— Como estás bela! Porém, não queira me enganar: não és mais a mesma, és? — falava ele, em meio a tímidos sorrisos, ainda amparado por meus braços.
— Não, Rambertino, não sou. Agora sou melhor, não concordas?
— Estou vendo, sim, eu concordo! E vejo muito melhor! Também ouço e cheiro muito melhor! Penso muito melhor… — discursava sorridente e abobalhado, enquanto levantava e pulava para fora da carruagem.
Súbito, parou, voltou-se a mim e perguntou sério:
— O que… a senhora fez comigo? — questionou, enquanto examinava o próprio corpo.
— Tornei-te assim, melhor, Rambertino. Deves-me isso e pagar-me ás continuando a ser meu servo fiel. Fiz-me clara?
Ainda não entendia muito bem o que estava acontecendo, mas sempre fui muito inteligente e de raciocínio rápido. Deduzi que, se ele melhorara, só podia ser por decorrência do meu sangue. Em resposta à minha indagação, no ato, sua expressão suavizou-se em um sorriso complacente e agradável.
— Sim, senhora — anuiu mais obediente do que eu esperava.
— Sendo assim, agora responde-me: aonde vamos?
— Ora… para Nova Roma, vossa graça.
— Roma — corrigi. — Queres dizer Roma, certo?!
— Oh, não, senhora! Não há Roma aqui e sim Nova…
Interrompeu a própria fala e arregalou os olhos enquanto dava-se conta de algo. Em seguida continuou:
— Oh! Senhora! Acabaste de chegar!! — exclamou.
— Chegar aonde, homem? — inquiri confusa.
— Ao mundo novo! Vinda do mundo velho! — declarou eufórico como se encontrasse um tesouro.
— Mundo velho, mundo novo…? — retruquei.
— Eu explico, madame: aqui, é o mundo novo. Ninguém sabe como, mas fomos trazidos para cá há anos. Aliás, nossos ancestrais foram trazidos. No meu caso, meus avós. Meus pais e eu nascemos aqui. Reza a lenda que por intermédio de poderosa magia, muitas pessoas foram arrancadas do mundo velho e trazidas ao mundo novo. Do dia para a noite tudo diferente: as grandes cidades sumiram; as matas, os rios e as montanhas mudaram. Os que vieram demoraram alguns anos em exploração para perceberem o ocorrido e, só então, começaram a se reorganizar.
— Reorganizar?! — perguntei perturbada.
— Sim! A construir aqui o que tínhamos lá! E agora, com a chegada de vossa graça, confirma-se a lenda de que a poderosa magia continua viva! A honorável lembra como chegou aqui?
Aquele homem de sanidade questionável falava que eu estava agora em um mundo diferente daquele onde cresci e se tal sandice fosse verdade eu jamais veria minha família novamente! Nunca encontraria meu salvador! Não veria outra vez qualquer coisa que já tivesse conhecido ou tocado! Nada! Eu não assumia só uma nova vida, o papel da baronesa, mas uma nova vida em um novo mundo. Meus sentimentos revolviam-se e minha cabeça fervilhava na tentativa de se reordenar. E se essa loucura fosse verdade, como teria acontecido? Que magia das trevas seria tão poderosa para causar tal transformação? Haveria um modo de voltar?
Rambertino fitava-me embasbacado e feliz. Parecia ter descoberto a “Arca da Aliança” com todas as tábuas dos mandamentos intactas.
— Por que estás tão feliz!? — retorqui, rude e inconformada.
— Porque nunca estive com alguém natural do mundo velho. E a senhora não respondeu à minha pergunta!
Falava eufórico esperando, sorrindo que eu desse uma resposta satisfatória. Fiquei sem palavras. Minha carranca não fora suficiente para amedrontá-lo. Ele parecia ter assimilado bem a nova condição. Era um homem não muito velho, com idade em torno de quarenta e cinco anos, articulava bem a fala, demonstrava razoável inteligência e grande cultura para sua posição.
— Eu não sei — gritei. — Acordei na beira da estrada e é tudo do que me lembro! — menti.
O sorriso fechou-se. Encarou-me por um momento sem ação e, quando estava prestes a abrir a boca para se retratar, levantei a mão direita espalmada, negando-lhe a palavra. Suspirei buscando me acalmar e ainda um pouco nervosa, mudei de assunto:
— Diga-me, Rambertino: há quantos anos as primeiras pessoas chegaram ao “mundo novo”, como dizes? — retomei a conversa, cautelosa.
— Deixe-me ver… — exprimiu pensativo. — Creio que há pouco mais de cento e setenta anos. E a esse “mundo novo”, demos o nome de Ômnia.
— Ômnia? Belo nome!
— Sim! Significa…
— “Todos", em latim — completei. — Mas cento e setenta anos é um tempo considerável. E teus avós, chegaram há quanto tempo? — minha curiosidade de aguçava a cada resposta.
— Cento e dez anos, mais ou menos.
— E por que vamos à Nova Roma? O que há lá?
— Bem, madame, lá… tem tudo! É o centro do mundo como era a Roma antiga. Aqui ainda temos o Império Romano, mas sob o nome oficial de “Reino de Nova Roma”. Uma monarquia, na verdade, voltando aos moldes parecidos com os do Reino de Roma do mundo velho de antes da república e do império. Esse nunca mais reapareceu e, creio, nunca mais existirá porque, entenda, as pessoas que aqui chegaram, vieram de um época em que o próprio Império Romano do mundo velho acabara havia muito tempo — explicou.
— E por que resolveram ressuscitar Roma?
— Porque os que aqui chegaram, eram simpatizantes do antigo regime e depois de séculos de experiência entre nações fragmentadas e cidades-estado, acreditaram que a união de todos faria a força. Não posso dizer que estavam errados, pois Nova Roma é o maior reino de Omnia.
— Maior? Então existem outros?
— Oh, sim, sim. Alguns, de fato. Eu posso entretê-la com a história de Ômnia durante toda a noite se assim desejares, baronesa, mas devo prevení-la que o rei a espera com urgência.
— Entendo. E qual motivo tem o rei para justificar tanta pressa em me ver?
— Ele a convidou para ajudar na educação da futura rainha. Uma adorável e bela jovem de quatorze anos.
Súbito, vislumbrei uma oportunidade. Correria grande risco, é claro, mas nunca tive medo deles. Além da aparência de adulta eu fora bem-educada desde cedo, fato que, aliado aos novos dotes, deixava-me segura.
— Acho que conseguirei lidar com isso — explanei satisfeita. — E de onde venho? Tenho marido?
— Nova Milão. És viúva.
— Nova Milão?! Ora, ora, que coincidência.
Ele me ouviu, mas não entendeu e antes que esboçasse reação, continuei a perguntar:
— Fale mais sobre Nova Milão, Rambertino. O que estou deixando para trás? Sou bem quista? Tenho filhos?
Eu precisava saber tudo sobre a mulher cuja identidade eu assumiria e assim fiz Rambertino contar-me o máximo que podia durante algumas horas até que me cansei e fiz um sinal com a mão para que voltasse ao assento do condutor.
— Uma última pergunta: por que uma baronesa viajaria sozinha dessa forma durante a noite?
— Ora, a pressa do soberano. Um contingente de escolta sempre viaja mais devagar — declarou, já sentado com as rédeas nas mãos.
— Mesmo assim. É inconcebível que qualquer pessoa importante para o rei viaje sem escolta. Não entendo a naturalidade da tua resposta, Rambertino.
— Oh, Vossa Graça! Mil perdões se pareci displicente! Naturalmente uma falha minha querer que a senhora saiba das coisas de cá tendo chegado agora de lá. O que ocorre é que as estradas do reino são muito seguras, Vossa Graça. Patrulhas passam dia e noite além de haver torres para vigilância de quilômetro em quilômetro e…
— Entendi. Sigamos viagem. Tentarei dormir um pouco, portanto conduz com suavidade — ordenei.
— Sim, senhora! — concordou e subiu ao assento.
Fechei a porta e as cortinas da carruagem até que lá dentro, imperasse o breu. Em seguida ouvi o estalar do chicote de Rambertino contra o lombo dos cavalos que começavam a trotar.
Mesmo deitada nos confortáveis assentos aveludados do vagão, não consegui adormecer. Logo entenderia que o sono não mais seria uma necessidade, mas antes aprenderia algo pior.Súbito, a carruagem parou e gritos ecoaram lá fora! Rambertino esgoelava-se em estridentes e apavorantes berros! Em um salto coloquei-me de pé e abri a cortina. Foi o pior que poderia fazer. O sol nascera forte e eu, sem saber das novidades, tomei um banho de raios alaranjados que me queimaram como o fogo às bruxas!Em um piscar
Cheguei à Nova Roma bem antes do amanhecer e escalei, com relativa facilidade, os muros inconclusos que envolveriam toda a cidade quando completos. Existiam alguns sonolentos soldados de guarda que não representaram obstáculo.No centro da cidade, uma muralha completa, mais alta e, evidente, mais forte, cercava o castelo. Escalei mais uma vez, sem ser notada e lá de cima vi que aquelas paredes não abrigavam apenas um majestoso palácio, mas duas grandiosas construções além dele: uma réplica do Coliseu de Roma ainda inconcluso e, para meu total espanto, uma gigantesca catedral recebendo os últimos retoques na decoração e
Depois de alguns meses sem voltar ou enviar qualquer mensageiro à Nova Milão, chegou à corte de Nova Roma, um emissário milanês chamado Capaneus, a quem Rambertino referira-se, antes de morrer, como sendo fiel à Taramar.Nesse ponto, vale dar um pouco a mais de destaque sobre o que Rambertino me contara acerca do passado da então condessa Taramar di Milano:O conde Aurélius, marido da verdadeira condessa, falecera há alguns meses deixando Nova Milão a cargo da própria esposa e do pr
Enterrara minhas raízes bem fundo no reino de Nova Roma, em todas as camadas sociais. Todos me conheciam e o fato de eu não envelhecer era explicado pela magia, aceita e conhecida com naturalidade em toda Ômnia.É claro que minha juventude e longevidade levantavam suspeitas em algumas pessoas de tempos em tempos, mas sempre atenta, eu me preparara para todos os burburinhos e desconfianças sobre mim que pudessem surgir e imediatamente os contia lançando mão dos recursos à minha disposição: empatia mágica, magia de controle da mente para as mentes mais fracas, vício de sangue, sedução pura
Nossa viagem seguia a pista de um dragão vermelho. Um dos meus lacaios batedores trouxe notícias sobre um dos grandes e, via de regra, quanto maior e mais velho, maiores as possibilidades de lucro. E, é claro, maior perigo representava.À noite, fazíamos as refeições todos juntos. Uma exigência minha por saber que paladinos e necromantes nunca se deram bem. Toleravam-se apenas. Eu posso comer comida normal, é claro. Apenas não preciso e ela não me satisfaz. Só serve para eu parecer mais humana quando tenho paciência para tal. A caverna do dragão ficava em uma região desértica e montanhosa de difícil acesso. Aliás, todos os covis que encontrei eram assim a não ser para criaturas que, como eles, voavam. À noite fazia bastante frio e durante o dia eu sentia o calor escaldante dentro do meu abrigo. Rala vegetação de estepe complementava o terreno pedregoso e irregular do lugar no entorno da montanha que seria nosso alvo.Alguns lacaios já tinham mapeado com antecedência tudo em um raio de dez quilômetros do covil, determinando os locais mais bem camuflados para acampamento, além de encontrarem rotas seguras em meio a rala vegetação 9 - TRIUNFANTE
Antes que o rapaz desse o último suspiro, encobri minhas pistas, lambendo os furos do pescoço para que cicatrizassem. Aninhei a joia em um bolso secreto do vestido, pus a cabeça para fora da tenda e gritei:— Guardas! Chamem Taurus! — ordenei.Não demorou para que o irmão chegasse e, vendo o outro caído, não esboçou a tristeza que eu previra.— Súbito, senti a dor esmaecer, recobrando a consciência com um urro.— Por Deus do céu! — exclamou alguém.— Jesus Cristo, tenha piedade! — exclamou outro.Quanto a mim o que sentia era fome. Incontrolável! Perdera muito sangue com a estocada. Meu estômago se contraiu e, em um lampejo, esquadrinhei o entorno. Vi os dois paladinos que me despert11 - COMPADECIDA