Quando bateram os dois meses previstos pelos médicos, a Helena tinha realmente morrido. Numa certa manhã descobriram ela morta no seu quarto; no seu rosto preservava uma expressão neutra, como alguém que morre com a consciência realmente tranquila. Era evidente que tinha morrido como os deuses, sem traumas e sem desnecessárias preocupações ou como quem aceita sem remorsos que a morte é o inevitável fim de toda e qualquer forma de vida.Na verdade, quando a pessoa, como animal racional superior, descobre e aceita que, ao contrário do que se tem propagado pelos meios sociais, vai ao cemitério ou vai ser queimado ou devorado por insectos e ou por outros animais carnívoros, respectivamente mediante o meio em que se encontre; que afinal não vai a quaisquer ilusórias imortalidades, aceita benevolentemente a morte real. E nesse âmbito, houve óbito no bairro. Para a maioria dos moradores era apenas mais um óbito entre os tantos que costumavam acontecer dia-a-dia por ali. Mas o pai, a
Mas mantemos a ilusão de que o tempo passa e que passam com ele as lembranças e as mágoas. À medida que vamos evoluindo para uma outra realidade, novas imagens vão ocupando a nossa consciência, substituindo nela o lugar das velhas. Passou um mês, passaram dois, três e as más lembranças foram-se obliterando.Mais tarde já se podia falar da Helena como apenas uma terna lembrança. Falava-se só das coisas boas que ela tivera feito quando em vida. E o bairro Kalohombo devia muito a ela. Grande parte da fama de que esse bairro beneficiava hoje advinha do que a Helena um dia no passado tinha feito. Ela tinha elevado o nome do bairro a um nível de destaque na arena provincial e nacional.Mais tarde o Henriques decidiu convidar a esposa à viver com ele. A gravidez já estava muito crescida e ele achava mais conveniente o futuro bebé nascer no lar dos pais. Convidou os pais dele, os pais da Helena e da Lwkwakwa a um simples cerimonial de enlace matrimonial. Não foram nem à igreja n
Depois de ter parido, a Lwkwakwa queria arranjar um emprego. Tinha vontade de trabalhar para auxiliar o marido nas despesas domésticas. Mas este não concordava. Ele queria a sua esposa só para si e para a filha, e garantia tudo o que ela precisasse.- Aliás, já tens carro e casa. Queres trabalhar mais para quê, se eu já trabalho?- Mas, Henry, é que… eu…- Mas quê, meu amor!? Você não é como todo mundo e não imites todo mundo. Você é a distinta Lwkwakwa, única amiga e herdeira da extraordinária Helena, e você não precisa de mais nada, porque eu te amo e não vou morrer agora. Eu quero-te só para mim e para a nossa filha.Chegaram nessa conclusão e ficaram felizes.As extravagâncias sexuais da Lwkwakwa iam além de todas as fantasias que ele havia imaginado na puberdade e quando se masturbava. Nunca tinha imaginado que aquilo aconteceria algum dia com ele. Que a sua Lwkwakwa fosse tão criativa assim. Aliás, nunca tinha olhado para a Lwkwakwa com tanto resp
Ruas plenas de gente. Gente preta, branca, amarela e transparente (tal como ousou muito bem chamar Ndalu de Almeida). O corpo, o copo e o desejo virados para apenas uma realidade: Sexo. Era como se isso fosse já o reino da foda profetizado por Henry Valentine Miller, meu velho colega de escola no tempo colonial. As vozes, os efeitos dos gestos dos lábios superiores e inferiores, pronunciam sexo; a libido vem da boca; os discursos todos estão virados para o trono, onde se assenta o patrono da humanidade não virtual, porém sexual. Passos mansos, cadenciados e pressurosos… O mundo avança nesse ínterim, tudo vai, tudo se macula, tudo se conspurca, tudo se confunde com agentes do sexo. Na igreja se promiscuem, no parlamento idem, numa rua qualquer há festa de foda, as discotecas são os centros desse reinado. Vamos dançar as danças noturnas na escuridão do dia e da noite; vamos sujar a nossa imagem, emporcalhar as nossas mentes. Como cães, como porcos, como cadelas no cio… como um primata s
Ela não acreditava que fosse tudo fruto de um acaso sonhado por algum assanhado filósofo grego ou por quem quer que fosse. Para ela havia evidências fortes de uma mão invisível que operava através de todos os acontecimentos na sua vida.Nasceu lá, no interior da província de Benguela, fruto de uma gestação difícil e de um parto complicado. O pai tinha-lhe contado como a gestação no tempo de guerra era uma tarefa árdua. E como o parto dela fora difícil. Além da guerra, havia aquelas complicações que hoje em dia são ainda muito frequentes nas nossas sociedades, e que têm levado algumas (ou quase todas) gestantes aos hospitais. Naquela fase, nos municípios do interior de Benguela, nem todos usufruíam do luxo de beneficiar de serviços hospitalares. Havia, sim, muitas famosas parteiras locais e rudimentares que acompanhavam a gestante, e que, em casos de partos complicados, também eram chamadas; só mesmo em casos complicados, porque num caso normal qualquer adulto na família podia
É um assunto digno de estudo o quando uma criança começa a perceber os rangidos da cama enquanto o pai e a mãe se entregam sobreela em frenéticas e compulsivas danças a fim de satisfazerem desejos sexuais. Muitos não imaginam o significado disso para a mente desabrochante de uma criança. Alguns mais velhos tentam ignorar o facto. Para essa gente, a criança não sabe nada, é inocente. Mas todas as crianças surpreendem alguma vez na sua vida essa realidade da humanidade adulta. Sobretudo aquelas que nascem e crescem nos subúrbios de Angola. Para nos alertar a propósito, a sagrada bíblia cristã afirma: não nos devíamos esquecer dos gemidos das nossas mães, lembremo-nos de que foram eles que nos geraram.Entretanto, cá, nos subúrbios do nosso país, as residências são pequenos aglomerados de casinhotas interligadas compostas de pequenos e reduzidos compartimentos compactos num pequeno espaço, ondevigora a regra de dois a cada dois metros de espaço, suposta por Thomas Be
Sair do interior de Benguela, lá das zonas tropicais frias e montanhosas, para vir viver nos subúrbios do litoral, não é tarefa fácil, principalmente para uma criança.Por causa do seu superpovoamento, o calor que se faz no Kalohombo é opressivo, inclemente e deixa muitos moradores sem fôlego. Ela chorara mesmo, aquando dos seus primeiros dias ali. Ficava ofegante e suava abundantemente. Mais ainda havia os mosquitos que não apareciam apenas à noite como era seu costume lá no interior da província. Cá os mosquitos começavam a picar de dia e de noite havia uma horripilante festança deles. Cantavam tão alto que a Lwkwakwa tomava os seus zunidos por vozes humanas ou de almas doutro mundo.Visando consolar a prima, a Tchilombo tinha comprado na famosa praça KaPonte muita roupa para ela, sempre que procurava por roupas para o seu futuro bebé; ignorando que além de tudo a Lwkwakwa também chorava por saudades da sua terra e da sua parentela. E, tal como é normal acontecer entre
Mas cá as coisas pareciam dissemelhantes. Parecia à Lwkwakwa que em Benguela os valores eram outros. Cá a linha divisória entre profano e sagrado era ambígua e quase indistinguível. E nessa senda, eram poucos os que frequentavam igrejas.Lá o domingo era um dia notório. Quase tudo parava nesse dia e os moradores tornavam as ruas extravagantes com as cores das suas vestes solenes. Muita gente dirigia-se a alguma igreja cristã para purificar-se dos pecados que eventualmente teria cometido ao longo da semana, pois a ninguém era dada a possibilidade de saber se estava ou não em falta com o irmão, amigo, vizinho e juntarem-se aos domingos, por isso e por si só, era mais sagrado do que presenciar às missas. E no natal, mais do que na páscoa ou em quaisquer outras comemorações nacionais e internacionais, as festas eram não só as melhores do ano, como também as mais solenes.Cá em Benguela, porém, a realidade era diametralmente oposta. Nem as mulheres, as vítimas-mor das igr