Sair do interior de Benguela, lá das zonas tropicais frias e montanhosas, para vir viver nos subúrbios do litoral, não é tarefa fácil, principalmente para uma criança.
Por causa do seu superpovoamento, o calor que se faz no Kalohombo é opressivo, inclemente e deixa muitos moradores sem fôlego. Ela chorara mesmo, aquando dos seus primeiros dias ali. Ficava ofegante e suava abundantemente. Mais ainda havia os mosquitos que não apareciam apenas à noite como era seu costume lá no interior da província. Cá os mosquitos começavam a picar de dia e de noite havia uma horripilante festança deles. Cantavam tão alto que a Lwkwakwa tomava os seus zunidos por vozes humanas ou de almas doutro mundo.
Visando consolar a prima, a Tchilombo tinha comprado na famosa praça KaPonte muita roupa para ela, sempre que procurava por roupas para o seu futuro bebé; ignorando que além de tudo a Lwkwakwa também chorava por saudades da sua terra e da sua parentela. E, tal como é normal acontecer entre a nossa gente, a princípio tratava-a com carinho e dedicação, mais tarde as coisas foram tomando outras feições e a Tchilombo falava-lhe já com alguma autoridade. Na verdade não se tinha tornado tão má, era apenas o necessário para incutir temor e respeito à criança. Afinal tinha sido requisitada para trabalhar e não para fazer mimos.
Entretanto, enquanto a barriga dela crescia, ela foi sendo mais e mais preguiçosa, delegando todas as tarefas domésticas à Lwkwakwa. Esta passou a acordar mais cedo de manhã, para transportar água de uma torneira vizinha, ou, como alternativa quando a água falhava, de um tanque e encher baldes para a cozinha e para o banho do esposo da prima. (A água falhava deveras, e para muitos moradores do bairro, era um grande privilégio tomarem um banho, o que faziam uma vez ou outra na vida; essa gente, apesar de apresentar-se bem vestida pelas ruas, sobretudo as moças vaidosas, fedia por dentro de tanto suja; mesmo quando uma vaidosa voz feminina ficava a bradar pela Rádio Benguela que uma das manias dos pobres era aproveitar-se da água da chuva, para o povo do Kalohombo, e de muitos bairros em Angola, significava uma grande bênção abastecerem-se da água da chuva, quando chovesse o suficiente, o que era raro acontecer aqui no litoral). A seguir isso, a Lwkwakwa devia cuidar do pó da casa, que não era pouco, lavar a loiça, varrer o pátio e só depois é que podia sair para ver o mar. Nem sempre ia para a praia, outras vezes inventava brincadeiras, tal como é comum entre crianças que crescem nas zonas rurais. E revelava uma criatividade profícua; mas quando isso acontecia ela não se demorava tanto nas brincadeiras, demorava-se, sim, quando fosse ver o mar.
Olhando para o mar, ela ficava entusiasmada pela imensidão das suas águas e achava estranho que muita gente passasse por ali indiferente. Na sua pueril imaginação, agora o mar parecia-lhe a maior maravilha do mundo e estar perante ele adquirira o mesmo peso que ficar diante do ser que inventou o mundo e as pessoas, por sua própria iniciativa e prazer. Sentia-se como se a mão invisível, que ela sabia influir nos acontecimentos do mundo e dos homens, se tivesse finalmente revelado a ela.
Onde ela tinha vivido a primeira parte da infância muitas coisas eram proibidas. Havia muitas proibições e sacralizações. Porque o sagrado e o proibido geralmente andam de mãos dadas. E o puritanismo e o pudor também acompanham esses aspectos. E assim era raro, lá de onde ela viera, ver indecências a céu aberto. Segundo as doutrinas que lhes eram incutidas, uma criança devia fechar os olhos quando um adulto estivesse nu diante dela; pois encarar os genitais de adultos era condenar-se à cegueira. Aliás, para crianças que lá cresciam, os mais velhos não eram seres aos quais se deviam atribuir caracteres sensuais, eram criaturas para as quais sexo era sagrado ou mundano e falar disso era assim proibido nos instituídos círculos sociais. Havia aqueles poucos casos de jovens, rapazes e raparigas, que o faziam às escondidas; mas quando descobertos, estes eram severamente castigados pelos encarregados.
E eram muitos os mitos que fomentavam essas crenças e preocupações nas mentes das crianças. Com o factor agravante de que as igrejas, como grandes e imprescindíveis aliadas da civilização importada que cá vigora, jogavam um papel muito importante nesse jogo, lavando as mentes das crianças e inculcando nelas superstições aterradoras como a de que, a despeito dos bem evidentes partos e gravidezes biológicos, os bebés eram comprados na igreja e no hospital. Ou então vinham de deus, pois deus tinha uma grande fábrica plantada no céu que produzia nenés; portanto, as concepções e os partos eram ou deviam ser considerados meras imaginações humanas, que não deviam nem mereciam serem estudadas nas escolas públicas (e inventaram muitas teorias, inúteis a priori, para argumentarem a favor; aliás, quanto a origem dos homens o mundo todo está farto de teorias filosóficas, culturais e religiosas, muitas delas ingénuas ou ilusórias à primeira vista). Lá porém, na terra natal da Lwkwakwa, os educadores sentiam-se muito embaraçados quando se deparavam, no programa curricular, com um tema referente à sexualidade humana.
Como que num esforço conjunto, os mais novos esforçavam-se por respeitar ou temer os mais velhos e os mais velhos faziam-se honrar. E assim tudo era feito para manter os princípios de realidade repressiva e de desempenho.
A partir da adolescência, as meninas tinham de manter uma postura pudica para si mesmas e subserviente para com os mais velhos e rapazes. Nas sociedades patriarcais que as igrejas (especificamente as igrejas) vieram trazer e que tiveram, ao contrário da colonização sociopolítica e cultural, muito impacto nas sociedades rurais do país, os jovens não são muito visados por preceitos de pudor e decência (pois o adágio popular diz que “homem é homem, mulher é gato”, e a bíblia enfatiza alegando que “a mulher ousada não é mais respeitada que um cão”), apesar de estes serem obrigados a manter uma postura favorável ao bom andamento dos princípios que norteiam a vida comunitária. É o que acontece quando se teme uma todo-poderosa entidade punitiva masculina imaginária.
Dessa forma, eram raros lá no interior aqueles que se desviavam das regras e os mais velhos que assim fossem apodados eram severamente punidos por entidades culturais ou religiosas e impedidos de frequentarem determinados convívios e de beneficiarem de certos direitos que a sociedade instituiu para preservar os princípios de realidade repressivo e de desempenho.
Mas cá as coisas pareciam dissemelhantes. Parecia à Lwkwakwa que em Benguela os valores eram outros. Cá a linha divisória entre profano e sagrado era ambígua e quase indistinguível. E nessa senda, eram poucos os que frequentavam igrejas.Lá o domingo era um dia notório. Quase tudo parava nesse dia e os moradores tornavam as ruas extravagantes com as cores das suas vestes solenes. Muita gente dirigia-se a alguma igreja cristã para purificar-se dos pecados que eventualmente teria cometido ao longo da semana, pois a ninguém era dada a possibilidade de saber se estava ou não em falta com o irmão, amigo, vizinho e juntarem-se aos domingos, por isso e por si só, era mais sagrado do que presenciar às missas. E no natal, mais do que na páscoa ou em quaisquer outras comemorações nacionais e internacionais, as festas eram não só as melhores do ano, como também as mais solenes.Cá em Benguela, porém, a realidade era diametralmente oposta. Nem as mulheres, as vítimas-mor das igr
Mas cá as coisas pareciam dissemelhantes. Parecia à Lwkwakwa que em Benguela os valores eram outros. Cá a linha divisória entre profano e sagrado era ambígua e quase indistinguível. E nessa senda, eram poucos os que frequentavam igrejas.Lá o domingo era um dia notório. Quase tudo parava nesse dia e os moradores tornavam as ruas extravagantes com as cores das suas vestes solenes. Muita gente dirigia-se a alguma igreja cristã para purificar-se dos pecados que eventualmente teria cometido ao longo da semana, pois a ninguém era dada a possibilidade de saber se estava ou não em falta com o irmão, amigo, vizinho e juntarem-se aos domingos, por isso e por si só, era mais sagrado do que presenciar às missas. E no natal, mais do que na páscoa ou em quaisquer outras comemorações nacionais e internacionais, as festas eram não só as melhores do ano, como também as mais solenes.Cá em Benguela, porém, a realidade era diametralmente oposta. Nem as mulheres, as vítimas-mor das igrejas
Com o tempo ela tinha feito amigas. Tal como tem sido comum acontecer, dentre tantas candidatas só uma se tornou mais íntima.- Olha, Helena, a minha prima costuma lutar com o mano Betinho quando dormem. – Desabafou ela para os ouvidos da amiga.- Lutar mesmo?- Sim, eles fazem barulho com a cama…- E a tua prima anda chorar?- Não… ela… ela costuma acordar alegre.- Eles são casados? – Inquiriu a Helena, curiosa.- Sim…- Ah! – Sorriu a Helena – Olha, Lwkwakwa, os mais velhos andam se foder de noite. Aquele barulho que você costuma ouvir é o que fazem quando se fodem. – Quando viu que a Lwkwakwa estava incrédula, continuou. – Oh, você não sabe! Tens razão. Eu já vi os meus pais a se foderem. Eles fazem muito barulho.As duas crianças conversavam viradas para o mar. Nas imedia&
E as crianças em Benguela não tinham o mesmo prazer de saírem à noite para brincarem e trocarem confidências que as do interior. Lá as crianças, quando caía a noite, saíam ao luar para mostrarem o ar da sua graça e apreciarem o lindo espetáculo do firmamento; lá, por não haver poluição luminosa e atmosférica, as crianças tinham o grande privilégio de observarem a olho nú o suave brilho da lua e das estrelas nas suas galáxias. Lá as crianças aprendiam astrologia e a se comunicarem com o resto do universo muito antes de irem para a escola. Muitas das alianças que se desenvolviam posteriormente para a fase adulta eram iniciadas nas brincadeiras noturnas infantis. Sem palavrões, claro, mas, por causa das restrições que as crianças lá enfrentavam durante o dia, aqueles encontros noturnos serviam para experimentarem o delicioso sabor do proibido. Só experimentar, não podendo ir além.Cá no litoral, as diversões para as crianças, tanto diurnas como noturnas, eram a televisão e os
Carallo teso no cree en díosDesde aquele dia em que, na praia, a Helena lhe havia contado a razão de os casais fazerem barulho quando fossem para a cama, ela continuava curiosa no assunto. Agora, ao contrário de antes, ela já tinha ambições de saber, por exemplo, que configurações apresentavam os órgãos genitais dos adultos. Lamentava-se por antes se ter impedido de olhar para as zonas sexuais dos mais velhos, e já olhava para as protuberâncias dos biquínis das moças e senhoras vendedoras com muita atenção.Nas suas pueris imaginações, ela agora ficava a magicar órgãos de tamanhas proporções. Nesse mundo, uma vagina era algo muito grande, capaz de acolher um pénis enorme e evacuar um grande bebé. Essas crianças, as que crescem ouvindo historietas de bebés que descem do céu, não imaginam que os humanos nascem diminutos. Assim, na sua imaginação, o pênis de um adulto podia ser um grande órgão, o maior do corpo humano, e a vagina em que este devia penetrar um orifício com
Tudo cresce e tudo evolui. Que os defensores do evolucionismo desculpem essa posição ou presunção, mas é inútil inventar teorias tão exaustivas sobre isso, sobre algo tão evidente. Mesmo as montanhas e as rochas, nossas irmãs na cadeia da evolução, tiveram que evoluir para serem o que são hoje. E se quiserem se manter para o futuro terão de enfrentar muitas situações constrangedoras e saberem geri-las. É bem evidente que o que não se adapta perece; e se os animais e as plantas não tivessem evoluído tanto física quanto metafisicamente não saberiam enfrentar tantos anos de mudanças e transformações. Também é claro que apesar de tantos estudos sobre o caso, ainda é difícil perceber a olho nu como nós evoluímos física e mentalmente. Os mais velhos do interior fazem as crian
Algum tempo depois a Lwkwakwa completou doze anos de idade. Estava mais crescida e prometia crescer mais. E já os seios dela se estavam revelando para a humanidade máscula. Foi nesse período em que lhe ocorreu a menarca, uma situação pela qual todas as fêmeas humanas que atingem a maioridade passam mas que permanece tabu para muitas crianças do nosso país, essas que se vêm portanto surpreendidas e em pânico quando chega a sua vez.A menarca na mulher é como a primeira ejaculação e a postectomia masculina. A faixa etária em que ocorre nas meninas é a mesma para os rapazes, e a mesma que os nossos antepassados, com sua sabedoria, haviam estabelecido para a circuncisão masculina, e ela tem a mesma função: inicia a pessoa para uma outra realidade na vida pessoal e comunitária; e, nas nossas tradições, ai do homem que não for circuncidado, otopa. E as mulheres estão de parabéns por esse processo prescindir de intervenções externas adicionais.É claro que para algumas mulheres
Três anos mais tarde a Lwkwakwa era uma moça alta. Os seios dela tinham-se alongado, o seu ulórico cabelo também. As pernas estavam mais nutridas e as suas ancas pareciam um paraíso em deambulações. Tinha o corpo flexível como uma víbora, fazendo dos movimentos do seu andar passos de uma bela e perfeita coreografia sensual. O seu alvo olhar, meio inocente, coruscava como uma estrela cadente que atraia todos os corpos celestes no abismo do paraíso. Era preciso vê-la para crer nas maravilhas que a natureza opera.Diante dela o corpo de um homem viril gerava todo tipo de secreções e ficava incitado para feitos heroicos; ou lindas melopeias. Ela estudava agora no Liceu de Benguela, uma “histórica escola” que se encontra bem próximo da cidade e do bairro. A tonalidade da sua pele estava mais intensa, tão escura e luzidia que parecia captar e refletir o perdido brilho da natureza; os seus lábios vultuosos escondiam dentes brancos que faziam homens delirarem quando lhes fossem revela