Início / Romance / Danças Noturnas / Porquê e como foi para Benguela
Danças Noturnas
Danças Noturnas
Por: Banny de Castro
Porquê e como foi para Benguela

Ela não acreditava que fosse tudo fruto de um acaso sonhado por algum assanhado filósofo grego ou por quem quer que fosse. Para ela havia evidências fortes de uma mão invisível que operava através de todos os acontecimentos na sua vida.

Nasceu lá, no interior da província de Benguela, fruto de uma gestação difícil e de um parto complicado. O pai tinha-lhe contado como a gestação no tempo de guerra era uma tarefa árdua. E como o parto dela fora difícil. Além da guerra, havia aquelas complicações que hoje em dia são ainda muito frequentes nas nossas sociedades, e que têm levado algumas (ou quase todas) gestantes aos hospitais. Naquela fase, nos municípios do interior de Benguela, nem todos usufruíam do luxo de beneficiar de serviços hospitalares. Havia, sim, muitas famosas parteiras locais e rudimentares que acompanhavam a gestante, e que, em casos de partos complicados, também eram chamadas; só mesmo em casos complicados, porque num caso normal qualquer adulto na família podia assistir ao parto. Há quem diga que eram raros os casos de partos complicados que perigassem a vida da gestante; e que, nessas épocas, havia mulheres que realizavam o seu próprio parto. Mas também deve-se notar que o número de gravidezes ou a densidade populacional daquela época não era o mesmo que o de agora; e que, ao abono da verdade, as mulheres que realizavam o seu próprio parto eram as mais corajosas da comunidade.

Guerra por um lado e miséria causada pela guerra, por outro. Ela nasceu a ouvir ribombos e batidas de armas, como uma música quotidiana. O seu complicado parto tinha acontecido num dia em que houvera ataque à localidade onde moravam. Só por ser um ritual sagrado é que os pais e familiares dela tinham realizado a festa do seu nascimento, o ovya, como é chamado esse ritual pelos ovimbundu.

Portanto, agora parecia-lhe que esses conflitos e os seus ribombos se tinham misturado com o seu viver e que, sendo assim, persegui-la-iam até o fim. Aquilo tinha-se grudado bem ao fundo, no interior da sua personalidade.

No interior de Benguela nasceu e lá ficou até uma certa altura, até os oito anos de idade, para ser preciso, momento em que fora requisitada pela prima a fim de ir viver com ela à sede da província, situada em algum minúsculo ponto da costa atlântica, ou no litoral, como vulgarmente é conhecida essa zona. À sede da província de Benguela chama-se Benguela (pelo menos até hoje), uma cidade litorânea e uma metrópole; para ser mais esclarecedor: uma metrópole negra, onde reinam morcegos, mosquitos, calor, confusão e indigência humanas. Teve sorte porque nessa altura os Acordos do Luena, rubricados em 04 de Abril de 2002 pelo MPLA das massas e a UNITA das matas, já tinham estabelecido paz em Angola; mas vale lembrar que as cidades habitadas por negros não cessam de conflitos. É claro que conflitos fazem parte da natureza dos vivos, mas é que quando cães soltos, gatos vagabundos, macacos e malucos partilham dos mesmos recintos que pessoas normais, quando os serviços básicos sociais não funcionam tal como se espera numa determinada sociedade contemporânea, declara-se, expressa ou tacitamente, desordem social; e é exatamente esse o caos que se regista nos territórios negros. Pelo sim pelo não, Angola não é um dos países emergentes, Angola é, sim, um país atolado na ignomínia do seu povo.

Alguns fingem, por chauvinismo e propaganda, que tem paz, que há luz, fartura e boa vida. Que as estradas que dão acesso às localidades são tranquilas e anda-se por elas à vontade. Por ora vamos fingir que acreditamos nessas propagandas .

Ao contrário do litoral, no interior, lá onde a colonização sociopolítica portuguesa não tinha atingido grandemente as pessoas, apesar da abundância de pretos nas zonas urbanizadas e nos subúrbios, e por causa das igrejas cristãs que se difundiram muito por lá, as coisas parecem melhores, mais tranquilas, pacatas e pacíficas. Não se regista essa confusão dos litorais metropolitanos negros. A tensão lá não é assim tão acentuada.

E ela também não acreditava que veio parar ali, ao litoral de Benguela, por mero acaso ou acidente. Ela não gostava de pensar assim. Ela tinha fé na mão super-humana mas invisível que guiava tudo e fazia tudo acontecer, que inclusive fazia os acidentes acontecerem.

Com apenas oito anos de idade, nessa altura, a Lwkwakwa era ainda pequena; com a mente a nascer da ignorância, e não percebia as coisas tal como os adultos amestrados, cheios de preconceitos e definições, as percebiam. Mas sabia que já tinha passado por várias peripécias, que tinha enfrentado, no tempo de guerra, muita miséria e desolação. Já tinha visto, ainda em criança, muita gente fuzilada e morta. E esses conflitos, quando não são bem geridos, podem acarretar muitas sequelas no futuro adulto da criança.

Na altura em que ela veio para Benguela, foi apenas alguns meses depois que a guerra esfriou e os últimos acordos de cessar-fogo foram assinados. A partir de então houve uma mobilidade humana assustadora. Uma gigante onda de migrações à procura de parentes distantes e sumidos. E foi assim que a Tchilombo, a jovem prima da Lwkwakwa, tinha ido ao interior com o propósito de visitar a sua tia homónima que havia anos não avistava pelas limitações que a guerra, civil e militar, impunha. Nessa altura ela era recém-casada e a mãe da Lwkwakwa era a irmã do finado pai dela.

A Tchilombo não tinha ido ao interior com a intenção premeditada de pedir a Lwkwakwa da mãe dela. Antes de chegar ali esta não sabia da sua existência por razões de que quando vira pela última vez a tia, a Lwkwakwa não tinha ainda nascido e a Tchilombo não se imaginava também em idade para se casar, por tão pequena que ela ainda era. A ideia de levá-la surgiu espontaneamente quando deparou com a tímida, não obstante engraçada, rapariga que afinal era sua prima do primeiro grau. Aliás, é costume, entre nós, os recém-casados adoptarem parentes próximos, do noivo ou da noiva que tanto faz, mas de preferência meninas, para cuidarem de afazeres domésticos.

Afinal a Tchilombo, a tal prima da Lwkwakwa que tinha saído de Benguela para o interior a fim de visitar a família, estava na sua primeira gravidez e brevemente poderia dar à luz uma criança que precisaria de cuidados especiais e sozinha ela não seria capaz de enfrentar a demanda das obrigações matrimoniais e domésticas em que isso implicaria.

- Oh tia, eu quero levá a Lwkwakwa… - Tinha dito ela, num certo dia.

- Levá a Lwkwakwa para onde, xará?

- Quero levá ela para Benguela, tia. Eu vou nascer daqui a pouco e não tenho quem vai andá cuidá da criança e me lavá lá a loiça. E depois, a vida de Benguela, oh tia, é muito complicada. A pessoa tem que fazé sempre um pequeno negócio para ajudá o marido. Assim memo cuidá da casa, do marido, do negócio, com a criança, é complicado, tia.

- Mas… – Redarguíra a mãe da Lwkwakwa, um tanto intrigada pela solicitação – oh xará, assim memo vais levá a criança que só habituou ficá aqui, lá não lhe vai ficá complicado?

- Não, tia. Lá ela vai ganhá nova visão. E vai sê muito bom para ela, porque as crianças crescem melhor nas cidades. Aqui no mato… - Tentou apaziguar a Tchilombo, quando foi interrompida pela tia que queria emitir o seu tácito parecer favorável.

- Ainda mba fala só com ela. – Aconselhara a mãe da menina, em gesto de reação. Como se uma impotente criança tivesse capacidades de discutir seus direitos e suas liberdades.

E, tendo percebido a insinuação da tia, a Tchilombo sentiu-se nas arrogâncias não de propor, mas de impor à criança a sua já tomada decisão de lavá-la para Benguela.

- Já falei com a tua mãe, oh prima Lwkwakwa, eu vou te levá para Benguela. Vais ficá lá a vivé comigo.

- Eu!? – Exclamara a Lwkwakwa, um tanto surpresa.

E nada mais dissera porque não tinha noção do que aquilo realmente significava. Até essa idade a Lwkwakwa já tinha ouvido muitas vezes falar de Benguela como uma terra bonita, com gente mais esperta e melhor que a da sua terra. Mas agora não lhe tinham dado nenhuma explicação e também não lhe tinham proposto alternativas e possibilidades de escolha. Talvez se o querido pai dela ali estivesse, por ser mais amável e comunicativo que a mãe, talvez lhe esclarecesse o assunto e a ajudasse a tomar um bom partido. Mas assim como estava, ela não sabia o que fazer e apenas se resignava às prerrogativas de um destino que era seu mas sobre o qual ela não tinha muito poder de decisão.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo