Capítulo 2

A grosseria de seu pai não tinha limite quanto tratava-se dela e para evitar mais aborrecimentos, ela engoliu sua indignação entre uma taça de vinho e outra.

Ainda revoltada com o modo resoluto que ele a interpelou, ela o observou discretamente. Konstantinos era um homem atraente, apesar de seus sessenta anos. De cabelos grisalhos e olhos escuros, ele emanava uma vitalidade surpreendente e nem mesmo o acidente que sofrera anos atrás tirou-lhe o vigor: pai, avó e marido dedicado, somavam as características que distinguiam-no de tantos outros. Ele era o tipo de pai que fazia de tudo pelo bom nome da família. 

Mesmo diante de tanto vigor, uma parte dele fora perdida no dia do acidente, e ele passou de um homem alegre e amável para um senhor mal-humorado e ranzinza.  

Lembra-se daquele acidente acionava memórias dolorosas de um dia de horror, onde ambos, quase perderam a vida. Nostálgica, ela decidiu afogar as lembranças assombrosas no vinho tinto que bebericava.

Para Íris aquele jantar pareceu ser o mais longo de toda sua vida e, quando finalmente ele terminou, ela quase pulou de alegria na mesa. Após a refeição, todos se dirigiram silenciosamente para o escritório de Konstantinos e o aguardaram: uns apreensivos, outros curiosos. Já ela era uma mistura dos dois, assim como o olhar aflito de sua irmã gêmea. 

A sala que estavam era imensa e confortável. Estofados de couro, pilares gregos e objetos de artes davam ao ambiente um ar requintado. Uma grande porta de correr envidraçada dava diretamente para os jardins da mansão: era naquele ambiente moderno e aconchegante que Konstantinos se refugiava quando queria ficar só.        

O carpete branco felpudo nunca lhe parecera tão convidativo quanto naquela hora, e Íris ficou tentada a tirar os sapatos e ficar descalça, porém desistiu; seu pai provavelmente não aprovaria tal atitude.

Ignorando a tentação de jogar a sandália de salto para o ar, ela se conformou com a maciez do estofado e relaxou um pouco, tentando dissipar a tensão que a rodeava. 

Assim como ela; todos estavam confortavelmente acomodados, exceto Leandro, que permanecia em pé ao lado da janela, aguardando a entrada de Konstantinos.       

Aparentemente não era apenas Íris que estava tensa, e ela pode perceber isso quando Nikos quebrou o silêncio da sala e comunicou a ela.          

— Ouve uma pequena mudança em seu plantão. Decidi mantê-la...

Antes que seu irmão tivesse a chance de concluir seu diálogo, Catarina bradou de supetão, não gostando nem um pouco do rumo que a conversa estava tomando.                                                                                                                                                               

— Oh, por favor! Não me venham falar em hospital agora!

Mesmo o clima não sendo propício a diversão, todos riram da reação dela: uma coisa era certa, Catarina tinha verdadeiro pavor de hospitais e todas às vezes que o assunto era voltado para a profissão dos irmãos ou do marido dela, ela dava um jeito de interromper a conversa. Assim como Íris e Nikos; o esposo de Catarina — Dário — também era médico.       

Após a intromissão de sua irmã, o silêncio voltou a reinar no escritório. Não passaram-se nem alguns segundos, para Konstantinos entrar acompanhado de sua amada esposa — Dominique Varvakis. 

Vislumbrando o rosto tenso dos filhos, disse. 

      

— Que bom que todos já estão aqui — dirigindo-se a Leandro, pediu. — Sente-se, a conversa será longa.

       

No primeiro momento Leandro relutou em sentar-se, contudo seria loucura tentar fugir daquela conversa. Seu pai já estava a par de tudo, então não fazia nenhum sentido se esconder do inevitável. Mesmo irresoluto, ele buscou seu assento na poltrona ao lado de sua mãe. 

        

Depois que Leandro sentou-se, Konstantinos fez uma revelação surpreendente que deixou todos boquiaberto. 

— O desajuizado de seu irmão Leandro desvirtuou uma das moças da cidade.  

Descobrir que Leandro seduziu e desonrou uma jovem aldeã causou um reboliço muito grande em Íris e chocada ela exclamou.

       

— O quê?!

Diante do olhar de espanto de seus filhos, Konstantinos então relatou que Leandro conhecera a moça há quase nove anos, em um dos torneios estudantis da Grécia. Lá, começaram a namorar as escondidas e o relacionamento foi tomando outras proporções, até que o inevitável aconteceu: ela engravidou e ele a abandonou a própria sorte.

        

A revolta nos olhos de Íris era visível e ela encarou o irmão com uma expressão de incredulidade no rosto. Ainda sob o efeito do choque, ela perguntou austera ao irmão. 

         

— Em nenhum momento pensou em assumi-la?

    

Olhando-a diretamente nos olhos, ele respondeu com cinismo.

      

— É claro que não! Eu tinha apenas dezenove anos: mulher e filhos não estavam em meus planos. 

         

Ouvi-lo dizer aquilo de forma tão leviana formou um nó em sua garganta. Ela amava muito seu querido irmão, mas no momento o único sentimento que nutria por ele era desprezo.

Ela o olhou frustrada, e para sua decepção não viu arrependimento nos olhos dele. Furiosa, acusou-o.

      

— Você a usou e a abandonou grávida! Você é uma vergonha para nossa família.

       

Frente à explosão de Íris; Leandro fuzilou-a com os olhos, e eles se encararam por alguns segundos, medindo forças. Ela sabia que Leandro era irresponsável, porém esse lado da personalidade dele lhe era totalmente desconhecida. Estava sendo um choque e tanto para seus pais assumirem que seu amado filho não passava de um conquistador barato, mal caráter e inconsequente.

       

— Até quando pretendia nos manter na ignorância? — Konstantinos perguntou contrariado com a omissão do filho. 

      

Diante do silêncio de Leandro, Konstantinos insistiu áspero.

     

— Por que você nos omitiu essa história? Dê-me uma explicação!

        

Abalado com o olhar de reprovação do pai, ele perguntou constrangido.

      

— Como soube dessa história?

      

— Apenas responda! — Foi a resposta rude de seu pai.

      

Como não podia mais esconder o óbvio, ele disse desgostoso. 

— Quando soube da gravidez da Ágata fiquei desesperado e pensei em contar-lhe... Mas, como falei antes, casamento e filhos não estavam em meu rol de prioridades e conhecendo os princípios morais da família, deduzi que seria obrigado a reparar o erro.

      

— O que aconteceu com a moça e as crianças? — Íris perguntou preocupada.

             

— Quando os pais dela descobriram a gravidez passaram a pressioná-la. Temendo ser banida da família, ela inventou que tinha sido atacada por um desconhecido, quando voltava da casa de uma amiga. Os pais de Ágata acreditaram na versão dela, pois ela tornou-se uma garota agressiva e arredia; passava a maior parte do tempo trancada no quarto, chorando e eles associaram a mudança repentina no comportamento dela à violência sofrida.

                                                                                       

Um pesado silêncio caiu sobre o escritório após a confissão de Leandro. Íris sabia o quanto era difícil para um pai aceitar a gravidez de uma filha antes do casamento, geralmente quando isso acontecia as moças eram expulsas de casa ou obrigadas a abortar. Como médica, muitos desses casos enfileiravam o banco de espera do hospital e muitas jovens, se quer tinham a oportunidade de decidir sobre o próprio destino.  

         

— Continue Leandro. — Konstantinos ordenou impaciente.

     

— Ela casou-se com um estrangeiro e ele assumiu as crianças: parece-me que ele viu na gravidez dela a oportunidade perfeita de permanecer legalmente no país. 

— Você tem contato com as crianças? — Íris perguntou curiosa.         

— Não! Claro que não! — Ele respondeu com indiferença. — Eu os encontrei por um acaso na praça: eles estavam com a mãe. Quando ela me viu a cor fugiu-lhe do rosto. Bastou uma olhada nas crianças para constatar que tratava-se de meus filhos. São crianças encantadoras; gêmeos com você e Cassandra. — Falou com certo orgulho. — Me propus ajudá-los no que fosse preciso, mas Ágata foi muito fria comigo: disse-me que era tarde demais para eu bancar o pai arrependido. Falou-me que as crianças estavam muito bem, que o pai delas era maravilhoso e que elas não precisavam de mim.         

Leandro levantou-se muito abalado. Após segundos de hesitação, murmurou melancólico:        

— Ágata faleceu a dez meses atrás, ao dar à luz. Depois disso, nunca mais tive notícias dos meus filhos. 

Um pesado silêncio recaiu sobre todos. Os rostos cabisbaixos na sala não ousaram dizer uma palavra. Seus irmãos, assim como ela, estavam atordoados com a notícia. Íris, porém, foi a que mais sentiu-se abalada. Por alguma razão, até então inexplicável, ela sentiu que aquela pungente revelação de alguma forma iria afetá-la profundamente.          

Ao término da reunião, Íris foi a primeira a se retirar do escritório. Ela não trocou novas afrontas com o irmão ou brigou com ele, não havia mais necessidade de punição: Leandro autopuniu-se quando rejeitou a beleza de ser pai, de construir uma família, de vê seus filhos crescerem e ter alguém para chamar de lar... 

Repleta de pensamentos, ela entrou em seu quarto, apagou a luz do abajur e acomodou-se o melhor que pode na cama. Aquela noite prometia ser longa e a cabeça dela estava para estourar.

Foi com tristeza, que Íris viu no semblante de sua mãe uma sombra de decepção. Durante a reunião, sua querida mãe manteve-se no mais absoluto silêncio: não ousou defendê-lo nem tão pouco acusá-lo. Permaneceu passiva diante da situação.

Ao contrário dela, Íris mostrou toda sua indignação, principalmente depois de saber que além de desonrar a moça ele ainda foi relapso em relação aos filhos. Era insuportável imaginar que o mesmo Leandro, que sempre fora seu herói e protetor na infância, agora vestia-se de desprezo e asco. Um homem que abandona mulher e filhos não pode ser considerado um homem.

Seu coração se apertou em tristeza. Pensar naquelas crianças órfãos, tirou-lhes o sono e quando ela, por fim, conseguiu dormir, teve um sono agitado.   

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