Ophelia

Estava em um grande conflito.

Me encontrava debruçada na sacada do Palácio presidencial olhando para o céu, reflexiva, talvez esperando que eu alguma resposta milagrosamente caísse de lá. Eu sabia o que estava pra acontecer e não me sentia confortável com isso, na verdade, a cada dia que se passava eu ficava cada vez menos satisfeita com Liandria e seus planos imperialistas por debaixo dos panos. Tinha acabado de voltar da minha cerimônia de promoção, onde dei um discurso na frente de centenas de pessoas prometendo que cuidaria do povo de Luniantes e traria paz, o que era exatamente o oposto do que Heutz planejava. E diferente dele, eu me sintia mal mentindo.

O plano na verdade era invadir a Jacsônia, uma poderosa nação que ficava à oeste daqui, e Heutz pretendia usar vidas inocentes de luniantenses para isso. Ele estava esperando que rebeldes invadissem o Palácio presidencial hoje à noite e após matá-los, faria parecer que tudo fora um atentado do exército jacsão à sua vida. Já que ele era o homem mais importante do exército liandrino, isso seria basicamente uma declaração de guerra, o pretexto perfeito para invadir a Jacsônia.

Isso não podia ser certo. Derramar sangue de inocentes assim não podia ser certo. Como soldada, eu sempre fui encorajada a levantar minha arma e matar qualquer inimigo de Liandria, mas estava tendo que fazer isso em nome de ideais mesquinhos e perigosos.

Eu queria pegar ar fresco, então pensei em sair.

Andei pensativa pelos corredores do palácio. Será que tinha algo que eu pudesse fazer para evitar isso? Antes que pensasse em uma resposta, encontrei com o grão general Heutz passando. Ele me olhou nos olhos e instantaneamente pareceu ficar incomodado.

 - Algo errado?- Perguntou.

 - Não, eu estou bem.- Tentei me esquivar.

 - Você não pretende atrapalhar o plano, não é Ophelia?

Eu tive uma pequena parada cardíaca quando ele disse isso. Seria possível que ele desconfiasse de mim? Mas como?

- Eu não estou te entendendo. Eu jamais faria algo assim.

 - Claro que não... Talvez eu tenha reparado errado. Me perdoe.

 - Tudo bem. Eu vou indo agora, se não se importa.

 - Pode ir.

Eu então voltei a caminhar em direção à saída.

- Mas tenha algo em mente, minha visão raramente erra. Não me decepcione.- Ele completou.

Engoli seco.

 - Sim, senhor...

Me afastei com meu coração batendo aceleradamente. Ele tinha os mesmos olhos que eu, olhos de quem sofreu infusão de magitec, mas ao mesmo tempo era diferente. O olhar dele era extremamente penetrante, era quase hipnotizante, era como se ele quase me estivesse fazendo contar tudo por espontânea vontade. Era assustador. Dos nossos "irmãos’’ de experimento, ele era o único que eu não tinha conhecimento das habilidades, ele deixou o laboratório cedo para se juntar ao exército na Cidade Capital.

Deixei o palácio para caminhar pelas ruas da cidade. Cheguei até a praça onde eu e o Heutz demos nosso discurso mais cedo, só que agora a multidão já havia dispersado. Me sentei em um banco que ficava perto de uma fonte. Nessa fonte havia a estátua de um homem barbudo montado em um cavalo, ele estava segurando uma espada e em sua base estava escrito: " Ao herói de Luniantes, Florian Meyer. Que graças a sua bravura pudemos clamar nossa independência do império Liandrino em 1918". Esse homem provavelmente estaria triste com a situação desse país se estivesse vivo. Luniantes no passado era dominado pela própria Liandria, mas conseguiu se libertar. Com um pouco mais de cem anos depois eles estão sobre controle de novo. Esse povo já sofreu bastante, se existisse alguma espécie de justiça nesse mundo, eles não deveriam sofrer mais. Será que todo o sacrifício desse homem e dos outros que lutaram foi em vão?

Resolvi me levantar e andar mais um pouco, até avistar um comerciante local sendo abordado por dois guardas. Ele era um senhor de idade e estava administrando uma barraca de frutas.

 - Você sabe as regras, tem pagar um por fora.- Disse um dos guardas.

 - Mas eu não quero. Não é justo que eu tenha que dar parte do meu dinheiro para vocês.

- Ah, você não quer? Ok então.

O guarda chutou a base da barraca do vendedor, a derrubando no chão e com ela toda sua mercadoria.

 - É uma taxa por segurança, nós asseguramos que nada aconteça com o seu negócio. Você não pagou, olha só.

 - Vocês são uns desgraçados!

O comerciante tentou ir para cima dos dois, mas foi prontamente derrubado pelo guarda que colocou o pé em cima de seu peito.

 - Que feio, agredindo uma autoridade. Eu poderia te levar preso.

 - Ei, cara. Você não acha que exagerou?- Perguntou o segundo guarda.

 - Cala a boca! Esses ratos de Luniantes tem que aprender o seu lugar.

Eu não aguentava mais ficar apenas observando, então fui até onde os guardas estavam.

 - Algum problema?- Perguntei.

O soldado encrenqueiro tomou um susto com a minha presença e se pôs prontamente em posição de sentido junto com seu companheiro.

 - N- Não, senhora.

 - Não é o que parece. Vocês estão pegando dinheiro dessa gente?

Os dois ficaram em silêncio.

 - Me respondam!

 - S-Sim, mas não volta a se repetir. Prometo.

 - Assim espero, senão vou te rebaixar tanto que você vai ter que dormir com os cavalos do exército. Agora dêem o fora daqui os dois.

Os dois soldados saíram rapidamente dali.

- Você está bem, senhor?

Eu tentei ajudá-lo a se levantar mas ele me empurrou pra longe.

 - Não me toque!

 - Deixe eu pelo menos te ajudar com as suas coisas.

- Por que você não sai daqui e me deixa sozinho?

 - Eu quero ajudar. Perder suas coisas assim deve ser difícil.

 - E o que você sabe? Você é um deles! Ocupam nosso país e pegam nossas coisas!

 - Eu... Desculpe.- Não havia o que argumentar. Ele estava certo, eu era um deles.

Decidi sair e deixá-lo sozinho.

Andando mais um pouco vi uma garotinha, ela estava tentando alcançar alguma coisa dentro de um bueiro. Curiosa, eu me aproximei para ver o que era.

 - Oi garotinha. Algum problema?

 - O meu cordão, caiu lá embaixo e eu não consigo pegá-lo.

 - Não dá pra passar sua mão por ai. Por que você não desiste e compra outro?

A garota se pôs a chorar, acho que só piorei a situação.

 - Por que você quer tanto ele?- Perguntei.

 - Minha mãe que me deu, foi a única coisa que ela deixou antes de....

Ela já estava soluçando. Pobrezinha, eu não podia deixá-la desse jeito.

- Deixe-me ver.

Olhei por dentro do bueiro e percebi que ele não era nada fundo, se eu colocasse minha mão ali conseguiria alcançar. A questão era: como? Bom, pra mim era fácil. Usei então minha habilidade de "fantasma" para fazer minha mão atravessar a grade de ferro e chegar até o cordão. Ao ver o cordão em minhas mãos, os olhos da menina brilharam.

 - C-Como você fez isso?

 - Você não precisa saber. É um segredinho nosso, ok?

 - Ok. Obrigada moça!

Ela me deu um forte abraço e foi embora. Um abraço... Ela era a segunda pessoa que eu lembrava de ter me abraçado. Crianças demonstravam carinho tão facilmente, eram tão puras. Ela não me viu como inimiga, muito pelo contrário, ela nem fazia ideia de quem eu era. Será que um dia eu já fui inocente desse jeito? Eu gostaria de me lembrar da minha infância, da minha família... Na minha ficha dizia que eu era filha única e que meus pais haviam morrido, eu queria poder lembrar deles. Disseram que perda de memória era o efeito colateral do experimento...

Há 3 anos atrás foi infundido em meu corpo o magitec. Eu era uma simples militar que aceitou ser voluntária para participar da infusão em humanos, pelo menos foi o que me disseram, porque eu não lembrava de nada em relação ao meu passado. Que tipo de pessoa será que eu era? Será que iria recuperar a memória um dia? Eles disseram não saber, já que eu e os outros três éramos os primeiros a passar por esse tipo de experiência.

Resolvi fazer uma última parada. Eu andei bastante até chegar às margens de um rio. No lado esquerdo, suas ondas tranquilas eram rebatidas pelo seu canal. No lado direito, os coloridos grafites do muro de sustentação do canal rebatiam o sol da tarde. Eu resolvi me sentar em um dos bancos para poder ficar olhando as ondas. Eu estava tão em paz ali que nem vi o tempo passar, até que uma senhora de idade se aproximou de onde eu estava sentada.

 - Bom dia, posso me sentar ao seu lado? Eu gosto de alimentar os pombos.

 - Sim, claro. Mas você não se importa? Não sabe quem eu sou?

 - Minha querida, eu tenho mal de Alzheimer, mesmo se eu quisesse não iria saber quem você é. Pela roupa parece que é do exército ou algo assim.

 - Sinto muito pela sua doença...

 - Você parece encucada com alguma coisa. Quer conversar?

 - Eu estou bem, não é nada.

 - Não é o que seu olhar diz. Você está com um olhar de uma pessoa aflita. Talvez contar para alguém faça você se sentir melhor.

 - Eu não...

 - Anda, desabafar é um ótimo remédio para um coração aflito.

 - O que você faria se estivesse vivendo uma vida que você não quer viver, fazendo coisas que não quer fazer?

Não era meu plano inicial falar da minha vida para uma estranha, mas pelo que parecia, ela iria insistir até que eu fizesse isso. Além do mais, o fato dela nem ao menos saber quem eu era e que provavelmente não nos veríamos de novo, de alguma maneira me deixou um pouco mais confortável.

 - Bom, eu mudaria, porque com certeza alguma coisa está errada. Não faz sentido viver se você não está satisfeita com a maneira que vive.

 - Gostaria que fosse tão simples...

 - Mas é, vocês jovens que gostam de complicar tudo. Olha, eu levantei da minha cama, para vir aqui por eu quis. Mesmo com com minha limitação eu não vou deixar de fazer o que eu quero fazer. E você? Jovem e forte, você pode fazer qualquer coisa. Senão você vai olhar para o passado e ter um monte de arrependimentos, eu tive sorte pois consigo olhar feliz para o meu passado, pelo menos enquanto ainda consigo lembrar dele. Desculpe se eu falei demais, deve ser chato ouvir alguém falar tanto assim.

 - Não, tudo bem. Eu agradeço pelos seus conselhos. A propósito, meu nome é Ophelia.

 - Certo... mas por que está me falando seu nome? Quer conversar ou algo assim?

 - Mas nós já... Não, sinto muito.

Resolvi deixá-la sozinha. Já era o suficiente de passeio por hoje.

Mesmo sendo apenas uma velha senhora, o que ela disse fazia sentido pra mim, não podia continuar vivendo assim. Eu não sabia como eu era antes do experimento, mas meu eu de agora não tinha nenhuma vontade de lutar. Eu pensava constantemente em fugir, ir pra um lugar isolado onde não precisaria viver como não desejava, mas aí eu iria ignorar a guerra que estava no horizonte.

Eu voltei para o palácio com uma grande dúvida e apenas algumas horas para decidir: O que deveria fazer para impedir Heutz?

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