Irelay treinava todos os dias para limpar sua mente e passei nossos combates da aurora para o crepúsculo.
Dia após dia ele apanhava. Tinha muita coisa na cabeça.
Na última noite de verão comíamos a minha especialidade: batatas negras preparadas numa fogueira. Comemos em silêncio próximos a um riacho raso que cantava para nós. Com a barriga feliz, fui dormir ao som das águas passando pelas pedras.
Irelay estava mirando o fogo, tentando entender sua essência. O fogo cresceu e por um instante ele achou que estava obtendo poderes sobre aquele elemento, mas logo viu a silhueta de uma mulher tomar forma nas chamas e de repente ela deu um passo adiante, para espanto do meu pupilo.
A mulher estava nua. Seus olhos eram vermelhos, o cabelo também. A pele rosada, a luz da lua era suficiente para Irelay ver o suficiente para precisar prender o fôlego por um instante.
Sorrin
Quando parou diante de mim, pela primeira vez, Irelay já carregava há dias o peso do mundo nas costas.– Foi você, então, quem conseguiu encontrar a ilha de Phemba e, há dias, vem subindo essa Montanha Aranha. – Falei, debaixo de meu chapelão de palha, quando um jovem ofegante parou diante de mim. Sentado estava e sentado fiquei. – Então é você quem perturba minha paz...– Não vim até aqui para que o senhor perca a sua. Vim para que eu encontre a minha. – Ele respondeu, tentando recuperar o fôlego.– Superou a guardião da montanha – e ele fez uma careta se lembrando do quão difícil foi escapar de uma aranha –, assim como superou todas as minhas armadilhas do caminho; mas somente quando superar as próprias, encontrará a paz que procura – afirmei, antes de morder uma fruta
O verão se foi. Phemba não mais apareceu para Irelay com seu espectro de fogo. Meu discípulo resolveu esquecer. Continuava seu treino.Com a chegada do outono, vinha a segunda parte de seu desafio. Dei a ele o segundo totem, o da serpente, e lhe ensinei a oração a ser entoada como primeiras palavras dos dias dos próximos meses. Ele as decorou e as repetiu sozinho, por algumas vezes:Outono;Sopra teu vento.Leva meu sono,meu lamento.E me mostre como.Que eu veja na perda, um presente.Não mais dono.Livre da minha pele, como a serpente...Estava no momento de mostrar ao meu discípulo que ele aprenderia não somente comigo. O levei até aquela que seria sua mestra por aquele dia: uma árvore.Diante daquela planta, Irelay inspirou profundamente, não por impaciência. Àquela altura j&
Daigan lutou como pôde, até aquele dia. Era o ano 198 do Novo tempo. Seu amigo, Irelay, havia partido há pouco mais de um ano. Embora pertencesse ao Alto Povo das Florestas, Daigan estava liderando os guerreiros dos reinos das planícies, nos quais tinha muitos amigos. Lord Fell M’og, no entanto, tomava reino após reino.A Espada da Morte, empunhada por ele, era uma arma terrível. Um simples ferimento causado por ela expulsava a alma do corpo atingido. A vontade do portador da arma mágica passava a dominar tal corpo. Assim, o exército de Fell M’og crescia vertiginosamente a cada reino derrotado.Quando Daigan percebia não poder fazer mais nada para salvar um reino, recuava com alguns sobreviventes para se juntarem o exército do próximo reino.O jovem adulto do povo das florestas era carismático e muito inteligente. Sua liderança garantia seman
Um pouco antes do fim do outono, pedi a Irelay cortar uma boa quantidade de lenha, alegando ser um exercício, mas a verdade é que estava cada vez mais frio e eu queria uma fogueira grande quando anoitecesse. Ele usava um machado e quando fez uma pausa para endireitar as costas, lá estava ela. A mesma mulher nua, embora agora tivesse o cabelo marrom feito terra e colado ao corpo no qual serpenteava e feito serpente ele se moveu quando ela veio em sua direção, sempre colado ao corpo do pescoço à coxa da perna esquerda. O tom da pele era moreno. Ele engoliu em seco, achando que aquele espectro de Phemba estaria irritada com ele, mas reafirmou para si mesmo de que elas estavam separadas e tentou ser casual, ao dizer: – Olá. Ela nada respondeu e continuou a se aproximar e parou a poucos centímetros dele. Ela olhava para os olhos dele e para os lábios alternadamente e isso o intimidou. Parecia que ela iria beijá-lo a qualquer instante ou que pedia por
O outono foi uma estação proveitosa. Boa parte dela, Irelay passou enterrado, literalmente, em seu treinamento, para entender aquele elemento. Horas com terra cobrindo o corpo, quase completamente. Apenas boca e nariz expostos para respirar. Imerso em escuridão.E, como não podia deixar de ser, o treinamento se tornaria mais rigoroso no inverno.Em seu primeiro dia da estação gelada, ele me entregou o medalhão Totem de serpente, e entreguei a ele o Totem do peixe, revelando a oração dos dias dos próximos meses:Inverno;Gelo e escuridão.Mergulho no inferno.Reclusão.Mostre-me a realidadedas minhas ações.Com os olhos do peixe, mesmo na profundidade,que eu enxergue nas duas direções.Seus olhos estavam calmos. O tipo de calmaria que vem antes de uma violenta tempesta
No meio do inverno a ilha de Phemba estava congelada. Levei Irelay para um lago e andamos sobre a espessa camada de gelo que se formou. Falei para ele se despir e ele hesitou. Esperei e ele tirou a roupa. A expressão de raiva estampada na cara. Dei alguns passos e soquei o chão cristalino em três lugares. Irelay observava, tremendo de frio e sacudindo a cabeça em apreensão.– Para vencer um obstáculo é preciso enfraquecê-lo – falei, quentinho debaixo do meu casacão de peludinho. E continue falando, ao parar num quarto ponto afastado dos outros: – Eu poderia ter socado quatro vezes o mesmo lugar e não teria obtido esse resultado!Soquei o chão e nada aconteceu além de novas rachaduras se juntarem às outras. Dava pra ver a grande área toda trincada, mas era s&o
A insinuação constante de sorriso na boca de Fell M’og desapareceu. Fosse como fosse, já havia ofertado seus argumentos. Tentou, sinceramente, fazer Irelay entender quão ínfima era sua chance de vitória ali, cercado como estava, pelas forças do Lord. Quando falou novamente, suas palavras impregnavam o ar com a certeza de um fim:– Retiro o acordo que poderíamos ter feito.– E eu vou retirar de você todo esse poder que carrega e que usou de forma deturpada.– Nenhum de nós vai recuar. Em alguma coisa nós concordamos, pelo visto – Fell M’og bufou o que não chegou a ser um riso. – Não somos tão diferentes assim e não há espaço para os dois. Hoje você vai encontrar a morte.– Sim – Irelay falou. – A sua.A última luz fraca do Sol no céu nub
O inverno de 197 do Novo tempo foi intenso. Tudo dói mais no frio. Corpo e alma. Mas Irelay sobreviveu ao rigoroso treinamento gélido para alcançar a primavera. Entreguei a ele o medalhão com o pássaro. O último Totem.Um guerreiro deve conhecer a natureza do mundo e aceitá-la em si mesmo. Para poder voar, um pássaro deve vencer seu maior medo. O de não ser capaz.Se um pássaro acha que está pronto para voar, mas caí, ele terá de se empenhar ainda mais, batendo fortemente suas asas, sem o vento para ajudá-las, ou se tornará o alimento de outro animal. Uma vez devorado, seu corpo se torna energia para outro corpo e sua alma precisará recomeçar. Terá aprendido que deve fortalecer suas asas, antes de tentar voar. Isso só é possível se não houver lamento e, para não lamentar, o guerreiro deve entender que alma &eac