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Sagrado ou profano?

Mas cá as coisas pareciam dissemelhantes. Parecia à Lwkwakwa que em Benguela os valores eram outros. Cá a linha divisória entre profano e sagrado era ambígua e quase indistinguível. E nessa senda, eram poucos os que frequentavam igrejas.

Lá o domingo era um dia notório. Quase tudo parava nesse dia e os moradores tornavam as ruas extravagantes com as cores das suas vestes solenes. Muita gente dirigia-se a alguma igreja cristã para purificar-se dos pecados que eventualmente teria cometido ao longo da semana, pois a ninguém era dada a possibilidade de saber se estava ou não em falta com o irmão, amigo, vizinho e juntarem-se aos domingos, por isso e por si só, era mais sagrado do que presenciar às missas. E no natal, mais do que na páscoa ou em quaisquer outras comemorações nacionais e internacionais, as festas eram não só as melhores do ano, como também as mais solenes.

Cá em Benguela, porém, a realidade era diametralmente oposta. Nem as mulheres, as vítimas-mor das igrejas e da nossa civilização, eram recatadas; mesmo as que frequentavam alguma seita cristã. Estas passeavam-se, por exemplo, impudicamente com os joelhos à mostra e os lábios e unhas pintados. Muitas das saias e dos vestidos que usavam aos domingos tinham rachas que ameaçavam revelar o proibido pela igreja. Pois o proibido pela igreja era sagrado e não devia ser mostrado de mãos beijadas a qualquer um…

O pior estava na praia, aquilo era espantoso para os pequenos olhos da Lwkwakwa. Ali ela sujeitava-se a olhar para aquilo que os mais velhos lá no interior proibiam peremptoriamente. O sagrado estava exposto ao vulgo, e um alarmante estado pecaminoso havia sido declarado. Para os mais velhos da sua terra natal aquela realidade significaria “sinais dos tempos”. É porque o senhor estava para voltar em breve que essa gente não tinha pudor. E ele, o senhor, não seria tolerante para tais transgressores.

Crianças, homens e mulheres partilhando a sua nudez. Ela ficava espantada também por como muita gente encarava aquilo como se fosse algo normal e indiferente. Era como se aqui ninguém fizesse caso que o mais esperado senhor voltasse em breve das nuvens ou do céu. “Que o tal senhor volte, mas enquanto não chega nós vamo-nos divertir”, pareciam dizer-lhe os outros visitantes da praia. E, atónita, ficava ali por horas a fio, usufruindo pela primeira vez do delicioso sabor do proibido. Pois quando as pessoas exibem sem pudor o seu corpo, qualquer um os pode contemplar, que o imaginário se frustre!; é a ele, pela sua omnipotência, omnipresença e omnisapiência, que cabe impedir esses acontecimentos não abonatórios.

Mesmo quando em casa a situação continuava, na verdade parecia-lhe que um vírus se tinha imiscuído na cidade e nos subúrbios de Benguela e por isso toda a gente andava contaminada por uma estranha síndrome que lhe impedia de enxergar o pecado e de respeitar o proibido.

A Tchilombo, agora já muito grávida, não tinha o cuidado de respeitar os olhos da criança e exibia a toda hora as suas cuecas. E não só, ao contrário do que parecia quando esteve em visita no interior, cá a Tchilombo usava as mesmas roupas indecentes que as demais moças. Nessa altura a Lwkwakwa podia pensar que aquilo se devia à sua barriga que estava enorme e penosamente protuberante. Mas logo provou que tinha-se enganado, e que tal comportamento era de certa forma alimentado pelo esposo que também se exibia de ceroulas em casa, e aquilo parecia ser a coisa mais normal que todo o mundo dali fazia. Mesmo quando, por algum descuido, a Lwkwakwa surpreendia o casal em posições comprometedoras, nem um deles se mostrava no mínimo preocupado. Mantinham-se indiferentes como se fossem duas crianças a brincar ou a fazer coisa muito óbvia. Para a rapariga que tinha vindo recentemente para o litoral aquilo significava que a distância dali para a sua terra natal era enorme; tal e qual uma antípoda, sentia-se num mundo estranho e imaginava que o regresso para a sua terra natal era impossível.

Houvera um dia em que encontrara por acidente, quando pretendia buscar algo do quarto, o Betinho, o esposo da prima, completamente nu. Ela tinha impulsivamente coberto os olhos com as mãos e se virado para outro lado, evitando assim ver o proibido que este exibia, e com medo de perder as vistas. Mas ele sorrira e lhe apaziguara pedindo que ficasse calma e que estivesse à vontade.

- Não precisas fugir, Lwkwakwa! – Tinha-lhe dito, no seu pacato tom de voz, enquanto levava um lençol aos quadris; portanto, quando a Lwkwakwa voltou a olhar já não vira nada que fosse proibido.

Apesar de volvidos já seis meses desde sua chegada cá no litoral, ela ainda continuava retraída, com muitos preconceitos do interior da província, ou “do mato” tal como era hábito os benguelenses apodarem as zonas não litorâneas. Ela mantinha o medo de pessoas que se vestiam sem pudor, e agora começava já a questionar os seus próprios conceitos do mundo objetivo. Talvez nas sociedades evoluídas fosse mesmo permissível passear-se nua, à vontade, pelas ruas de uma cidade. Talvez ela estivesse muito afectada pelo bucolismo da sua terra natal. Talvez era ela que estava atrasada no tempo e descontextualizada no espaço por ter vivido no interior.

- Lwkwakwa, aqui você tem que sê sperta como as outra. – Disse-lhe a Tchilombo, num certo dia, ao longo da ceia noturna familiar que era costume terem em redor de uma mezinha de madeira de eucalipto, de fabrico local, colocada de improviso no compartimento multiuso da casa. Onde o casal se apresentava em roupas provocantes um para a outra e vice-versa.

Era ali onde muitas vezes o Betinho ficava de ceroulas diante da esposa e da Lwkwakwa. A Lwkwakwa fazia o possível para evitar olhar-lhes entre as pernas, e como resultado nunca tinha visto as protuberâncias das suas virilhas.

- Deixa a criança, Tchilombo. – Retrucara o Betinho, levando uma garfada pescando comida à sua boca.

- Deixa como!? Ela stá muito tímida. Ainda se comporta como uma criança do mato. Ela já veio há muito tempo.

Este diálogo tinha findado por ali porque quando a Tchilombo acabou de falar o Betinho mantinha a sua boca ocupada de bolo alimentar e parecia ter transferido a sua atenção para a deliciosa atividade de triturar bem o alimento. Aliás, era difícil ver esse casal a desenvolver um descontraído diálogo. O Betinho era tímido, e pessoas retraídas não sabem discutir um assunto por longo tempo senão entrando em estado de exaltação tal que tendem a falar descontroladamente e aos berros, gerando uma impositiva e unilateral comunicação. Por isso ele, o Betinho, era introvertido e arrogante e não raro falava aos berros para a esposa. Outras vezes passava o jantar a murmurar rancoroso sobre algum problema qualquer que só eles podiam saber e só parava quando estivessem na cama, entretidos por uma outra atividade mais absorvente.

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