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Helena: uma chave para conhecimentos ocultos

Com o tempo ela tinha feito amigas. Tal como tem sido comum acontecer, dentre tantas candidatas só uma se tornou mais íntima.

- Olha, Helena, a minha prima costuma lutar com o mano Betinho quando dormem. – Desabafou ela para os ouvidos da amiga.

- Lutar mesmo?

- Sim, eles fazem barulho com a cama…

- E a tua prima anda chorar?

- Não… ela… ela costuma acordar alegre.

- Eles são casados? – Inquiriu a Helena, curiosa.

- Sim…

- Ah! – Sorriu a Helena – Olha, Lwkwakwa, os mais velhos andam se foder de noite. Aquele barulho que você costuma ouvir é o que fazem quando se fodem. – Quando viu que a Lwkwakwa estava incrédula, continuou. – Oh, você não sabe! Tens razão. Eu já vi os meus pais a se foderem. Eles fazem muito barulho.

As duas crianças conversavam viradas para o mar. Nas imediações da Praia-Morena.

A Helena era a amiga que a Lwkwakwa tinha escolhido como permanente. Apesar de ser da mesma faixa etária, já era boa pessoa, muito livre e frequentava aulas de dança nos bastidores do Grupo Bismas das Acácias, onde se revelava uma exímia e promissora bailarina. Também gostava da praia e tinha um jeito de falar estranho para a Lwkwakwa, talvez fosse por a Helena ter crescido em Benguela, num meio mais evoluído, onde alguns pais não ensinavam às suas crianças a terem medo de um juiz invisível e imaginário.

- Quando você ficar mais velha também vão andar te foder. – Volveu a Helena, alguns segundos depois de prolongado silêncio, serena, como se estivesse a falar de um habitual pequeno-almoço que tinha tomado hoje.

- Quem? – A Lwkwakwa estava apreensiva; as revelações da amiga lhe estavam a despertar a mente e a atiçar mais a curiosidade.

- O teu kamarido.

- Mas assim foder é lutar?

- Não, não é lutar.

Por nunca tê-lo usado, e nunca tê-lo ouvido enquanto esteve no interior, a Lwkwakwa não imaginava que o termo foder era uma dessas palavras proibidas, um palavrão, e banidas dos vocabulários do povo do interior pela igreja e seus afins.

- Foder é pôr kapiça na kacona. – Esclareceu a Helena, a seguir, na mesma tonalidade serena.

Cona e piça eram expressões que a Lwkwakwa sabia proibidas pela sociedade do interior e que não deviam ser usadas sem motivos maiores. Apesar de ali em Benguela, especialmente no bairro Kalohombo, serem constantemente usadas e banalizadas. No Kalohombo era vulgar ouvir “cona da tua mãe” e “piça do teu pai”. Qualquer pessoa, até mais velhos e supostos responsáveis, usava expressar-se assim quando se sentia ofendido ou ultrajado, pagando o mal por uma moeda mais pesada. E através disso ela teve conhecimento de que as duas palavras que não deviam ser pronunciadas no interior sob pena de ser proscrito ou severamente punido representavam órgãos íntimos dos corpos do homem e da mulher.

- Não dói? – Questionou curiosa, emergindo de uma profunda meditação.

- Dói, mas também cuia bue. Se te foderem muito vais ficar grávida.

- Ficar grávida também dói?

- Não, não dói. Só dói nascer…

- Nascer como!?

- Nascer mesmo. Quando as mulheres ficam grávidas, depois nascem. As nossas mães nos nasceram assim.

- Ah, afinal os pais não andam comprar os bebés na igreja e no hospital?

- Isso é mentira. Eu já vi uma senhora a nascer.

- E deus?

- Deus como?

- Deus mesmo!

- Ah! Deus é muito bom, não faz nada… dizem que tem um cadeirão bem grande lá no céu, onde está sentado ao lado do filho dele Jesus Cristo… dizem que se ele sair da cadeira dele para fazer uma coisa o mundo vai acabar porque Jesus Cristo vai sentar nela.

As duas crianças ficaram mergulhadas nesse mundo de incipiente dialética até quando descobriram que era tarde para se apresentarem em casa. A Helena não estava nada preocupada. Era a Lwkwakwa que devia se apresentar cedo em casa para cumprir com deveres e obrigações.

Esse diálogo, para a Lwkwakwa, serviu como uma chave que abre conhecimentos ocultos. E foi para a casa não só preocupada por chegar tarde, mas também para ouvir com mais calma e atenção os gemidos noturnos e o crepitar da cama de ferros do casal que a tutorava.

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