O próximo momento de que me lembro, é de carregar, um em cada ombro e sem esforço, os corpos tanto da senhora quanto do cocheiro para a margem da estrada. Ao soltá-los, passei, por instinto, as costas da mão direita na boca e assustei-me ao deparar-me com o sangue que agora sujava minha mão, mas rapidamente também percebi o bem-estar e a sensação deliciosa que me causava lambê-lo.
Notei que o homem ainda vivia e que, do pescoço, escorriam dois filetes de sangue dos furos feitos por meus caninos. Por reflexo, abaixei-me, lambi, aproveitando as últimas gotas e, para minha surpresa, os dois furos se fecharam.
Eu não reconhecia minhas próprias ações e foi aí que a constatação aterradora se abateu sobre mim: eu acabara de matar uma pessoa, quase outra e nem sequer lembrava! Não sentia remorso ou culpa, mas medo de ser punida! Além disso, acabara de beber sangue humano e, o pior: o sabor era enlouquecedoramente delicioso!
Como e quando havia acontecido tudo? Não lembrava. Parecia que tal período de tempo evaporara-se da minha memória. De relance olhei para a genitália do pobre cocheiro por sobre a roupa, constatando manchas molhadas que, eu sabia muito bem, não eram de urina, tampouco de sangue. Ele acabara de experimentar o mesmo êxtase que eu quando fui beijada no pescoço por meu salvador naquela noite fatídica e ainda confusa, não sabia precisar há quanto tempo fora.
Meu salvador! É claro! Ele devia saber algo sobre o que me tornei e como aconteceu! Precisava encontrá-lo por isso e para agradecer-lhe por ter me salvo.
Entretanto, eu não sentia mais aquela fome e, calma, raciocinei melhor. Na verdade, pouco depois, meus pensamentos eram mais claros do que jamais foram e resolvi fazer um último teste para comprovar minha teoria: ergui o pulso do homem e cravei meus dentes. O sangue escorreu, lambi e, mais uma vez, o ferimento fechou.
Esquadrinhei a senhora, percebendo que suas feições e cor dos cabelos assemelhavam-se as minhas. Tirei-lhe o vestido impecável e o guardei na carruagem, abrindo em seguida uma vala para enterrá-la. Não arriscaria que ela fosse encontrada.
Enterraria ele também e o deixaria para morrer sufocado pela terra, mas ainda muito humana enterrei só a senhora, procurando em seguida água na carruagem para dar de beber ao homem que, agora eu via, não era tão velho e tinha lá seus atrativos. Encontrei um cantil que lhe servi, acordando-o em alguns minutos. Ele demonstrou aparência cansada e meio desnorteado e eu ainda não sabia o que falar para ele, porém algo dentro de mim dizia que não seria problema.
— Baronesa! És tu, baronesa? — delirou.
— Sim, Rambertino — não sei como, mas lembrei daquele nome horroroso — sou eu, a baronesa — confirmei surpresa comigo mesma sem pensar direito no que fazia e tentando esconder uma ponta de nervosismo.
— O que aconteceu? Por que estou aqui?
— Passaste mal e ao parar a carruagem para tomar ar, acabaste desmaiando por alguns minutos — menti. — Como te sentes agora?
— Fraco. Muito fraco — sussurrou.
Ele pensava que eu era a baronesa. Parecia que algo em mim o hipnotizava e eu, sem saber explicar, atribuí tudo a debilidade dele. Ajudei o pobre a levantar-se devagar, fazendo-o beber mais água. Encontrei outro cantil com vinho na carruagem e lembrei que na fazenda sempre que alguém perdia sangue, faziam-no beber vinho. Então mandei que Rambertino fizesse isso e, entre um gole e outro, ele balbuciava:
— ...mas havia outra dama aqui que precisava de auxílio, não te lembras, baronesa?
— Estás delirando, Rambertino. Termina o vinho — reforcei a mentira.
Ele apenas acenou positivamente com um movimento lento de cabeça e em seguida ajudei-o a reassumir as rédeas.
— Não tenhas pressa. Vamos devagar e se te sentires mal, para outra vez e descansa — ordenei.
Assim, adentrei à carruagem como se fosse de fato a baronesa, seguindo viagem rumo a incerto destino que, contudo, não me preocupava.
Alguns minutos depois a carruagem parou e eu, preocupada, apressei-me em sair para ver o que acontecia. Rambertino descera do assento e, cambaleando, caiu em meus braços.
— Não estou bem, senhora. Perdão! Não me castigues, por favor! Tentei, mas algum mal me acomete — balbuciava ofegante.
Estava branco como uma vela e tremia como vara verde. Fraqueza pela falta de sangue.
— Não te preocupes. Descansa mais um pouco.
Carreguei-o sozinha e com facilidade para o vagão, onde deitei-o ao chão. Fi-lo beber mais água, muita água, mas não adiantava, nada o fazia melhorar e cheguei a pensar não haver solução.
Foi quando tive a ideia insana que acabou dando certo: imaginei que, se o sangue daquela mulher e o dele me fizeram tão bem, talvez meu sangue poderia fazer bem a ele. Entendam, eu estava fora de mim e num impulso cuja naturalidade me assustou, mordi meu próprio pulso e deixei o líquido vermelho-escuro escorrer até a boca do condutor. Em um primeiro momento ele estranhou, mas logo começou a sorver, deliciando-se como se fosse o mel mais doce que provava. Não senti dor, mas prazer quando encostou os lábios na ferida aberta e sugou com força.
Abruptamente parou e a reação foi explosiva! Arregalou os olhos em um sobressalto, enquanto contraía os músculos. Minha mão, que segurava a dele em assistência, sentiu o aperto dos dedos fortes e calejados pelas rédeas. A coluna envergou-se para a frente e a respiração ofegante dava a impressão que faltava-lhe ar. Coisas que não lembro de terem acontecido comigo, mas hoje sei que na verdade, perdia a capacidade de respirar, enquanto o coração parecia uma cacofonia de tambores. Por fim, parou desfalecendo e, em pouco tempo, acordou — o semblante tranquilo de palidez gélida, mas jovial e lúcido.
— Minha baronesa?!
— Sim? — anuí ainda surpresa.
— Como estás bela! Porém, não queira me enganar: não és mais a mesma, és? — falava ele, em meio a tímidos sorrisos, ainda amparado por meus braços.— Não, Rambertino, não sou. Agora sou melhor, não concordas?— Estou vendo, sim, eu concordo! E vejo muito melhor! Também ouço e cheiro muito melhor! Penso muito melhor… — discursava sorridente e abobalhado, enquanto levantava e pulava para fora da carruagem.
Mesmo deitada nos confortáveis assentos aveludados do vagão, não consegui adormecer. Logo entenderia que o sono não mais seria uma necessidade, mas antes aprenderia algo pior.Súbito, a carruagem parou e gritos ecoaram lá fora! Rambertino esgoelava-se em estridentes e apavorantes berros! Em um salto coloquei-me de pé e abri a cortina. Foi o pior que poderia fazer. O sol nascera forte e eu, sem saber das novidades, tomei um banho de raios alaranjados que me queimaram como o fogo às bruxas!Em um piscar
Cheguei à Nova Roma bem antes do amanhecer e escalei, com relativa facilidade, os muros inconclusos que envolveriam toda a cidade quando completos. Existiam alguns sonolentos soldados de guarda que não representaram obstáculo.No centro da cidade, uma muralha completa, mais alta e, evidente, mais forte, cercava o castelo. Escalei mais uma vez, sem ser notada e lá de cima vi que aquelas paredes não abrigavam apenas um majestoso palácio, mas duas grandiosas construções além dele: uma réplica do Coliseu de Roma ainda inconcluso e, para meu total espanto, uma gigantesca catedral recebendo os últimos retoques na decoração e
Depois de alguns meses sem voltar ou enviar qualquer mensageiro à Nova Milão, chegou à corte de Nova Roma, um emissário milanês chamado Capaneus, a quem Rambertino referira-se, antes de morrer, como sendo fiel à Taramar.Nesse ponto, vale dar um pouco a mais de destaque sobre o que Rambertino me contara acerca do passado da então condessa Taramar di Milano:O conde Aurélius, marido da verdadeira condessa, falecera há alguns meses deixando Nova Milão a cargo da própria esposa e do pr
Enterrara minhas raízes bem fundo no reino de Nova Roma, em todas as camadas sociais. Todos me conheciam e o fato de eu não envelhecer era explicado pela magia, aceita e conhecida com naturalidade em toda Ômnia.É claro que minha juventude e longevidade levantavam suspeitas em algumas pessoas de tempos em tempos, mas sempre atenta, eu me preparara para todos os burburinhos e desconfianças sobre mim que pudessem surgir e imediatamente os contia lançando mão dos recursos à minha disposição: empatia mágica, magia de controle da mente para as mentes mais fracas, vício de sangue, sedução pura
Nossa viagem seguia a pista de um dragão vermelho. Um dos meus lacaios batedores trouxe notícias sobre um dos grandes e, via de regra, quanto maior e mais velho, maiores as possibilidades de lucro. E, é claro, maior perigo representava.À noite, fazíamos as refeições todos juntos. Uma exigência minha por saber que paladinos e necromantes nunca se deram bem. Toleravam-se apenas. Eu posso comer comida normal, é claro. Apenas não preciso e ela não me satisfaz. Só serve para eu parecer mais humana quando tenho paciência para tal. A caverna do dragão ficava em uma região desértica e montanhosa de difícil acesso. Aliás, todos os covis que encontrei eram assim a não ser para criaturas que, como eles, voavam. À noite fazia bastante frio e durante o dia eu sentia o calor escaldante dentro do meu abrigo. Rala vegetação de estepe complementava o terreno pedregoso e irregular do lugar no entorno da montanha que seria nosso alvo.Alguns lacaios já tinham mapeado com antecedência tudo em um raio de dez quilômetros do covil, determinando os locais mais bem camuflados para acampamento, além de encontrarem rotas seguras em meio a rala vegetação 9 - TRIUNFANTE
Antes que o rapaz desse o último suspiro, encobri minhas pistas, lambendo os furos do pescoço para que cicatrizassem. Aninhei a joia em um bolso secreto do vestido, pus a cabeça para fora da tenda e gritei:— Guardas! Chamem Taurus! — ordenei.Não demorou para que o irmão chegasse e, vendo o outro caído, não esboçou a tristeza que eu previra.— Último capítulo