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Um bairro para todos

É um assunto digno de estudo o quando uma criança começa a perceber os rangidos da cama enquanto o pai e a mãe se entregam sobre ela em frenéticas e compulsivas danças a fim de satisfazerem desejos sexuais. Muitos não imaginam o significado disso para a mente desabrochante de uma criança. Alguns mais velhos tentam ignorar o facto. Para essa gente, a criança não sabe nada, é inocente. Mas todas as crianças surpreendem alguma vez na sua vida essa realidade da humanidade adulta. Sobretudo aquelas que nascem e crescem nos subúrbios de Angola. Para nos alertar a propósito, a sagrada bíblia cristã afirma: não nos devíamos esquecer dos gemidos das nossas mães, lembremo-nos de que foram eles que nos geraram.

Entretanto, cá, nos subúrbios do nosso país, as residências são pequenos aglomerados de casinhotas interligadas compostas de pequenos e reduzidos compartimentos compactos num pequeno espaço, onde vigora a regra de dois a cada dois metros de espaço, suposta por Thomas Beames. Nos bairros e nas cidades a realidade é comum. Desde que os brancos abandonaram as urbes, os pretos levaram para elas as suas bitacaias. Aonde vai um homem, também vai a sua cultura, e não é raro ver galinhas, porcos e macacos nas urbes de Angola. Há promiscuidade em todas as cidades desse país. Uma só residência, que pode ter sido concebida para albergar apenas dois ou três indivíduos, é habitada cá por dúzias de pessoas e ou por mais de dois agregados familiares. Avós, pais, filhos, sobrinhos e netos vivendo na mesma casa e partilhando das mesmas privadas. É por isso que as antigas construções foram hoje adulteradas e adaptadas para novas realidades. Não são novas realidades, são realidades antigas levadas à modernidade. É como conceder o direito à viatura a essa gente atrasada: pinta desnecessariamente os vidros, faz dela uma discoteca, e em zonas proibidas usa velocidades de pistas, diante de uma Polícia Nacional que não sabe que isso é transgressão, ou se sabe, quando o sabe, fecha os olhos porque essa é uma realidade assaz comum e apreciada por todos. Assim, as alterações feitas por negros à arquitetura das urbes não se confinam apenas nos muros externos dos quintais. O que acontece dentro das muralhas das cidades de Angola é literalmente assustador.

Além de tudo o mais tem música alta, misturas de aparelhos sonoros e áudio visuais no mesmo local com o volume no máximo, tocando ao mesmo tempo, tem algaraviadas mesquinhas, tem escassez de energia eléctrica (o que tem agravado a confusão por causa dos pequenos geradores elétricos que são abundantes em substituição de uma fonte melhor), muitos mosquitos, morcegos à noite e brigas constantes, enfim, um mundo onde a libertinagem e a pobreza originavam mais libertinagem e pobreza. E a Lwkwakwa não veio para viver à urbe, pois a Tchilombo e o esposo dela, o Betinho, moravam no famoso Kalohombo: um tumultuoso acampamento numa das margens da urbe. O caos que se regista no Kalohombo é devido ao número elevadíssimo de seus moradores. Estima-se que haja hoje mais de meio milhão de habitantes nos dois km quadrados que delimitam o bairro.

E o que favorece esse superpovoamento é, sem sombra de dúvidas, a sua localização geográfica e administrativa. Porque é assim: os que não têm o privilégio de ocupar uma casa nas zonas urbanizadas contentam-se em sentirem-se próximos delas, e assim o Kalohombo, por ser um dos que fica nos limites da cidade, é dos subúrbios mais procurados para se morar em Benguela; muitas vezes sem se ter em consideração as suas limitações populacionais e outros quês fundamentais para uma vivência salutar. São tantas cubatas de adobes e prédios definitivos de blocos erguidos no mesmo espaço perfazendo uma miscelânea confusa e labiríntica. A casa onde a Lwkwakwa veio morar era uma dessas cubatas de adobes, coberta de chapas de zinco. Era composta de três compartimentos: um usado como quarto do casal, outro usado para múltiplas funções, mas sobretudo como sala de estar e mais um que servia de cozinha; num pequeno quintal, com energia eléctrica precária e sem água canalizada.

Quando cá chegou, tudo lhe pareceu estranho ou novo: as pessoas, o ambiente, as estradas afluídas de automóveis… afinal era a Cidade Sede e não um município qualquer do interior. Quando viu pela primeira vez o mar foi tomada por um medo incontrolável e fugiu da visão.

- “Esse rio é demasiado grande, é demasiado extenso; pode vazar, pode bazar, e inundar o mundo, e inundar tudo; e nós todos vamos morrer afogados, sufocados!” – ia imaginando uma enorme avalancha de catástrofes marinhas enquanto se punha em debandada para o Kalohombo, sem se importar por perder-se pelo caminho. Mas, mesmo recentemente chegada, a Lwkwakwa não se tinha perdido na confusão das construções do bairro, e a Tchilombo que a tinha levado à praia encontrara-a em casa, sentada tranquilamente numa cadeirinha de pele de cabra, de fabrico artesanal, que ela tinha comprado quando vieram do interior, das senhoras que ficam à beira da estrada a estabelecerem negócios diversos; agora a Lwkwakwa já se tinha recomposto do medo do mar.

Como o Kalohombo é desses bairros que tem também o privilégio de estar próximo das orlas do oceano atlântico, doravante ela teria o ensejo de enfrentar o mar sem o pânico anterior. Seria apenas uma questão de atravessar com cautela a estrada assaz afluída que separa o Kalohombo da Goa, e estaria a assistir o acolhedor espetáculo que as salgadas-águas do mar brindam aos seus visitantes.

E quando mais tarde se acostumou com o panorama marítimo, porque afinal o ser humano é deveras adaptável, ganhou o hábito de ir à praia e maravilhar-se com o movimento cadenciado e imparável que as águas faziam, umas vezes mais violento, e outras, suave. Mas até esse ponto ela também já estava se adaptando ao ambiente do bairro Kalohombo.

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