Capítulo I: Amado seio

O mundo era uma cordilheira branca sob seus pés. O céu parecida uma valiosa cúpula azul tão bela quanto intocável, tão distante quanto podia ser próxima. Margot não pôde evitar o sentimento de se sentir invencível. Seus ossos eram inquebráveis, eram as rochas e contrafortes que sustentavam a montanha. Seus músculos, resistentes, feitos das cordas que a auxiliaram em sua escalada. Seu sangue, incessante, era a água que seguia o fluxo do degelo até encontrar as terras de primavera a mais de sete quilômetros abaixo.

Suas mãos e seus pés doíam como se pretendessem se partir, o frio angustiante impedia seu cansaço de se manifestar como deveria, seu pulmão quase ganhava um edema. Isso tudo parecia pouco, muitas das dificuldades eram irrelevantes agora, pois ela alcançara o topo da montanha mais alta conhecida. Isso fazia bem para sua mente, pois não pensara em desistir por um segundo durante todo o percurso.

Sua mente podia ser sua maior aliada ou sua principal falha. Ela controlava tudo que Margot entendia ser e tudo que acreditava ser capaz.

Não importava as temperaturas, não houve tempestades ou nevascas que a parassem. Os corpos que encontrara daqueles que perderam a vida no mesmo caminho não a empurraram de volta com mãos cadavéricas e bafos encobertos de medo frio e mortal. A insônia que adquirira, hipotermia que quase despertara, a fome sentida, solidão superada. Nada a assustou mais que a palavra "inacabar". Todavia, não houve pressa para ir até o fim.

Manteve sempre seu coração calmo, longe de sustos e ansiedades, pois tinha medo de não conseguir controlar o ritmo dos batimentos e se deixar levar por desagradáveis decisões. É preciso calma quando você se sente o único alvo da voraz natureza. É preciso respeitar a montanha, pois é o domínio dela que está sendo invadido. Sobretudo, é preciso conhecer os próprios limites ou isso significará sua morte. Margot soube seguir cada uma das suas necessidades, embora reconhecesse que tenha forçado seus limites.

Ainda assim, nada mais tinha muita relevância no cume daquele gigante, acima de reis e imperadores. Guerreiros e soldados. Ela estava maior do que todos, ninguém veria, mas ela saberia que um dia foi maior que todos os castelos.

Soltou sua mochila de quase trinta quilos das costas e começou a procurar algo. O vento sussurrava alto, não gostava de partilhar sua posição suprema nas altitudes.

Engraçado, mas agora que estava ali, não parava de pensar em estar em outro lugar. Concluiu que era assim que qualquer um se sentiria após o êxtase do êxito. Com o frio furtando seu calor lentamente, ela gostaria de estar na casa da avó, tomar seu familiar café amargo e quente. Provar dos seus deliciosos pãezinhos feitos na hora. Pensava no carinho que a mulher sempre a tratou, apesar de Margot ser sempre a criatura mais levada da cidade de Quinärte.

De repente, ela se viu lá, estava correndo pelas ruas durante sua adolescência, impedindo de uma forma tão indiferente a rotina de trabalho das outras pessoas. Correndo para se divertir e comer maçãs, dentre outras coisas, sem pagar. Rindo com seus amigos como se nada a parasse. Nada a parava. Exceto talvez as mãos do senhor Chans, o açougueiro, que sob um aperto firme a levavam até sua avó, Dainilian.

A mulher costurava enquanto o brutamontes entrava gritando, dizendo que Margot roubava suas linguiças para dar aos cachorros moribundos das ruas.

— É verdade, filha?— A avó a olhava com olhos de obsidiana, densos, atraíam qualquer verdade para aquele horizonte de eventos sem retorno.

Margot abaixava a cabeça e o interesse por seus dedinhos de fora dos seus calçados de repente aflorava.

— Pode ir, Chans— ordenava a avó logo em seguida.— Depois pago o prejuízo, aquelas linguiças nem servem para as pessoas mesmo.

— Mas...

— Vá logo, homem.

Chans saía irritado, mas calado, meneando a cabeça pequena e redonda sobre seus ombros largos. Dainilian chamava a neta e tomava suas mãos, beijava-lhe a testa e cantava:

Menina levada,

O que faz ocupada

Correndo pela manhã?

Tem riso estridente,

Está sempre contente

E comendo maçã.

Por que corre com pressa

E, sem hora, se avexa

Correndo pela manhã?

Menina se acalma,

Contenha sua alma,

Respeite a sua anciã.

Margot sempre terminava sorrindo e a avó sempre cutucava suas bochechas quando as covinhas se mostravam.

— Já contei que inventei essa cantiguinha para sua mãe?— Perguntou aquele dia. Quando Margot negou, ela continuou:— Mas foi sim, foi isso mesmo. Ah, Christine... minha menina levada. Sua mãe era assim como você na mesma idade, filha. Sabe, depois ela cresceu tanto e ficou mais séria. A fase das confusões terminaram, pelo menos as que eu podia resolver. Sua mente ficou distante do lar. Acho que ela esqueceu que foi minha garota quando virou adulta.

A neta apertou as mãos da avó e olhou fundo naqueles olhos belos.

— Eu não farei isso, abá— garantiu.— Nunca vou esquecer de você. É uma bobagem pensar nisso.

— Eu sei, filha. Eu sei.

— Prometo sempre arrumar confusões para a senhora resolver.

Dainilian riu e a abraçou. O frio se tornou mais ameno no alto da montanha após essa lembrança surgir do seu mais íntimo passado. Pensar nessas coisas sempre a deixavam muito emotiva, quase impossível esconder. Margot aprendera a não revelar muito dos seus sentimentos, não porque gostasse (se é que há como gostar disso), mas porque ela conheceu as pessoas de verdade.

Crescer tirava cores da vida que mais apreciava, adicionava tons pobres e soberbos. Escuros e vazios. Desnecessários à primeira vista, importantes, contudo, quanto mais se observava. Margot perdera tantas cores e recebera ainda mais tons que se as pessoas fossem arco-íris, ela seria um dos mais sombrios. Virar adulta a tornou, de forma inevitável, fria.

Entretanto, Dainilian possuía um abraço macio como a neve, porém com o calor que aquecia seu espírito e fazia seus passos sempre voltarem para casa. Mais uma vez, ela se viu andando pela trilha de lajotas que atravessava o pequeno jardim para ir visitar a avó.

O cheiro das flores se apagavam e perdiam a importância, pois a avó assava seus pãezinhos dourados e acebolados. Margot de imediato era levada a se sentar à mesa e esperar para que eles ficassem prontos. O tempo passava correndo, Dainilian sempre tinha assuntos a comentar. Aparentava escutar qualquer sussurro da cidade, a idade elevada não afetava sua audição ao que tudo indicava.

Tratava a neta como sua garotinha de sempre, não importava sua maioridade ter chegado, a amava de forma incondicional tão naturalmente quanto sabia a hora exata de tirar os pãezinhos do forno.

— Como está indo com Viggo, filha?- Perguntou ela, após servir a ambas, o cheiro do café sem açúcar a bailar com o aroma de cebolas assadas entre elas, adorável mistura matinal.- Acha que consegue?

— É difícil, abá— respondeu Margot, dedilhando a boca da sua xícara após fazer uma careta disfarçada ao prová-la.— Eu não sei, ele está apenas me treinando, mas eu não gosto de que esperem que eu seja como ela.

— Como a sua mãe, você quer dizer. E eu digo que você pode ser melhor.

— Posso ser melhor? Esperar me equiparar já me assusta, então isso...

Com dificuldade, Dainilian se inclinou sobre a mesa para tomar suas mãos.

— Pode apostar que você consegue, filha— a voz frágil denotava tanta força que Margot quase acreditou, porém retorquiu:

— De que adianta ser grande e jogar as peças mais importantes para alcançar uma pequena paz se não vai mais voltar para casa?

— Sacrificar-se requer mais coragem do que possamos imaginar— a outra sussurrou com seus olhos vermelhos, Margot soube que os dela também deveriam estar, como um reflexo da dor, uma perda.— Não sabemos se Christine está morta ou perdida, porém o que ela fez foi grandioso. Ela possibilitou um futuro para quem mais amava. E não foi para uma velha corcunda com o pé na cova.

— Abá— Margot franziu as sobrancelhas em reprovação.— Ela fez isso por todo seu povo. A senhora faz parte do povo dela, logo, ela fez para a senhora também.

— Eu sei, sei, sim. Nunca saí daqui, sabe, nunca viajei ou fui pra longe, agora que vejo isso...— ela balançou a cabeça tal qual uma pessoa que enxerga oportunidades perdidas.— Se houvesse alguém que eu confiasse pra me levar para longe desse lugar, seria você.

— Eu a levaria aos lugares mais absurdos— Margot sorriu e abraçou sua avó. Umedeceu o vestido dela com uma lágrima quente que correu rápida demais para conter.

Enquanto mexia em sua mochila, uma lágrima como aquela se formou. No começo morna, mas congelou na metade do percurso da sua face. Ela arrancou a gota cristalina do seu rosto e a observou, arremessando-a logo em seguida.

Outras pessoas chegariam onde ela estava, pisariam na sua lágrima congelada em um nascer de dia muito distante e nunca saberiam que uma pessoa chorou naquele ambiente inóspito não por ele ser assustador, mas porque a sua avó era a melhor avó do mundo. Mais alta do que qualquer castelo ou montanha sem precisar escalar lugar algum.

Depois daquele dia, a saúde de Dainilian passou a piorar de forma gradativa. Margot não conseguira ficar longe ao saber das notícias e retornou para casa. Auxiliou sua avó em tudo que era preciso, cuidou dela como fora cuidada desde sempre.

— Você não precisa estar comigo, filha. Precisa seguir seus sonhos.

— Meu sonho é ver a senhora bem— a neta franzia a testa para evidenciar toda sua preocupação.

— Mas Viggo...

— Não se preocupa, eu não preciso dele para nada. Ensinar-me a lutar não concede a ele minha obediência ou a obrigação de me tornar soldado ou o que seja.

Dainilian deu palmadinhas na mão de Margot e sorriu de forma fraca, essa passara a ser a forma de concordar enquanto a mulher não concordava de fato, mas podia aceitar o que era dito apenas para não forçar a respiração.

— Estou velha, filha. É natural que eu esteja indo enquanto você tem tanto a viver.

Sem resposta, Margot suspirou. Não sabia se estava preparada para o mundo sem a mulher que mais amou. Menos preparada ainda estava quando a situação de Dainilian piorou de forma considerável. Febre e devaneios se tornaram constantes, a tosse seca vinha acompanhada de sangue. A respiração se tornava ainda mais preocupante. Não importava o que fizesse, a ajuda que fosse dada, a hora estava vindo em dias de sofrimento e agonia.

Era o que chamavam de Doença da Raposa Branca, enfermidade que se aproveitava da velhice para crescer e se espalhar.

A manhã mais serena sucedeu a noite mais preocupante. Dainilian estava melhor, sem tosses ou febre. Ela estava bem e conseguia sorrir. No entanto, Margot teve de sair para comprar batatas e cenouras para o ensopado. Quando retornou, sua avó gritava. As compras se derramaram pelo chão quando a neta correu e escancarou a porta do quarto.

— Filha— disse a avó assim que a viu, controlando sua respiração ofegante—, eu tive apenas um pesadelo.

— Não há o que temer agora que está acordada— Margot aproximou-se com seus batimentos acelerados, sentando-se próxima a cabeceira da cama para afagar os cabelos brancos da avó.— Estou aqui, olhe e veja que os sonhos se desfazem ao simples abrir dos olhos.

— Eu sei, filha— ela tossiu, seus olhos negros meio esbranquiçados, sem a mesma força de outrora, fitaram-na com medo.— Mas em meus sonhos você estava perdida, Christine. Não retornou para mim quando os ataques cessaram... Você decidiu nunca mais ser a minha garotinha.

— Abá...

— Você está aqui, não é? Esteja aqui, peço que não seja mais uma imagem criada dos meus sonhos, pois para sempre os odiarei. Jamais ei de pregar os olhos novamente, então por favor seja você de verdade.

Vendo o implorar nos olhos da anciã, Margot fez o que seu coração julgou certo.

— Sou eu, amá— tocou o rosto quente da avó e sentiu suas lágrimas sobre a pele macia, maculada pelas manchas da longa vida que tivera.— Christine, herdeira do seu nome. Voltei para casa.

A tristeza no semblante de Dainilian se dissipou como uma névoa na estrada.

— Fico... fico feliz.

Ela começou a cantar com sua voz frágil e entrecortada por tosses uma canção que Margot já escutara poucas vezes quando mais nova. A medida que lembrava a letra, fazia coro a sua avó.

Há tantas lindas flores,

Tantas cores mais,

O que o cheiro traz

São lembranças, amores.

Vento que vem do norte,

Embaraça o cabelo, forte.

Faça, aperte firme o laço.

Mais forte, dê-me seu abraço,

Pois de saudades vivi.

A manhã é logo, então vou ir.

Juntar-me a quem amei,

Vê-los de novo, eu sei.

Em terras que já plantei,

Onde eu tive um amado seio.

Sementes que já molhei,

Eu vou e com minhas mãos... semeio.

— Christine...

— Sim, amá?

— Sinto que ela ainda está viva, vá encontrá-la. Vá, Margot.— disse Dainilian em um último gesto de lucidez, antes de morrer com seus olhos observando a neta. Margot chorou por horas antes de saber o que fazer. Quando aceitou a dura verdade mórbida, decidiu que não enterraria a avó em um lugar no qual ela sempre teve medo de passar toda sua vida, e mesmo assim passou.

Um ar gélido penetrou de alguma forma as várias camadas de pele que vestia, despertando calafrios intensos. Da mochila, Margot retirou o baú. Fez uma oração pelas almas da avó. Destrancou o objeto e deixou que os ventos começassem a levar de imediato o conteúdo, as cinzas de alguém livre. Alguém no topo do mundo.

Palavras vieram à mente, podia ouvir o timbre de Dainilian com perfeição:

— Se houver coragem, faça dela sua armadura. Mas quando ela fraquejar, faça do medo sua espada.

— Carregarei cada boa lembrança comigo, abá— disse, observando as cinzas partindo para longe.— Voe no rio dos ares, navegue como as constelações navegam pelo céu, pois sempre será minha estrela.

Margot abraçou-se mais forte, o frio castigava com maior rancor. Ela olhou o mundo lá embaixo. Era hora de iniciar a jornada de volta.

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