02 — Lance sem graça

Está tudo pronto para o show e a contagem regressiva para o fim do meu trabalho marca cinco! Finalmente.

Hoje faremos a gravação de boa parte das músicas que vão para o DVD ao vivo da turnê nacional e uma rádio vai transmitir o show de hoje ao vivo. Minha equipe recebeu um adicional de dez pessoas, fora os técnicos do Fabrício, para toda a parafernália que ele usa no palco. Contratei duzentos figurantes para preencher a plateia (eles são contratados para puxar coro, aplausos, distribuir faixas e chorar para que mais pessoas façam a mesma coisa) e distribuímos convites o suficiente para que além da venda normal de ingressos, muitas pessoas fossem ao show. Em alguns casos, fechamos tudo com figurantes, mas a Blackout tem potencial o suficiente para trazer os próprios fãs... e vieram milhares.

Por um instante tudo quase deu errado, a casa de show não quis cancelar a programação da noite anterior e nosso tempo ficou ainda mais reduzido para montar todas as câmeras necessárias, mas deu tudo certo. Ufa!

Caminho calmamente pelos corredores dos bastidores e percebo que ao invés daquela euforia de sempre, todo mundo parece em pânico. Até Yolanda que normalmente nem está por aqui, anda de um lado para o outro com o celular na mão. Henrique (o baixista) se aproxima dela, eles trocam segredos em forma de sussurros e olhares de pânico. Tenho certeza que há algo de errado, por isso me aproximo. Quem sabe consigo mover alguém da minha equipe para ajudar?

Eu não acredito! O que vamos fazer? — Henrique diz, para Yolanda, que comprime os ombros sem resposta.

Quanto tempo conseguimos segurar até o show?

Dá para atrasar uma hora no máximo.

Faça isso. — Yolanda diz.

O produtor vai odiar… — Na verdade, a produtora sou eu.

Oi. — Aproximo-me dos dois e Henrique revira os olhos para mim, mas Yolanda não esconde seu pânico por trás da armação de óculos antiquado que ela usa. — Por que precisamos atrasar?

Não te interessa. — Henrique diz, grosseiramente.

Claro que interessa, a transmissão é minha e quero saber.

Você só precisa saber que vamos atrasar. — Ele diz de forma agressiva e eu tenho vontade de virar a mão na sua cara, mas me controlo.

Fabrício sumiu. — Yolanda fala rapidamente as palavras.

Quê? — Assusto. Isso é algo incomum, porque ele é super pontual em seus shows, de um jeito que dá até raiva porque é apenas com os shows. — Como assim?

Ele perdeu a conexão SP-RJ e sumiu.

Mas eu o vi aqui mais cedo. — Confirmo com uma careta de estranhamento. Fora que normalmente ele viaja naquele carro caindo aos pedaços e não de avião, só em casos extremos. Ele não perdeu conexão nenhuma. — Já procuraram no camarim?

Ninguém aqui é idiota, Leila.

Henrique! Todos nós estamos nervosos hoje, não desconte na Leila. — Yolanda interfere. Ela é a única que não me trata como vilã por ter terminado com o Fabrício, inclusive, ela disse uma vez que me compreende.

Desculpa! — Henrique recua. Ele coloca as mãos no bolso da ridícula calça prata que vai usar no show. — O que vamos fazer?

Você vai até os técnicos e pede para forjar uma falha elétrica de meia hora, liberar o snack bar pra compensar e inventar alguns sorteios de brinde. Avise a radio para preparar um set list para quando a luz voltar. Depois segura mais essa hora que você me prometeu… — Digo. Eu sempre tenho um plano de contingência, mas nunca precisei realmente usá-lo quando se trata da Blackout, porque eles são todos muito profissionais.

Certo. Obrigado. — Henrique diz e se manda, já gritando as novas ordens para todo mundo.

Yolanda me olha com um fio de esperança em seus olhos.

Isso nunca aconteceu. — Sei que ela está se desculpando pelo sumiço do Fabrício.

Eu sei. Fique calma, temos bastante tempo para não precisar de nada disso.

Olho no relógio. Falta meia hora para o show de abertura, o que me dá um total de uma hora e meia até que eu precise usar a operação de contingência, mas nunca se sabe o que se passa com essas celebridades… e se o Fabrício sumiu, deve ser algo sério. Yolanda sorri com doçura para mim.

Agora me diga que isso é uma crise de pânico e que ele está no carro do pai dele. — Peço.

Yolanda balança a cabeça de um lado para o outro, negando a informação. Eu murcho, porque a minha esperança jazia nesse aspecto.

Engraçado você dizer isso, porque ele teria que voltar para SP. O carro foi restaurado e agora faz parte da decoração da sala.

Oi? — Faço absorvendo a informação. Por que as pessoas se tornam tão excêntricas quando ficam famosas? O Fabrício anda agindo pior que o Axl Rose. — Então ele voltou pro hotel… vai ver dormiu demais e perdeu a hora.

Vou ligar na recepção e verificar se ele deu entrada.

E o celular dele, já tentou?

Mil vezes. Só vai para a caixa postal.

Hm. — Faço. — Tente encontrá-lo, mas já deixa o figurino preparado que assim que ele aparecer começamos.

Eu te aviso. — Yolanda diz, já remexendo em seu celular para procurar o fujão do Fabrício.

Eu continuo minha caminhada até os fundos da casa de show e percebo Elisa limpando a lente da câmera móvel. Ela vai fazer as imagens dos bastidores, a concentração da banda antes de subir no palco, essas coisas de sempre. Já temos muito material sobre isso, inclusive, mas é sempre bom ter mais um pouco e queria algo diferente, como uma conversa entre os membros da banda no camarim… desistimos dessa ideia quando na semana passada pegamos foi a Ruth transando como Mathias, que tem namorada, por sinal.

Ei, Elisa, viu o Fabrício?

Procurando o gatinho para uns amassos antes do show, é? — Elisa me tira do sério com essa afirmação. Ela tem os cabelos ruivos, tingidos, olhos castanhos e é bem baixinha. Está sempre de camiseta, calça jeans e ela sai com garotos e garotas.

Estão dizendo que ele perdeu a conexão no aeroporto, mas tenho certeza que ele veio para a montagem do palco mais cedo, não veio?

Eu fiz umas imagens com ele e os holdies hoje. Coisa bem legal. — Ela sorri. — Ele tá lá fora, no estacionamento, tomando ar.

Oh. — Respiro fundo e vou até a porta. Olho mais uma vez para Elisa, mas ela já está colocando a lente na câmera, preparando-se para as filmagens da concentração.

Enquanto passo pela porta, envio um SMS para Yolanda dizendo que achei o Fabrício e que daqui meia hora coloco ele para dentro do camarim. Olho para todos os lados do estacionamento e simplesmente não acho o Fabrício em lugar nenhum. Já estou quase entrando em crise quando escuto um barulho de vidro se quebrando e um “ops”. Viro a cabeça e percebo através dos vidros do Corolla vermelho de Yolanda, que o Fabrício está em cima do capô, de frente para a vista do mar a noite.

Eu me aproximo nervosamente e o encontro deitado no capô, com as costas no para-brisa, de fones de ouvido, fazendo uma bola laranja de chiclete e provavelmente jogando através do celular. Nos meus pés, a garrafa de cerveja quente quebrada, vazando um resto de cerveja. É como um adolescente fugindo de uma festa.

Assim que chego, dou um tapa na perna dele, chamando sua atenção. Ele confere minhas medidas, sorri entusiasmado e tira o fone de ouvido de um dos lados.

Oi raposinha, que surpresa. — Então ele percebe que eu cruzo os braços e estou brava. — O que houve?

Você sumindo e deixando todo mundo louco ali dentro, Fabrício! — Reclamo. — Está pensando em atrasar o show?

Ele olha para o celular, conferindo o horário.

Mas ainda tenho meia hora. — E se senta desencostando as costas do vidro do carro. Ele está de jeans e camiseta com um símbolo triangular. — Falhou algum equipamento?

Não… — Descruzo os braços. Sabe, ele tem razão, ainda falta meia hora, o desespero é desnecessário e ainda não tenho motivos concretos para brigar com ele. — Mas a Yolanda está ligando para você feito maluca e você não atende!

Hm. — Ele remexe no celular. — Esqueci de tirar do modo avião...

Coloco a mão na testa, ele ri. Ele é muito distraído, nossa, algo totalmente típico dele, causar uma confusão só porque esqueceu um pequeno detalhe.

Ficou preocupada achando que eu fugi?

Não, mas o Henrique ficou em crise. Combinamos até uma falha elétrica para ganhar tempo.

Que desespero, hein… O Henrique está cada vez mais chato e neurótico.

É que normalmente você já está no camarim… — Procuro amenizar as coisas. Sei que Fabrício e Henrique andam se estranhando desde o VMB e ele não me disse os motivos por trás disso.

Precisava de um pouco de silêncio. — Ele tira os fones, guarda o celular e desce do capô, ficando bem na minha frente. — Jared Leto fica uma hora em silêncio antes do show, sabia?

Fabrício, você não é o Jared Leto. — Quero dar risada, mas procuro ficar séria. Se o Fabrício pudesse ser comparado com algum rockstar seria com o Ville Valo… mas daqui uns dois ou três anos, acho que ele vai fazer tanto sucesso quanto o Jared Leto e isso será insuportável!

Ainda bem, né, raposinha, ele tem o péssimo hábito de preferir loiras. — Ele brinca, já segurando em meus cabelos, que são castanhos, por sinal, embora eu já tenha pintado de diversas cores. Lá está ele flertando comigo de novo.

Isso caracteriza assédio sexual, sabia?

Não vejo problemas em assediar você sexualmente… — Posso até ver que ele está imaginando coisas sujas, porque morde a boca. — Mas você é minha mulher, então não é exatamente assédio.

Você precisa colocar uma coisa na sua cabecinha-oca. — Bato o dedo em sua cabeça. — Nós terminamos.

Sou enfática, porque sinceramente, já não aguento mais. Estou namorando, estou feliz, não quero um cara me pegando, me beijando e tornando tudo ainda mais complicado… por mais gato e sexy que esse homem seja.

Depende do ponto de vista. — Ele diz duvidando, o que me causa uma sensação estranha.

Você pirou? Não comece a delirar.

Nós não terminamos, Leila, estamos dando um tempo enquanto você fica aí resolvendo esse seu “lancezinho sem graça” com o Bernardo. — E ele se inclina para me beijar, fazendo com que eu o empurre para longe com força.

Se você continuar com isso, antes de terminar esse DVD ao vivo, eu juro que peço demissão.

Pede nada. — Ele me provoca.

Eu preciso de espaço, Fabrício!

Quer uma trégua?

Quero que você pare e me respeite. Isso já está me irritando profundamente. — Estou sendo sincera, vou virar a mão na cara dele se continuar.

Tá bem. — Ele se afasta e eu quase não posso acreditar que ele recuou, mas é tão real quanto posso ver. Ele passa para a frente do carro e enrola os fones no celular. — Vou te dar um pouco de espaço, mas só o suficiente para você perceber que fez a escolha errada, para variar.

O que deu em você para chegar a essa conclusão maluca? — Pergunto, ainda atônita.

Nada… — Ele dá de ombros e sorri. — Sei que sou o amor da sua vida.

Não Fabrício, você não é. — Cruzo os braços.

Negue o quanto quiser, raposinha, mas vai por mim, não vai dar para fugir para sempre. — Ele diz isso já abrindo a porta para voltar para os bastidores quinze minutos antes do que ele pretendia fazer, assumo.

Respiro fundo, conto até dez. Não tenho paciência para mania de celebridade, o que me faz contestar se estou mesmo no emprego certo… sei que o Bernardo acha que seria uma péssima ideia sair agora, mas ando considerando muito essa hipótese.

***

Para variar, quase morro assistindo o Fabrício pela central de edição as filmagens do show. Não sei o que me dá toda vez que ele canta, a voz é muito sensual e suas músicas estão melhores nesse album do que no passado… ele ainda tem o piercing na língua, mas só dá para ver quando lança algum agudo e abre bem a boca.

Eu fico imaginando, o que um cara como ele, que tem basicamente um mundo de mulheres aos seus pés, quer correndo atrás de mim. Eu sei que o Bernardo e a Drica consideram que é um capricho adolescente, mas a insistência do Fabrício anda me fazendo imaginar coisas… e eu não devia!

Balanço a cabeça, afasto a mente dessas ideias doidas e procuro me concentrar no monitor três, que foca em Cleber. Assim não preciso ficar olhando para o Fabrício sem camisa. Bem que hoje podia ser um dia bem frio, assim não precisaria ver esse garoto quase sem roupa, viu!

Eu sei que é um lance totalmente sexual entre eu e o Fabrício, ele realmente mexe comigo nesse quesito. Foi o único namorado que eu tive que fazia sexo comigo duas vezes por dia, todos os dias e as vezes até mais… mas quando vamos falar de sentimentos, meu coração bate mais forte pelo Bernardo, de um jeito que até dói agoniado só e pensar que ele não está lá muito feliz.

Tenho pensado muito na regra dos três (que o Bernardo disse que existe) e se por um acaso não estamos beirando aquele momento em que começamos a fingir que somos felizes para todo mundo, mas que no fundo, temos nossas diferenças.

Eu sei, não existem casais que sejam felizes em todos os aspectos e o essencial é que vivamos dia após dia apenas sobrevivendo às nossas diferenças… mas não me sai da cabeça que o Bernardo anda representando, desde que eu o fiz parar de viajar. Será que fui egoísta?

Uma queda de luz me chama de volta a realidade. Olho para Elisa, mas está escuro.

O que houve? Faltou luz? — Pergunto, mas a mesa de edição se acende de novo e todos os monitores estão chuviscando.

Ai não… — Elisa faz e aperta uns botões. Os monitores que estão ao vivo voltam a vida, consigo voltar a assistir ao show, mas Elisa me olha em pânico. — Ai, Leila… eu perdi as imagens gravadas!

Quê? — Quase morro. — Tem certeza?

Meu Deus, meu Deus! Eu gastei uma nota montando toda a estrutura para hoje e a Elisa fez o quê que conseguiu zerar as filmagens? Isso é mesmo possível? Não entendo de equipamentos de vídeo, mas já odeio o fato de que não tinha um gerador ligado nessa mesa digital!

Absoluta, vamos ter que refazer tudo. — Elisa sentencia e eu caio sentada na cadeira giratória atrás de mim.

Eu não vou aguentar outra maratona de Fabrício! Só pode ser brincadeira!

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