Morelo

A primeira coisa que vi quando desci ao estacionamento foram os seguranças desmaiados no chão, isso me deixou bastante apreensivo. A partir daí dei cada passo cautelosamente, olhando para os lados para prevenir que ninguém me fizesse um ataque surpresa. Felizmente isso não aconteceu.

Ao chegar perto do meu carro, vejo uma mulher apoiada em sua lateral, claramente estava nos esperando. Ela aparentava ter a minha idade mais ou menos, além disso tinha cabelos loiros presos em um rabo de cavalo e olhos castanhos. Eu sabia exatamente quem era. Quer dizer, não a pessoa, mas pra quem ela trabalhava. Seu terno preto não mentia.

 - Olá.- Ela disse cordialmente.

 - Como vocês sabem onde eu moro?

 - Nunca deixamos de saber, apenas não tinha porque nos mostrarmos à você. Mas saiba disso, tudo que você faz ou fala dentro dessa cidade, nós da CISS sabemos.

 - Mas por que? Não é crime deixar o exército.

 - Não é crime, mas com toda a informação que você sabe...- Ela balançou a cabeça negativamente. - Nunca deveriam ter deixado você sair depois de tudo que viu ou ouviu. Só que o imbecil do Staltz te liberou só porque te achou entediante. Dá pra acreditar naquele palhaço?

 - Eu juro que isso é menos comum do que parece.

 - Eu acredito, mas agora vamos aos negócios. Essa garota com você. - Ela olhou para a menina feiticeira. - Tínhamos dúvidas quando recebemos a denúncia, por isso eu mandei os idiotas averiguar, mas o fato de nenhum deles ter voltado... É intrigante, não acha?

 - Eu não vi ninguém...

 - Aqui em Liandria não é crime abandonar o exército, mas interferir em assuntos do governo não vai ser legal pra você.

A garota olhava pra mim assustada. Eu não podia entregá-la assim. Não podia fazer isso com ela. Além do mais, eles não iriam me deixar sair por aí de boa depois de tudo que aconteceu lá em cima.

 - Pera, não dá pra resolvermos isso de uma maneira civilizada?

 - Claro, entregue e a garota e venha comigo.

 - Você vai ficar brava se eu disser não?

 - Na verdade vou ficar feliz, já que você é um ex-soldado de Liandria. Dizem que o exército daqui tem um dos melhores treinamentos do mundo, então vai ser um prazer limpar o chão com a sua cara.

Nós nos encaramos, ela me fitava com um olhar energético, como se mal pudesse esperar para lutar. Já eu, não estava muito animado com isso. Quando acordei hoje cedo, a última coisa que esperava era lutar, ainda mais com os CISS. A verdade é que hoje estava um dia bem estranho. Primeiro minha entrevista de emprego deu errado, depois uma menina feiticeira no meu apartamento, e agora isso...

 - Calma aí, eu sou... Eu ERA um atirador de elite, sem uma arma não sei fazer muita coisa.- Tentei argumentar.

 - Pena pra você... Sorte pra mim.

A agente da CISS arregaçou suas mangas e mostrou seus punhos pra mim, ela estava usando uma manopla de metal do tamanho de uma luva em cada uma das mãos.

 - Qual é da arma?

 - O controle de matéria inorgânica é uma das habilidades da feiticeira, isso inutiliza qualquer tipo de arma de fogo convencional. Mas isso aqui ela não pode controlar.

Se eu tomasse um ataque sequer dela com aquela coisa, estava em maus lençóis, pensei.

Ela veio direto na minha direção e desferiu o primeiro soco da batalha, eu prontamente desviei para o lado, mas antes que pudesse pensar na próxima ação já estava tendo que desviar do seu próximo golpe. Após mais um desvio, outro soco...

A medida que ela me desferia golpes com seus punhos, eu era forçado a me concentrar apenas em desviar e recuar, já que contra atacar estava difícil, tendo em conta que ela deixava pouquíssimas aberturas. O fato de não ter uma arma também dificultava e muito as coisas pra mim.

Ela me fez recuar tanto que quando menos esperei, minhas contas estavam tocando na parede. Quando seu próximo soco veio, eu consegui desviar rolando para lado, mas pude ver a real força de seus ataques. Ela fez uma grande rachadura em uma parede de concreto.

 - Forte, não?- Ela perguntou em deleite.

 - Pra ser sincero, eu esperava mais. Pensei que a parede estaria com um buraco nesse momento.

 - É porque essas luvas não são pra matar, apenas imobilizar e capturar.

Após dizer isso ela voltou a correr na minha direção. Eu me afastei da parede, já que minha melhor chance em um lugar aberto.

A agente continuou golpeando e eu continuei desviando, assim como antes, porém, eu já estava começando a ler os ataques da minha adversária. Seu estilo de lutar era rápido, mas muito direto, o que tornava previsível. Eu sabia exatamente onde seu soco seguinte iria, então me antecipei, desviando antes e contra atacando. Foi meu primeiro ataque direto nessa luta.

Acertei um soco com toda força em sua cara, a jogando direto no chão. Minha chance, pensei. Corri em sua direção enquanto ela se levantava, preparando mais um soco pra tentar finalizar a luta o mais rápido possível, só que acabei sendo ingênuo achando que tinha alguma chance... A agente se recuperou e se levantou mais rápido do que eu esperava, ela então simplesmente desviou pro lado do meu soco e segurou meu braço com uma de suas mãos, me deixando preso. Quase que imediatamente ela preparou um contra ataque com sua mão livre, que mirava diretamente na minha cara. Não podia tomar isso, pensei, então agi rápido. Antes dela conseguir desferir seu ataque, choquei minha cabeça contra a dela. Eu devia ter uma cabeça dura, pois ela me soltou na mesma hora. O impacto nos fez cambalear para trás, nos afastando um do outro. Eu estava salvo por enquanto.

- Mas que raios de cabeça dura é essa, seu imbecil!? Além disso...- Ela disse enquanto levava uma de suas mãos à boca, limpando um pouco de sangue.- Belo soco.

Ela foi novamente pra cima e eu, mais uma vez ingênuo, achei que seus ataques continuariam os mesmos diretos previsíveis de sempre.

O problema era que minha adversária era uma boa lutadora e já havia percebido que estava sendo lida. Ela fez um jogo de corpo ameaçando me socar e eu, como se fosse de maneira automática, esperei para desviar pro lado como todas as vezes anteriores. Só que ao invés de me socar, a agente se abaixou para chutar minhas pernas. Não tive tempo de reação e caí direto com as costas no chão. Antes mesmo de conseguir levantar, vejo a agente pulando na minha direção com seu punho armado, pronto para dar um soco destruidor. No último instante consegui rolar para o lado antes que ela me acertasse. Já o chão onde eu estava, estava com uma grande rachadura.

Eu me levantei com dificuldade, recuperando meu fôlego.

As coisas não estavam indo bem. Essa agente era mais forte do que eu e se ficasse mudando o padrão de ataque, até mesmo defender seria difícil.

Olhei para o lado e reparei na garota feiticeira observando tudo sem mover um único músculo.

 - Pode ajudar quando quiser, ok?

 - Eu não sei o que fazer.- Ela respondeu.

 - Qualquer coisa. Usa seu poder e joga qualquer coisa nela.

Eu mal acabei de terminar a frase e a agente pulou na minha direção, desferindo um chute giratório. Eu me abaixei a tempo e me afastei um pouco.

 - Não tire o olho do inimigo.- Ela disse com o mesmo sorriso energético de sempre.

Enquanto nos encarávamos, sentia algo vindo na nossa direção. O olhar da agente de pânico confirmou isso. Era um carro, ele estava vindo de trás de mim. A feiticeira nos jogou um carro!

Nós dois conseguimos pular para o lado a tempo.

 - Um carro não!- Eu disse indignado. - Quer matar a gente?

Mal levantei e a agente já estava de pé, me esperando.

- Que cara legal você é. Me incluindo no "a gente".

 - Não é que eu tenha simpatizado com você nem nada, mas é que desde a guerra prometi não matar mais ninguém.

- Que ideia zoada.

 - E você? Esperou eu me levantar? Podia ter atacado enquanto eu estava caído.

- Assim não tem graça, atacar alguém em desvantagem é contra o código de conduta de um lutador.

- Olha só... quem é a legal agora?

- Sabe... eu tenho a impressão de que se não fôssemos inimigos, até poderíamos ser amigos.

 - Depende, você também tenta matar seus amigos?

 - Isso aí você não vai ter a chance de descobrir.

Ao contrário das duas últimas vezes, eu tentei tomar a iniciativa dessa vez e corri na direção dela. Diferente do que eu imaginava que fosse fazer, ela correu de mim, o que era estranho, mas continuei a perseguí-la. O que eu não imaginava era que isso tudo era uma armadilha. Eu estava extremamente perto de alcançá-la enquanto ela corria em direção à um carro. Quando entendi o que a agente estava tentando fazer era tarde demais, ela usou o carro com o trampolim, saltando nele e dando um mortal pra trás de mim. Quando me virei, já era tarde demais. Ela golpeou meu estômago com máximo de força possível usando aqueles punhos. Eu fui ao chão na mesma hora com muita dor. O mundo inteiro estava girando, a realidade era que eu estava fazendo força pra não desmaiar.

- Foi legal... Enquanto durou.- Disse a agente com expressão de satisfação.

Ela me deixou jogado no chão e começou a caminhar na direção da garota feiticeira.

 - Espero que você saiba lutar, diferente daquele otário ali no chão.

Nem passou pela minha cabeça considerar isso como insulto, pois estava preocupado com a garota. Ela não tinha experiência nenhuma de luta e estava contra uma oponente dura.

 - Vamos ver se você é durona como as histórias dizem.

A agente finalmente avançou até a garota. Assim como contra os guardas, ela empurrou sua adversária pra longe usando uma onda de choque com seus poderes. Só que uma agente da CISS não se comparava com simples guardas... Ela cravou suas mãos protegidas pelas manoplas no chão para reduzir a distância em que foi jogada, após isso voltou a atacar mais uma vez. A garota repetiu o mesmo movimento e do mesmo jeito deu errado. Na terceira investida, ela fez diferente, não sei se por estratégia ou cansaço, mas a feitceira deixou a agente se aproximar e quando a mesma deu um soco que seria destinado a ela, a garota o neutralizou com uma barreira. A agente deu um pulo para trás e socou novamente. Percebendo que a garota não saia do lugar e nem tentava atacar de volta, a agente só focou em socar a barreira indiscriminadamente, porém nenhum ataque conseguiu ser efetivo.

Eu sabia que tinha que ajudar a garota, e também havia percebido que a agente havia esquecido totalmente de mim, já que ela nem sequer olhava pra cá. Eu me pus de pé com dificuldades enquanto pensava em um plano. Tinha que ser algo certeiro, já que só tinha uma chance, se eu errasse ela não deixaria outra brecha. Levei a mão até meu bolso direito e percebo que minha chave do carro ainda estava lá. Nesse momento, já sabia o que tinha que fazer. Enquanto as duas lutavam eu andava devagar e silenciosamente em direção ao meu carro.

Depois de dar inúmeros socos na barreira, a agente finalmente desistiu.

- Essas suas barreiras são chatas, hein? Mas não tem problema. Pra seu azar, eu sou uma ótima profissional.

Ela tirou de seus bolsos quatro pequenas esferas que jogou ao redor da menina feiticeira. As esferas se abriram em sua volta, criando uma onda de som.

Esse ataque foi efetivo, pois o som altíssimo afetou a garota, fazendo a barreira se desfazer. A agente então avançou na direção dela, a segurando pelo pescoço e levantando-a.

- Agora, vai aceitar vir comigo sem me aborrecer?

A agente continuava sem olhar na minha direção, então pude entrar no carro e liga-lo. Acelerei com tudo que tinha na direção dela. Talvez meu plano, não tenha sido tão bom, já que a agente me percebeu chegando enquanto me aproximava. O que garantiu que o plano desse certo, foi o fato da feiticeira ter prendido o pé da agente no chão, usando seus poderes.

- Sua pestinha!- Disse a agente da CISS enquanto via seu pé cercado por concreto ao mesmo tempo que um carro à toda vinha em sua direção.

A feiticeira soltou o pé dela, instantes antes do meu carro chegar, mas já era tarde demais, o carro acertou em cheio, a jogando longe e fazendo rolar no chão. Ela não se mexeu depois disso, o que me fez pensar que estava morta.

Já a garota estava no chão com as mãos na garganta e tossindo.

- Você está bem?- Perguntei.

 - S-Sim.

- Ótimo, entra.

A garota entrou no carro. Eu dou uma conferida na agente e por sorte ela estava viva.  Ainda bem, eu pensei. Não queria ser responsável pela morte de ninguém, nunca mais.

Saí do estacionamento do prédio em direção às ruas. Eu estava extremamente apreensivo, até porque era um criminoso agora e estava acompanhando nada mais nada menos que a figura mais odiada da história do continente. Curiosamente, as ruas estavam absolutamente normais, não havendo nenhuma movimentação diferente. Provavelmente, os militares não estavam fazendo uma grande mobilização pra não causar estardalhaço. As pessoas ficariam em pânico se soubessem que tem uma feiticeira aqui, até porque ela deveria estar morta.

A garota estava na dela, sentada no banco de trás e não parecia estar nem um pouco nervosa.

Enquanto viajávamos, eu notei algo estranho no céu. Ele estava com um tom esverdeado. Algo que nunca havia visto antes. 

 - O que é isso no céu? Tem algo haver contigo?- Perguntei.

 - É parte da minha energia. A cidade toda tem isso. Sempre teve.

 - Eu não entendo. Como?

 - Eles sugavam meu poder e usavam como fonte de energia. Foi o que eu ouvi no laboratório onde estava.

Foi nesse momento que eu descobri a fonte da energia misteriosa de Liandria. Eles haviam mentido, a linhagem de feiticeiras que se orgulhavam tanto de ter matado estava viva esse tempo todo e presa em um laboratório em alguma parte desse lugar. Mas por que eu só conseguia ver esse verde agora? Talvez o fato de eu ter tocado nessa garota tivesse me permitido ver.

- Não é só nessa cidade então, é no país todo.- Comentei.

- O que vamos fazer agora?

 - Eu não faço idéia.

 - Entendo...

Uma coisa que me incomodava sobre essa garota é que ela quase sempre tinha a mesma expressão vazia, como se não tivesse nenhum sentimento dentro dela. A única vez que mostrou algo foi medo, quando os soldados entraram no meu apartamento, medo de voltar a ser um rato de laboratório, talvez. Eu entendo que nunca ter tido contato com outras pessoas antes a deixara assim, mas ela podia ser um pouco mais expressiva. Olhar nos meus olhos enquanto falava comigo era um bom começo.

 - Eles virão atrás da gente cedo ou tarde. Temos que ir para algum lugar.- Ela disse.

Ela estava certa, eu tinha que sair da cidade. Talvez até mesmo do país... Foi aí que eu tive uma ideia.

- Já sei pra onde iremos.- Eu disse.

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