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CAPÍTULO 02 - Pisando Em Campo Minado

"[...] Quando esse dia chegar, espero que você me entenda. Eu te amei enquanto você me destruía."

→15 dias antes do grande dia.

Jazz.

No jardim e na casa toda, tudo o que se ouvia eram vozes em cima de vozes, e jazz.

As melodias instrumentais invadiam meus ouvidos e me faziam sentir uma forte necessidade de fechar os olhos, e se possível, me embalar e fingir que todo aquele caos não estava acontecendo. Mas se eu o fizesse, com muita sorte acabaria apenas chorando na frente de todos com uma taça de vinho nas mãos, sendo mais patética do que já achava ser. 

Era cedo, entretanto, já bebia para conseguir levar o restante do dia à diante.

Não que fosse uma alcoólatra ou que necessitasse de algo correndo em minhas veias para ter vontade de conviver com outras pessoas, mas um bom vinho sempre dava uma animada nas coisas, e eu precisava de um "up", ou então espantaria os convidados com minha linda cara fechada de moça anti social.

Não podia fazer, mas parecia não me restar escolhas. Lá embaixo, no jardim, tudo o que via eram as pessoas conversando e sorrindo, ainda não havia chegado todos os convidados mas já se formava um bom aglomerado, e entre eles, Sam com a morena maravilhosa que o acompanhava e usava uma linda aliança no dedo. 

Não sentia ciúmes nem nada, na verdade, sentia certa pena porque me lembrava bem dos últimos momentos que passei ao lado dele, e se não mudasse seus pensamentos e sua índole, a coitada que se tornaria sua esposa, ia transformar todos aqueles sorrisos lindos em lágrimas.

Como disse, não podia fazer, mas meus olhos se fecharam instintivamente me privando de ver as cenas do lado de fora, e enquanto o jazz ainda ressoava, as lembranças de anos atrás insistiam em desfazer minha paz. 

Uma noite estrelada e cheia de pessoas pelas ruas, uma fantasia nem tão inusitada e a melodia das canções preferidas tocando e se dissipando pelo ar gelado da minha cidade natal.

Era outubro, mês mais esperado do ano, e o mais marcante pra mim há onze anos atrás.

Já fazia muito tempo e mesmo assim, sempre que eu ouvia jazz ou pensava em uma cerimônia de casamento, as lembranças retornavam massantes.

Abri os olhos e tomei o último gole de vinho tinto que repousava dentro da taça, ainda no jardim a felicidade prevalecia e era bom que fosse assim mesmo.

Tudo deveria estar perfeito e agradável para Bruce e Louise. O que eu mais desejava era toda a felicidade do mundo para os dois, e se alguém tentasse acabar com isso, me veria sendo a irmã mais nova e mais briguenta. 

Mexer com Bruce era um erro enorme, e isso se sucedeu à Louise assim que assumiram um compromisso.

Passei a palma da mão sobre o tecido fino do vestido vermelho para tentar desfazer qualquer ruga que pudesse haver ali e deixei a taça de cristal sobre a escrivaninha empoeirada, dando o contraste totalmente oposto ao restante do cômodo.

O antigo escritório do pai de Lou não devia receber uma limpeza por talvez anos, o cheiro de coisa guardada prevalecia e tornava o ar quase impossível de ser inalado. Quase como uma tortura, e pra mim isso era bom.

Precisava descer e me juntar aos outros, tinha que encarar de vez o que quer que fosse e inventar uma mentira descabida de que meu parceiro não pôde comparecer na reunião oficial porque estava em uma viagem de trabalho. 

Bom, não seria uma mentira tão grande assim visto que meu pai precisou mesmo ir viajar para resolver assuntos das lojas, e como as chances de ele ser o meu par eram de noventa por cento, eu nem sequer estaria mentindo dessa vez.

Antes que me virasse para sair do cômodo e me juntar aos outros, a porta foi aberta e imaginei Bruce entrando por ela, vestindo seu terno caro e estampando uma carranca de quem não está satisfeito com nada, porque nos últimos dias ele andou bem chato e estressado com toda a correria da festa, então não seria surpresa alguma se eu tivesse que tentar acalmá-lo mais uma vez. Eu estava ali para isso.

O que é engraçado, é que mesmo depois de anos, o corpo parece reconhecer perigo e mesmo sem os olhos verem qual é a fonte desse perigo, os sentidos se aguçam e passam o alerta.

Os meus sentidos me alertaram.

Acredito que tenha sido o cheiro, não se comparava nem um pouco à graxa ou pneus, mas o perfume não tinha sido trocado, ou se tivesse, naquele momento ele decidiu usar só mais uma vez para me atormentar. Reconheceria aquela fragrância a metros de distância.

Eu me virei em um súbito desejo de estar errada quanto a minha percepção, e quando fiz isso tudo em mim pareceu gelar. 

Se o conforto do último gole de vinho me proporcionou um calor gostoso, a imagem de um homem imponente fez toda a calmaria ir embora, me colocando mais uma vez em um inverno congelante. Porque não havia outras palavras para descrever o modo como eu ficava todas as vezes, antes de fugir.

Eu congelava sob o seu olhar e sua presença.

— Aqui não deve ser o banheiro, certo? Apesar de eu estar vendo alguém na merda.

Nossa, era pra ser engraçado, Capitão?

E essas foram as primeiras palavras depois de tanto tempo...

Travis Turner estava de volta. Até o nome do desgraçado podia ser comparado ao meu. Não dava nem pra tentar apagar ele de mim.

— Ah, nossa! Quanta infelicidade te ver aqui. Achei que você nos pouparia disso.

Merda! Porque eu não consigo ser afiada o suficiente com ele?

O homem sorriu pequeno e deu um passo para frente, entrando de vez na sala quase vazia, fechando a porta assim que se posicionou frente a mim, com agora, cerca de apenas seis metros de distância nos separando.

O que são seis metros quando vivemos a milhas de distância um do outro por anos e anos?

— Pensei que você não estivesse aqui, visto que me refiro a maior fugitiva que conheço. Posso até dizer que é a maior fugitiva do mundo todo.

Foi minha vez de sorrir.

— Achei que você já tivesse superado — provoquei e dei três passos bem equilibrados nos saltos, para pouco a pouco quebrar nossa distância, ou fugir dali caso fosse mesmo necessário.

— Eu superei — desdenhou —, só não acho que os seus antigos noivos ou as pessoas presentes fizeram o mesmo. Já ouvi bastante coisa em tão pouco tempo.

Bando de fofoqueiros.

— Não me preocuparia tanto com isso se fosse você… Por que não foca no casamento do seu melhor amigo ao invés de tentar cuidar da minha vida amorosa? Não foi pra isso que você pegou um vôo de dezoito horas, certo?

Como se fosse planejado, nós dois demos mais passos juntos, em direção um ao outro, mas ainda paramos sem estar próximos o suficiente para sentir o alerta máximo de perigo. 

Nós dois ainda nos lembramos dos limites e da distância segura, pelo menos.

— Andou pesquisando os detalhes do meu voo, Terena? Pensou em me visitar em algum momento?

Dessa vez deixei que uma boa risada fosse ouvida. 

Nem nos meus piores sonhos eu iria até Travis, eu nem sequer gostava de ouvir falar sobre ele, ou de receber qualquer notícia que fosse sobre sua vida. Nosso último encontro tinha sido o estopim para eu não querer nunca mais vê-lo na minha frente. 

Podia se vestir todo de ouro e diamantes, ainda assim eu o queria bem longe de mim. Tinha vividas lembranças sobre aquela noite e elas não eram tão legais ou favoráveis.

— Isso é tudo o que você mais queria, não? Você deve ter contado os dias para estar frente a frente comigo, mais uma vez. 

O homem não respondeu, ao contrário disso ele apenas umedeceu os lábios cheios e depois trincou o maxilar. 

O queixo quadrado estava ainda mais marcado. As linhas de expressões também denunciavam que muito tempo havia se passado, muito tempo desde que não ficávamos tão próximos e que disséssemos tantas palavras um para o outro.

Na última vez nos xingamos bastante, e eu achei que tinha sido o necessário para que ele me deixasse em paz, mas não foi.

— Vim mais cedo pelo Bruce, e acho que se quisesse te ver antes disso, eu mesmo teria batido na sua porta. Só que nós sabemos muito bem o que aconteceria antes de você fugir mais uma vez, então nem sequer pensei em perder meu tempo.

— É, seria uma baita perda de tempo, como está sendo agora. Estamos perdendo nosso valioso tempo conversando, enquanto você deveria estar ajudando o Bruce a recepcionar os outros convidados. Longe de mim. Já que veio para isso, não?

Travis pareceu satisfeito com o desfecho do momento. Sem responder o que havia levado ele de fato a cidade tão cedo, ele movimentou o corpo para o lado e indicou a porta. 

A silhueta ainda mais alta e o tecido de caimento perfeito que o terno chique lhe dava só o deixou mais imponente, totalmente diferente do que me lembrava.

Não que não houvesse imponência, mas não havia tanta masculinidade. Ele agora era um homem, não um menino.

— Essa parte é só sua. Você é quem foge, então faça o que sabe fazer de melhor.

Ah claro. Por que não jogar coisas na cara?

Em um momento de loucura, me aproximei mais do que deveria, deixando que todos os alarmes soassem em minha cabeça. 

Definitivamente, não podíamos ficar tão próximos, mas eu precisava deixar claro que ele não iria acabar com a minha sanidade logo no seu primeiro dia de volta. 

Com o braço apontando para a saída ele permaneceu, como se ignorasse o meu cheiro, ou minhas mãos que por pouco não tocavam seu corpo, e antes que eu passasse porta afora para enfrentar o dia alegre de todas as pessoas presentes na casa de campo dos Fauzer, sussurrei perto o suficiente para que a provocação surtisse efeito.

— Você deve se lembrar do melhor que sei fazer, e isso não inclui eu saindo por essa porta, mas a minha boca nos lugares certos, sim.

Agora estava livre para ir. Foi ele trincar o maxilar e engolir em seco e eu tive a minha paz.

Travis poderia jogar na minha cara quantas vezes quisesse que eu era uma covarde, isso acontecia com frequência no dia a dia vindo de vários lados e várias pessoas, então já havia me acostumado. 

Foda-se quantas vezes fugi, e de quem fugi.

Continuaria fazendo isso o quanto fosse preciso, e dele eu manteria distância nem que para isso eu inventasse uma pneumonia e ficasse trancada dentro de casa até o dia do casamento. 

Bruce não podia colocar sua vontade acima da minha saúde, certo? 

Porque ele que me perdoasse, mas chamar Travis Turner no início da temporada era muitos golpes deferidos em mim sob injustiça, sem possibilidade de defesa.

Sim, os bonitinhos eram melhores amigos há anos, mesmo com a distância isso entre eles não mudou nunca, mas se fui obrigada a me afastar um dia, que jamais fosse forçada a retornar do ponto em que parei. 

Isso sim era real tortura.

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