu para Irelay com seu espectro de fogo. Meu discípulo resolveu esquecer. Continuava seu treino.Com a chegada do outono, vinha a segunda parte de seu desafio. Dei a ele o segundo totem, o da serpente, e lhe ensinei a oração a ser entoada como primeiras palavras dos dias dos próximos meses. Ele as decorou e as repetiu sozinho, por algumas vezes:Outono;Sopra teu vento.Leva meu sono,meu lamento.E me mostre como.Que eu veja na perda, um presente.Não mais dono.Livre da minha pele, como a serpente...Estava no momento de mostrar ao meu discípulo que ele aprenderia não somente comigo. O levei até aquela que seria sua mestra por aquele dia: uma árvore.Diante daquela planta, Irelay inspirou profundamente, não por impaciência. Àquela altura j&
Daigan lutou como pôde, até aquele dia. Era o ano 198 do Novo tempo. Seu amigo, Irelay, havia partido há pouco mais de um ano. Embora pertencesse ao Alto Povo das Florestas, Daigan estava liderando os guerreiros dos reinos das planícies, nos quais tinha muitos amigos. Lord Fell M’og, no entanto, tomava reino após reino.A Espada da Morte, empunhada por ele, era uma arma terrível. Um simples ferimento causado por ela expulsava a alma do corpo atingido. A vontade do portador da arma mágica passava a dominar tal corpo. Assim, o exército de Fell M’og crescia vertiginosamente a cada reino derrotado.Quando Daigan percebia não poder fazer mais nada para salvar um reino, recuava com alguns sobreviventes para se juntarem o exército do próximo reino.O jovem adulto do povo das florestas era carismático e muito inteligente. Sua liderança garantia seman
Um pouco antes do fim do outono, pedi a Irelay cortar uma boa quantidade de lenha, alegando ser um exercício, mas a verdade é que estava cada vez mais frio e eu queria uma fogueira grande quando anoitecesse. Ele usava um machado e quando fez uma pausa para endireitar as costas, lá estava ela. A mesma mulher nua, embora agora tivesse o cabelo marrom feito terra e colado ao corpo no qual serpenteava e feito serpente ele se moveu quando ela veio em sua direção, sempre colado ao corpo do pescoço à coxa da perna esquerda. O tom da pele era moreno. Ele engoliu em seco, achando que aquele espectro de Phemba estaria irritada com ele, mas reafirmou para si mesmo de que elas estavam separadas e tentou ser casual, ao dizer: – Olá. Ela nada respondeu e continuou a se aproximar e parou a poucos centímetros dele. Ela olhava para os olhos dele e para os lábios alternadamente e isso o intimidou. Parecia que ela iria beijá-lo a qualquer instante ou que pedia por