Mesmo deitada nos confortáveis assentos aveludados do vagão, não consegui adormecer. Logo entenderia que o sono não mais seria uma necessidade, mas antes aprenderia algo pior.
Súbito, a carruagem parou e gritos ecoaram lá fora! Rambertino esgoelava-se em estridentes e apavorantes berros! Em um salto coloquei-me de pé e abri a cortina. Foi o pior que poderia fazer. O sol nascera forte e eu, sem saber das novidades, tomei um banho de raios alaranjados que me queimaram como o fogo às bruxas!
Em um piscar de olhos, vi Rambertino correr em direção à porta em meio às chamas. Por instinto fechei a cortina e atirei-me ao chão, gritando, com o rosto e o busto ardendo como se mergulhasse em gordura fervente! O pobre ainda tentou entrar na carruagem pela janela, jogando-se de cabeça. Deitada ao chão em um canto onde o sol não me alcançava, vi quando pôs a metade do corpo para dentro com o rosto já em carne viva. Gritava ensurdecedoramente e chegou a esticar a mão direita em minha direção no intuito de pedir ajuda, mas foi em vão. Era possível ver os ossos da mão em meio às chamas e, com medo que ateasse fogo em todo o veículo, chutei a cabeça dele para fora e os gritos calaram-se.
Escondi-me no vagão, agonizando de dor, com bolhas de queimaduras pelo rosto, mãos, busto e todos os lugares onde o sol tocara. Aprendera, da pior forma, mais uma coisa sobre a nova vida: tornar-me-ia um ser de hábitos noturnos dali para frente se quisesse sobreviver.
Lá fiquei, agonizando durante todo o dia. Perdi a consciência por alguns momentos pelo estado de debilidade acordando ao som de galopes e outras carroças. Possivelmente o tráfego normal da estrada. Interessante é observar que não tenho mais a necessidade de dormir, mas continua a característica humana de desmaiar em casos de saúde debilitada.
Na última vez em que recobrei a consciência, percebi que o céu fechou e começou a chover, ao mesmo tempo em que passos se aproximavam.
— Olá?! Alguém aí? — chamou um curioso atraído pela estranheza de uma carruagem luxuosa abandonada.
Ouvi os passos pararem em frente à porta e, com cautela, ele pôs a mão para abrir a cortina. Agarrei-o pela mão e puxei-o para dentro, cravando meus dentes em seu pescoço em meio a gritos apavorados que logo calaram. Enquanto sugava o corpo inerte, ouvi o estalar de um chicote e galopes rápidos que se afastavam.
Pulei para fora e, em meio à chuva, vi uma biga tipicamente romana se afastar a toda velocidade guiada por um único homem. Olhei para o céu e agradeci por aquela água que caía, pois além de não deixar o sol me alvejar, aplacava a dor das queimaduras anteriores que se fechavam mais rápido depois que suguei o homem.
Olhei para o chão e vi que Rambertino agora não passava de um amontoado de cinzas escorrendo com a água da chuva pela ladeira pavimentada.
Súbito, senti que a incontrolável fome ainda me abatia. Rosnando, farejei a minha volta. Precisava me alimentar rápido e prosseguir até Nova Roma. A primeira coisa que vi foram os oito cavalos negros que puxavam o vagão. Instintivamente, relincharam e pinotearam, ao que a sede cega não me permitiu pensar em nada antes de atacar o mais próximo e dilacerar sua garganta com as garras. O sangue jorrou forte, enquanto o pobre animal escoiceava o ar e parte da carruagem, quebrando-a. Banhei-me no líquido vermelho e quente, aparando-o com a boca e segurando o bicho pelas rédeas. Os outros animais conseguiram se libertar na base do pinote e correram para longe, enquanto eu ainda bebia o sangue daquele que jazia.
Neste ponto, já estava claro que o sangue animal me satisfazia tanto quanto o humano. Tinham apenas “sabores” diferentes como se eu degustasse vinhos de safras e variedades distintas.
Satisfeita, voltei minha atenção ao defunto homem e constatei ser o de um oficial. Enterrei-o e, quando terminei, a noite chegava mais cedo, auxiliada pelas nuvens escuras. Precisava alcançar o outro que fugiu e assim peguei o vestido novo que guardara, entrouxei-o e corri, descobrindo que a velocidade e a força sobre-humanas também estavam entre os meus novos atributos.
Alcancei o outro perto da torre de observação quando ele abandonava a biga e montava um cavalo para correr mais a fim pedir ajuda, mas não teve tempo para tal. Com um salto preciso cortei-lhe a jugular fazendo seu sangue jorrar, mas farta, não bebi. Apenas o enterrei. Precisaria chegar à cidade antes do próximo amanhecer ou seria torrada como o cocheiro. A carruagem, quebrada pelos coices, que deixei para trás, não me protegeria mais e eu não sabia quanta distância faltava por isso corri.
Cheguei à Nova Roma bem antes do amanhecer e escalei, com relativa facilidade, os muros inconclusos que envolveriam toda a cidade quando completos. Existiam alguns sonolentos soldados de guarda que não representaram obstáculo.No centro da cidade, uma muralha completa, mais alta e, evidente, mais forte, cercava o castelo. Escalei mais uma vez, sem ser notada e lá de cima vi que aquelas paredes não abrigavam apenas um majestoso palácio, mas duas grandiosas construções além dele: uma réplica do Coliseu de Roma ainda inconcluso e, para meu total espanto, uma gigantesca catedral recebendo os últimos retoques na decoração e
Depois de alguns meses sem voltar ou enviar qualquer mensageiro à Nova Milão, chegou à corte de Nova Roma, um emissário milanês chamado Capaneus, a quem Rambertino referira-se, antes de morrer, como sendo fiel à Taramar.Nesse ponto, vale dar um pouco a mais de destaque sobre o que Rambertino me contara acerca do passado da então condessa Taramar di Milano:O conde Aurélius, marido da verdadeira condessa, falecera há alguns meses deixando Nova Milão a cargo da própria esposa e do pr
Enterrara minhas raízes bem fundo no reino de Nova Roma, em todas as camadas sociais. Todos me conheciam e o fato de eu não envelhecer era explicado pela magia, aceita e conhecida com naturalidade em toda Ômnia.É claro que minha juventude e longevidade levantavam suspeitas em algumas pessoas de tempos em tempos, mas sempre atenta, eu me preparara para todos os burburinhos e desconfianças sobre mim que pudessem surgir e imediatamente os contia lançando mão dos recursos à minha disposição: empatia mágica, magia de controle da mente para as mentes mais fracas, vício de sangue, sedução pura
Nossa viagem seguia a pista de um dragão vermelho. Um dos meus lacaios batedores trouxe notícias sobre um dos grandes e, via de regra, quanto maior e mais velho, maiores as possibilidades de lucro. E, é claro, maior perigo representava.À noite, fazíamos as refeições todos juntos. Uma exigência minha por saber que paladinos e necromantes nunca se deram bem. Toleravam-se apenas. Eu posso comer comida normal, é claro. Apenas não preciso e ela não me satisfaz. Só serve para eu parecer mais humana quando tenho paciência para tal. A caverna do dragão ficava em uma região desértica e montanhosa de difícil acesso. Aliás, todos os covis que encontrei eram assim a não ser para criaturas que, como eles, voavam. À noite fazia bastante frio e durante o dia eu sentia o calor escaldante dentro do meu abrigo. Rala vegetação de estepe complementava o terreno pedregoso e irregular do lugar no entorno da montanha que seria nosso alvo.Alguns lacaios já tinham mapeado com antecedência tudo em um raio de dez quilômetros do covil, determinando os locais mais bem camuflados para acampamento, além de encontrarem rotas seguras em meio a rala vegetação 9 - TRIUNFANTE
Antes que o rapaz desse o último suspiro, encobri minhas pistas, lambendo os furos do pescoço para que cicatrizassem. Aninhei a joia em um bolso secreto do vestido, pus a cabeça para fora da tenda e gritei:— Guardas! Chamem Taurus! — ordenei.Não demorou para que o irmão chegasse e, vendo o outro caído, não esboçou a tristeza que eu previra.— Súbito, senti a dor esmaecer, recobrando a consciência com um urro.— Por Deus do céu! — exclamou alguém.— Jesus Cristo, tenha piedade! — exclamou outro.Quanto a mim o que sentia era fome. Incontrolável! Perdera muito sangue com a estocada. Meu estômago se contraiu e, em um lampejo, esquadrinhei o entorno. Vi os dois paladinos que me despert11 - COMPADECIDA
Na minha volta, não pude deixar de notar que a rainha Constantina estava grávida esperando o que seria o primeiro filho de Victorio e herdeiro da coroa de Nova Roma.A esposa do rei, como não poderia ser diferente, era uma mulher de família nobre e rica, mas de beleza contestável que ela compensava com educação, simpatia e sagacidade.Sempre presente em todas as audiências desde que se casara, ela tinha olhos atentos e desconfiados. Sua devoção para com Victorio, não permitiria que