Capítulo 1

JOANA

Alguns dias antes...

Dia 30 de dezembro. Motivada por um vídeo da internet, resolvi fazer a minha lista de metas para o ano novo. Futuro, novas possibilidades... Apesar da empolgação que o vídeo provocara em mim, meu cérebro fez automaticamente uma breve retrospectiva dos últimos meses. Sabe quando o fim do ano realmente simboliza o fim de tudo? No meu caso ele veio pra arrasar. Na verdade, foi uma tremenda catástrofe! Todos os meus planos e sonhos desmoronaram de uma vez. Eu, que estava tão ansiosa pelo término da faculdade após os cinco longos anos de dedicação, com muito custo sorri para as fotos da formatura. Agora eu era uma advogada formada, mas sem emprego e sem namorado.

Tudo começou a desmoronar em novembro, no dia 11. “Que gracinha! Hoje é 11/11, tudo igualzinho. Deve ser um dia de sorte”.

O primeiro sinal de que eu morreria de fome se trabalhasse como vidente ou numeróloga é que, no exato instante em que coloquei os pés no escritório, meu chefe me chamou até a sala dele. O motivo? Avisar que seria desligada assim que eu me formasse. Ou seja, aquele seria meu último mês no escritório Taylor & Madison Associados. Ele elogiou muito o meu trabalho, disse que me recomendaria para escritórios de amigos e que a minha recolocação seria muito fácil apesar da crise. Além de contar com as boas chances de convocação em algum concurso público, já que eu fizera alguns e aguardava os resultados. Eu tinha alguma esperança de ser contratada ali, mesmo sabendo que as possibilidades seriam bem remotas. Eu meio que previa que isso aconteceria, uma vez que nenhum estagiário havia ficado após o término da faculdade enquanto eu estava lá. Somente a Clara e o Pedro conseguiram, mas isso já tinha mais de um ano e meio. 

Aquele seria o mês para colocar todas as coisas em dia e treinar o estagiário que ficaria no meu lugar. Após a notícia, tentei parecer segura, sorria para todos, mas estava muito triste. Olhava tudo ao meu redor com sentimento de despedida. De dizer adeus para as pessoas, móveis, corredores e até mesmo para as pastas pesadas dos processos. Foram dois anos de prazos apertados, correria, mas de muito aprendizado. Eu tinha feitos outros estágios antes, mas nada como no escritório Taylor & Madison, pois aprendi de tudo um pouco: direito trabalhista, administrativo, tecnologia da informação e comercial.

À noite, Matheus me chamou até a lanchonete da faculdade. Eu estava mesmo querendo desabafar com meu namorado sobre o fim do estágio. Não tive nem cabeça para m****r uma simples mensagem de W******p para ele durante todo o dia. Porém, assim que eu me sentei ao seu lado, percebi que algo não estava legal. E, em menos de quinze minutos de conversa, outra parte do meu mundo começou a se despedaçar: ele estava terminando comigo.

Comecei a namorar um pouco tarde em comparação às outras garotas. Matheus foi o meu primeiro namorado, aos 18 anos. Enquanto minhas amigas do colégio conheciam seus primeiros amores e suspiravam pelos mocinhos dos filmes românticos, eu só pensava em entrar para a faculdade de direito da USP. Passei todo o ensino médio focada nos livros e só me permitia me distrair nos feriados para ir ao cinema, festas de aniversários ou maratonar séries da Netflix. O resto do tempo fora dedicado exclusivamente para realizar todos os simulados que apareciam na minha frente. O ponto positivo disso tudo é que consegui passar nas primeiras colocações e realizei meu grande sonho. 

Conheci Matheus no terceiro período, quando ele conseguiu transferência para o turno da noite. Era meio nerd, assim como eu, então a identificação rolou de imediato. Estudar direito na USP era o sonho de ambos, então aproveitamos ao máximo todos os eventos, seminários, além de fazermos todos os trabalhos juntos. Quer dizer, eu fazia 70% dos trabalhos, mas não me dei conta de que estava sendo explorada. Essa percepção veio tarde demais.

Quatro anos de namoro... Eu já me via casada com ele, apesar de nunca termos falado claramente sobre esse assunto. Não tinha como pensar de forma diferente, era como se fosse um quebra-cabeça de peças perfeitas: dois advogados jovens, sócios de um escritório fantástico, e a cereja do bolo seria uma matéria bafônica na TV como “empreendedores do ano”.

Mesmo sem ele saber, quando completamos um ano juntos, passei a guardar 30% do dinheiro recebido dos estágios pensando no vestido, enxoval e todo o resto. E então, depois disso tudo, ele me dizia com toda a calma, que conheceu a filha do chefe numa festa de confraternização e que estão apaixonados? Coincidência ser justamente a filha do chefe?! Deus, como fui burra! Eu o ajudei a estudar para a prova de seleção do estágio e a jogada final foi conquistar a filha do chefe milionário. Empreendedor? Só se existir a categoria “golpe da namorada rica e emprego garantido”.

Dizem que quando estamos à beira da morte, toda a nossa vida passa diante dos nossos olhos em questão de segundos. Talvez eu esteja exagerando um pouco ao comparar o término do meu namoro com a morte, mas essa tal retrospectiva passou diante de mim como um flash. Ele sempre cansado, alegando trabalhar demais e eu, a idiota, fazendo a maior parte dos trabalhos, garantindo para ambos as melhores notas. Além das horas e horas de estudo no final de semana que antecedeu ao teste do famoso estágio que apresentaria a ele o grande e novo amor da sua vida.

A minha vontade era de derramar todos os vidros de ketchup e mostarda da lanchonete naquele cabelo que só vive impecavelmente arrumado. Fazer uma pasta vermelha e amarela e arruinar aquela camisa social branca junto com a sua gravata preferida. Quatro anos de namoro para ele ter a falta de sensibilidade de terminar comigo no meio da lanchonete da faculdade! Mas, como eu sou uma perfeita babaca, fiquei sem ação. Ele me deu um beijo de despedida no alto da cabeça e foi para a sala de aula, como se nada demais tivesse acontecido. Dei meia volta e, enquanto caminhava até o portão principal, peguei o celular e chamei um Uber, pois minhas pernas tremiam tanto que seria impossível pegar o metrô. Chorei tanto que o motorista me olhava preocupado pelo retrovisor. O choro desabou de vez quando me vi na segurança do meu quarto e dormi de tanto cansaço.

— Pensando na vida, irmãzinha? — João Pedro se escorou na porta do meu quarto e me atirou uma barra de chocolate, me arrancando daquela retrospectiva nada agradável. — Acho que você está precisando disso.

— Como sempre, adivinhando meus pensamentos! — suspirei, enquanto abria a embalagem de chocolate ao leite com cookie. — Estou aqui fazendo minha lista de metas para o ano novo e acabei me lembrando do Matheus. Apesar de tudo, ainda é estranho que ele não esteja nos meus planos.

— Joana, será que eu vou ter que dar umas boas palmadas nessa bunda imensa de gorda?

— Eu gosto do tamanho da minha bunda, tá legal? Já senti bons olhares de inveja daquelas que se dizem minhas amigas! — Segurei o riso, fingindo que tinha ficado ofendida.

Ele se sentou ao meu lado e fez cara de bravo.

 — Quantas vezes eu vou ter que te dizer que esse foi o melhor acontecimento do ano? Da sua vida? Aquele Matheus é um perfeito idiota e aproveitador. Você se acomodou naquele relacionamento de merda tempo demais. Sempre mereceu coisa melhor. 

João Pedro nunca foi com a cara do Matheus. Apesar do longo tempo de namoro e de ter se esforçado para gostar do ex-cunhado, sempre me apresentou amigos na tentativa de despertar meu interesse por outros caras.

Meu irmão é a pessoa mais legal que conheço. João Pedro é sete anos mais velho do que eu e me senti radiante quando ele me convidou para morar no apartamento da Consolação com ele quando passei pra USP. “Não se preocupe com as despesas. Seu maninho aqui está ganhando bem. Foque nos estudos.”. Nossos pais resolveram voltar para Botucatu para cuidar do pequeno sítio da família.

— Ele foi meu primeiro e único namorado, João. Não tenho muito com o que comparar.

— Por isso eu namorei vários até encontrar o César... — Ele me deu uma piscadinha, já melhorando o humor. — Acho que finalmente encontrei o amor da minha vida.

— O César é lindo. — Não consegui evitar um suspiro. — Às vezes eu acho que estou empatando a sua vida morando aqui. Prometo que assim que conseguir um emprego legal arrumo um apartamento só pra mim.

— Você tá a rainha do drama, hein? Já sei o que você está merecendo para começar o ano com tudo e mudar essa energia de “Oh, vida, oh, céus, oh, azar”. Uma viagem para a praia! Com uns dois ou três mergulhos no mar já limpa todo esse ranço. Até iria com você, mas com o novo projeto no trabalho, só vou conseguir tirar férias daqui a uns seis meses.

— Pode ser uma boa ideia, maninho. Vou ver com alguma amiga da faculdade. De repente ir pra Santos, para a casa de alguém.

— Nada disso. O que você realmente precisa é de uma boa aventura. Sair dessa zona de conforto em que você se meteu. Zona de desconforto, pra te m****r a real. Vai viajar sozinha, dona da própria vida.

— Sozinha?! Mas eu nunca viajei sozinha, tá doido?!

— Joana, você precisa de coisas novas. Pegar um avião, ir para um lugar maravilhoso, conhecer gente nova e liberar essa fera que você domou a vida inteira. Sempre certinha demais. Roupas, comportamento de mocinha da década de 1950, namorou sempre o mesmo cara almofadinha e sem graça. Tenho certeza que você é uma advogada brilhante, que se formou com louvor e com as melhores notas. Mas na faculdade da vida sua nota tá mediana demais.

— Uau! Por que eu ainda fico impressionada com a sua delicadeza? — bufei.  

— Só falo verdades, meu amor. E às vezes a verdade não é nada delicada. Conselho de um milhão de dólares, presta atenção. Você não ficou juntando dinheiro pensando em se casar? O casamento será com você mesma em primeiro lugar. A senhorita vai pegar parte dessa grana e fazer uma viagem. Considere como um presente de formatura. Pensa que eu não percebi que você não curtiu a sua festa?

Uma viagem? Só de pensar em fazer tudo o que ele sugeriu me deu um frio na barriga. Apesar do medo, até que tinha gostado da ideia.

— Tá, vamos imaginar que eu viaje do jeitinho que falou. Agora é alta temporada e tudo deve estar caro. Ou não?

— Tenho uma amiga perfeita pra isso. Ela sempre consegue pacotes de viagens incríveis para o pessoal do trabalho. Vou ligar agora mesmo.

Enquanto ele falava com a tal amiga ao celular, me deu um chega pra lá sem a menor cerimônia e tomou o meu notebook. Entrou em um site de uma agência de viagens na maior empolgação. Abriu várias janelas e alternava entre elas com tamanha rapidez que eu mal conseguia acompanhar as fotos. Até que ele desligou e me puxou para mais perto.

— Aqui está a sua viagem da libertação, Joana.

— Viagem da libertação? — gargalhei. — Você quer me m****r para algum retiro espiritual?

— Libertação dessa Joana travada. E da cor branca azeda. Miriam acabou de me m****r um e-mail com um voucher exclusivo de 30% de desconto nesse pacote. E ainda dá pra parcelar em dez vezes sem juros. Nem Papai Noel tem um presente desses, te garanto.

— E o que tem nessa maravilha aí? — Não conseguia parar de rir com a empolgação dele.

— Uma semana em um resort em Itapuã, pertinho do aeroporto de Salvador. Café, almoço e jantar, tudo incluído. O hotel tem piscinas e uma praia praticamente particular, além de proporcionar alguns passeios pela cidade. É ou não é a viagem da libertação?

Olhei encantada para a tela do computador. As fotos eram deslumbrantes.

— Cadê aquele teu cartão de crédito pra eu fechar a compra?

Pelo tom de ordem que usou, ele realmente não estava brincando.

— Concordo que tudo isso é sensacional, mas eu estou desempregada, lembra? Não vai dar, João Pedro. Esquece esse assunto.

— Esquecer esse desconto em pleno mês de janeiro? Se você perder essa chance eu te interno num manicômio. Ou pior... Eu te despacho no primeiro ônibus pra ir plantar couve e cenoura lá no sítio de Botucatu e aturar a tia Elvira falando das artrites. Se você parcelar, não vai comprometer o dinheiro que tem guardado. Vai dar muito bem para garantir suas despesas básicas até conseguir um novo emprego. Estou mandando, anda! É uma ordem! Pega logo o bendito cartão!

Não é pra menos que meu irmão trabalha com marketing. O poder de persuasão que ele tem é gigantesco. Quando dei por mim, meu cartão de crédito já estava em suas mãos e ele digitava os dados de pagamento. Milagrosamente, ainda tinha vaga para um pacote que começava no dia 7 de janeiro. Aplicado o desconto, o valor da parcela ficou bastante razoável, levando em conta tudo o que era oferecido. Em menos de cinco minutos, quando o e-mail de confirmação chegou, já não havia mais volta. Eu teria apenas alguns dias para comprar biquínis e o restante necessário para passar uma temporada na praia. O ano realmente começaria de forma completamente diferente. Só que eu nem imaginava o quanto...

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