— As luzes da noite são sempre mais belas no norte— disse o imperador.— São como rios que correm acima das montanhas, colorindo um mundo de escuridão e frio, criaturas das mais vis se escondem. Abre-se passagem para o ardor do meu peito, pois posso encontrar meus filhos. Queima minha solidão, sangra o meu coração. Derrama-se o amor, do jeito que um rio possa encontrar o outro. Ó, amados filhos, estou indo alimentá-los da minha própria boca.
O imperador ajustou-se no seu trono de madeira velha e corroída por cupins, fazendo estalos soarem. Com o barulho, ele aproveitou para soltar um pum com o falho intuito de sair disfarçado. Alguns risos seguiram o ato solene.
— Ó, marido— sua esposa veio e pegou suas mãos amarelas, os dedos repletos de anéis de brilhantes falsos.— A guerra só piora. Temos que comer minhocas para não morrer de fome, agora elas devem estar comendo seus miolos!
A brisa leve movia de forma lenta os seus cachos, mãos invisíveis a acariciá-los. Olhando o reflexo na água, via dois sóis; aquele que nascia todas as manhãs e seus cabelos, loiros como se banhados ao mais puro ouro. Círculos concêntricos nasciam de onde as folhas dos salgueiros caíam, logo apagados pelas ondas criadas pelo avançar do barco.Apoiada na amurada, Margot já podia sentir o odor de esgoto e fumaça de Quinärte, detritos apodrecidos atirados ao rio Bórni. Peixes mortos boiavam próximos às margens, espuma de sujeira os envolvia, branca tal como a neve que se cansara de ver na montanha.Suspirou ao pensar em chegar em casa e notar que os cheiros que mais amava não estariam mais presentes. Nunca mais estariam. Afastou os pensamentos ao desviar o olhar do rio, tinha que superar seu luto. Nada mais a prendia em lugar algum e essa podia ser uma boa perspectiva para ser capaz de seguir em frente, ir onde sempre desejara.Dainilia
As janelas tremulavam, o fogo da lareira era refletido de forma tênue no vidro que não experimentava o seu calor, apenas a gélida madrugada do lado de fora, onde o vento era soprado por inalcançáveis lábios frios. O crepitar da madeira respeitava o ritmo regido pelo vidro, um dueto de gelo e fogo ignorado por ouvidos humanos. Sandir Viella estava impaciente na sua cadeira, seu estômago revirava-se incomodado desde o jantar, a escrivaninha quase vazia recebia um tamborilar nervoso de dedos. Os golpes cadenciados pelo seu nervosismo foram interrompidos quando o tão aguardado bater na porta soou, sobressaltando-o. Ergueu-se e girou a maçaneta de prata para receber o seu convidado.— Por favor, entre— apertaram as mãos.— Vamos, sente-se aqui, detetive.— Não será necessário— respondeu de forma lacônica, dobrando as abas de um chapéu nas mãos calçadas de luvas de couro.— Desculpe a demora por tão curta pa
Ela escutava os passos e fingia dormir no catre duro de metal, o colchão de palhas pinicando, lembrando gotas de chuva fria de uma liberdade que não mais tinha: sua infância. Eleanor entrara para o circo aos seis anos, fora abandonada pelos pais e deixada à própria sorte como várias outras crianças. Porém o fato da sua situação ser comum não significa que era menos triste. Cerehrin a adotou, um colo inesperado, bondoso, um lugar quente para sua esperança. Ela era uma acrobata, ensinou o que Eleanor precisava para viver entre eles, O Circo Farlic Azul.— Responda— pediu a mulher uma manhã, após acordá-la antes do primeiro cantar dos pássaros.— De quem é o seu corpo?— O quê?— Questionou de volta, pois se distraíra observando as duas cortinas azuis presas em um suporte no alto, tão grandes que quase alcançavam o chão.— Fiz uma pergunta, perguntas não se respondem com outras, considere essa a primeira lição. Repetirei e você responder
Margot desceu do cavalo e abraçou a garotinha, os cabelos negros e lisos macios ao toque. O cheiro de óleos era maravilhoso, espalhava-se pelo vento enquanto ela se movia.— Você se foi sem se despedir— cobrou ela.— Perdoe-me, Suzana— Margot ajoelhou-se.— Talvez isso compense um pouco a minha falta de delicadeza.Estendeu o punho fechado e pôs um monte de doces nas mãos da garota, que mal pôde segurar entre os dedos, seu sorriso encantava na tarde que crescia.— Você sabe negociar— a garota piscou e riu.— Um pouco de doce e ela se esquece que não vê o pai há dias— lançou Viggo e pegou-a no colo.— Incrível. Por que você não me dá esse de caramelo?— Não tem nenhum de caramelo.— Estava falando do seu beijo.— Ah!— Suzana inclinou-se de forma desajeitada e beijou-lhe o rosto.— Não espere essa mesma recepção da minha parte— a esposa de Viggo apareceu à porta, encarando-o.— Você disse três dias no máxim
Agnes despertou envolta em cobertores de seda, sobre travesseiros macios de penas de ganso e um colchão tão fofo que era como se o maior algodão do mundo tivesse brotado sob ela. Tamanho conforto destoava com o que sentia por dentro, se um dia um castelo ruísse e despencasse a sua frente, a mulher saberia que a devastação de mais cem como aqueles não se compararia às rachaduras que se abriam em seu peito. Tateou com a mão e não sentiu o pelo macio de Acerbel, o seu gato de estimação, muitas vezes a única criatura que parecia gostar da sua companhia.Chamou por ele cinco vezes antes de se levantar e procurá-lo pelo quarto. Olhou no seu banheiro, na varanda, no compartimento de roupas e não viu uma sombra do felino.Deixou o quarto com suas roupas de dormir e decidiu procurá-lo pelos outros cômodos. Passou pelo escritório de Sandir e encontrou o lugar inalterado, era onde sempre podia encontrar o marido lendo livros ou escrevendo cartas para suas amantes. Ela sabia dos cas
A água borbulhava e tomava uma coloração alaranjada, o aroma do chá era delicioso, subia e amortecida seu rosto cansado com o calor. Retirou a chaleira do fogo e serviu-se da infusão em uma xícara de porcelana trincada na borda, sua companheira mais antiga, inquebrável de uma forma que ele também queria ser. Aron voltou-se para sentar na sua poltrona e teve uma esperada surpresa.— Não vai me oferecer um pouco?— Perguntou Eleanor.— Se tiver chocolate quente, ficaria mais satisfeita.— Satisfação não é o mesmo que necessidade. A noite está fria, mas não o bastante.— Então que beba sozinho— ela indicou a cadeira à frente.— Sente-se. Você sabe que precisamos conversar, e essa conversa pode ser longa.Aron não se recusou nem rebateu, obedeceu com passos lentos, ainda parecia bastante machucado.— Ouvi os rumores pela cidade— disse ele.— Sua fuga solitária e silenciosa está na boca de todos. A Lábios Es
— Então você é a que chamam de Lábios Escarlate?— Perguntou, observando a mulher que apontava a espada com mãos trêmulas em sua direção, encarando-a como uma inimiga.— Estou impressionada. Não esperava que mexesse com magia. Foi assim que conseguiu escapar do Subsolo?A expressão dela disse tudo.— Acho que entendi, está descobrindo esse dom agora.— Não é um dom.— Se considera ou não, o fato é que agora ganhará uma cela em um nível mais profundo.— O que significa?— Parecia ter dificuldade em continuar segurando a arma.— Você verá— Margot apontou para o corpo de Héder.— Esse daí não era o mais querido por todos, então talvez ninguém a assassine, mas longos anos a esperam. Quer se render normal ou lutando? Caso p
Sandir estava no seu salão secreto de armas. O mesmo em que três pares de asas, suas maiores relíquias, foram levadas. O mesmo em que encontrara o corpo de Eudora mutilado. A marca do seu sangue ainda maculava o piso de lajotas de pedras. Ele formou um círculo com mais de cem velas e ficou no centro, recebendo a iluminação bruxuleante de cada uma delas. As únicas sombras que o circulavam, mesmo que quase inexistentes, eram as dele mesmo. Colocou armas no espaço que o distanciava das velas, um arsenal pronto para quando o demônio viesse, ele viria. Sabia que estava certo.— Matarei o desgraçado— dizia enquanto segurava uma besta, aquela que estava ao lado da sua filha quando a encontrou.— Será com a mesma flecha que não conseguiu disparar. Eu o...Libertou um grito de dor, lágrimas escorriam do seu rosto, mas a sua mente trazia de volta a lembrança do sangue