2 - DISSIMULADA

O próximo momento de que me lembro, é de carregar, um em cada ombro e sem esforço, os corpos tanto da senhora quanto do cocheiro para a margem da estrada. Ao soltá-los, passei, por instinto, as costas da mão direita na boca e assustei-me ao deparar-me com o sangue que agora sujava minha mão, mas rapidamente também percebi o bem-estar e a sensação deliciosa que me causava lambê-lo.

Notei que o homem ainda vivia e que, do pescoço, escorriam dois filetes de sangue dos furos feitos por meus caninos. Por reflexo, abaixei-me, lambi, aproveitando as últimas gotas e, para minha surpresa, os dois furos se fecharam.

Eu não reconhecia minhas próprias ações e foi aí que a constatação aterradora se abateu sobre mim: eu acabara de matar uma pessoa, quase outra e nem sequer lembrava! Não sentia remorso ou culpa, mas medo de ser punida! Além disso, acabara de beber sangue humano e, o pior: o sabor era enlouquecedoramente delicioso!

Como e quando havia acontecido tudo? Não lembrava. Parecia que tal período de tempo evaporara-se da minha memória. De relance olhei para a genitália do pobre cocheiro por sobre a roupa, constatando manchas molhadas que, eu sabia muito bem, não eram de urina, tampouco de sangue. Ele acabara de experimentar o mesmo êxtase que eu quando fui beijada no pescoço por meu salvador naquela noite fatídica e ainda confusa, não sabia precisar há quanto tempo fora.

Meu salvador! É claro! Ele devia saber algo sobre o que me tornei e como aconteceu! Precisava encontrá-lo por isso e para agradecer-lhe por ter me salvo.

Entretanto, eu não sentia mais aquela fome e, calma, raciocinei melhor. Na verdade, pouco depois, meus pensamentos eram mais claros do que jamais foram e resolvi fazer um último teste para comprovar minha teoria: ergui o pulso do homem e cravei meus dentes. O sangue escorreu, lambi e, mais uma vez, o ferimento fechou.

Esquadrinhei a senhora, percebendo que suas feições e cor dos cabelos assemelhavam-se as minhas. Tirei-lhe o vestido impecável e o guardei na carruagem, abrindo em seguida uma vala para enterrá-la. Não arriscaria que ela fosse encontrada.

Enterraria ele também e o deixaria para morrer sufocado pela terra, mas ainda muito humana enterrei só a senhora, procurando em seguida água na carruagem para dar de beber ao homem que, agora eu via, não era tão velho e tinha lá seus atrativos. Encontrei um cantil que lhe servi, acordando-o em alguns minutos. Ele demonstrou aparência cansada e meio desnorteado e eu ainda não sabia o que falar para ele, porém algo dentro de mim dizia que não seria problema.

Baronesa! És tu, baronesa? — delirou.

Sim, Rambertino — não sei como, mas lembrei daquele nome horroroso — sou eu, a baronesa — confirmei surpresa comigo mesma sem pensar direito no que fazia e tentando esconder uma ponta de nervosismo.

O que aconteceu? Por que estou aqui?

Passaste mal e ao parar a carruagem para tomar ar, acabaste desmaiando por alguns minutos — menti. — Como te sentes agora?

Fraco. Muito fraco — sussurrou.

Ele pensava que eu era a baronesa. Parecia que algo em mim o hipnotizava e eu, sem saber explicar, atribuí tudo a debilidade dele. Ajudei o pobre a levantar-se devagar, fazendo-o beber mais água. Encontrei outro cantil com vinho na carruagem e lembrei que na fazenda sempre que alguém perdia sangue, faziam-no beber vinho. Então mandei que Rambertino fizesse isso e, entre um gole e outro, ele balbuciava:

...mas havia outra dama aqui que precisava de auxílio, não te lembras, baronesa?

Estás delirando, Rambertino. Termina o vinho — reforcei a mentira.

Ele apenas acenou positivamente com um movimento lento de cabeça e em seguida ajudei-o a reassumir as rédeas.

Não tenhas pressa. Vamos devagar e se te sentires mal, para outra vez e descansa — ordenei.

Assim, adentrei à carruagem como se fosse de fato a baronesa, seguindo viagem rumo a incerto destino que, contudo, não me preocupava.

Alguns minutos depois a carruagem parou e eu, preocupada, apressei-me em sair para ver o que acontecia. Rambertino descera do assento e, cambaleando, caiu em meus braços.

Não estou bem, senhora. Perdão! Não me castigues, por favor! Tentei, mas algum mal me acomete — balbuciava ofegante.

Estava branco como uma vela e tremia como vara verde. Fraqueza pela falta de sangue.

Não te preocupes. Descansa mais um pouco.

Carreguei-o sozinha e com facilidade para o vagão, onde deitei-o ao chão. Fi-lo beber mais água, muita água, mas não adiantava, nada o fazia melhorar e cheguei a pensar não haver solução.

Foi quando tive a ideia insana que acabou dando certo: imaginei que, se o sangue daquela mulher e o dele me fizeram tão bem, talvez meu sangue poderia fazer bem a ele. Entendam, eu estava fora de mim e num impulso cuja naturalidade me assustou, mordi meu próprio pulso e deixei o líquido vermelho-escuro escorrer até a boca do condutor. Em um primeiro momento ele estranhou, mas logo começou a sorver, deliciando-se como se fosse o mel mais doce que provava. Não senti dor, mas prazer quando encostou os lábios na ferida aberta e sugou com força.

Abruptamente parou e a reação foi explosiva! Arregalou os olhos em um sobressalto, enquanto contraía os músculos. Minha mão, que segurava a dele em assistência, sentiu o aperto dos dedos fortes e calejados pelas rédeas. A coluna envergou-se para a frente e a respiração ofegante dava a impressão que faltava-lhe ar. Coisas que não lembro de terem acontecido comigo, mas hoje sei que na verdade, perdia a capacidade de respirar, enquanto o coração parecia uma cacofonia de tambores. Por fim, parou desfalecendo e, em pouco tempo, acordou — o semblante tranquilo de palidez gélida, mas jovial e lúcido.

Minha baronesa?!

Sim? — anuí ainda surpresa.

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