Sílvio passou o dedo grosso e calejado pelo rosto, limpando as lágrimas que insistiam em cair. Ele continuou folheando o caderno. As páginas seguintes estavam todas em branco. Por mais que insistisse, não havia mais nada escrito.Por que ela parou de escrever? Seria porque não queria que ele lesse depois que ela morresse? Ou será que foi porque ele a machucou tanto, a ponto de deixá-la completamente sem forças, incapaz até de registrar seus últimos dias? Fazia sentido. Ela tinha se curvado, engolido o próprio orgulho, tudo por causa da família Baptista. E no fim, os pais dela morreram mesmo assim. Como ela teria ânimo para continuar escrevendo? E mesmo que tivesse continuado, talvez fosse apenas para amaldiçoá-lo, desejando que ele morresse.Mas Sílvio não se conformava. Ela foi embora tão de repente, sem deixar uma única palavra para ele. Ele não acreditava que o caderno estivesse vazio. Continuava folheando, desesperado. O caderno era barato, de qualidade ruim, e ele, na pressa, acab
Dois dias depois. Era o funeral de Lúcia. Foi realizado de forma grandiosa. Pode-se dizer que foi algo sem precedentes. A decoração do local, as cores das flores, a foto do retrato póstumo — tudo era no tom de rosa, a cor favorita de Lúcia em vida. Um fluxo constante de pessoas vinha prestar suas condolências.A maioria delas estava ali por consideração a Sílvio. Poucos tinham algum vínculo real com Lúcia. Mas, ao verem que o cabelo de Sílvio havia ficado totalmente branco de uma hora para outra, todos ficaram boquiabertos. Pensaram consigo mesmos sobre o que seria capaz de provocar tamanha transformação. "Quanta devoção", murmuravam baixinho. "Somente um amor tão profundo, tão intenso, poderia fazer isso com um homem."Os convidados se aproximavam da foto de Lúcia, colocavam flores e, ao sair, balançavam a cabeça enquanto suspiravam:— É uma pena… Um casal tão apaixonado, agora separado pela morte.Quando Basílio chegou, carregava nos braços um buquê de margaridas. Ele avistou Sílvio
— Não foi nada. — Respondeu Sílvio, com o rosto tão pálido que parecia feito de cera.Arthur, com a voz carregada de pesar, disse:— A Sra. Lúcia sempre foi muito gentil comigo. Uma mulher bondosa, que não merecia esse destino tão cruel. Vim aqui especialmente para prestar minha última homenagem. Espero que ela, lá no céu, encontre a verdadeira paz, longe de toda dor e sofrimento.O olhar de Sílvio foi suficiente para fazer Arthur entender. Ele colocou as flores em frente ao retrato de Lúcia e, com um gesto solene, curvou-se profundamente:— Sra. Lúcia, descanse em paz. Nós vamos cuidar do Sr. Sílvio por você.— Lúcia… minha Lúcia…De repente, um grito angustiado ecoou pela capela.Sílvio, Leopoldo e Arthur se viraram rapidamente em direção à porta. Lá estava Giovana, vestida com um terno preto impecável, segurando uma bolsa de grife no ombro. Ela chorava copiosamente, apoiando-se no batente da porta para não cair.Ao ver o retrato de Lúcia, Giovana desabou de vez. Com passos trôpegos,
Giovana gritou com Sílvio, como se estivesse cuspindo fogo:— Você não era o marido dela? Quando ela pulou daquele prédio, onde você estava, hein? Por que você não a protegeu? Você não dizia que a amava? Sílvio, você foi um péssimo marido! Eu tenho vergonha por ela, vergonha por ter confiado em você!Sílvio permaneceu em silêncio, os lábios cerrados, com os olhos tomados por uma dor profunda. Ela estava certa. Ele foi um marido terrível. Antes de Lúcia pular, havia tantos sinais, tantos avisos, mas foi a sua negligência que a matou.— E você acha que ficar com o cabelo branco resolve alguma coisa? Lúcia está morta! Ela morreu, Sílvio! A sua Lúcia, a mulher que você dizia amar mais do que tudo, morreu! — Giovana rugiu, conseguindo se libertar da mão que a segurava. Avançou contra Sílvio, os punhos fechados, socando-o no peito, como se quisesse puni-lo em nome de Lúcia. — Ela era tão vaidosa! Tão sensível à dor! E escolheu morrer dessa forma! O que você fez com ela? O que você fez para m
Arthur voltou a falar:— Tenho uma ideia que pode aumentar suas chances.— Ah, é? — Giovana ergueu uma sobrancelha, curiosa.— Eu posso te ajudar a fazer uma cirurgia plástica para ficar igual à Lúcia. Depois, você se aproxima do Sílvio. Espere ele beber demais, tire a roupa e suba na cama dele. Um homem bêbado, ao ver um rosto idêntico ao da mulher que ele mais amou… Não tem como resistir. — Arthur explicou com frieza. — Quando ele acordar no dia seguinte e perceber que você não é a Lúcia, já será tarde demais. Além disso, ele vai achar que foi você quem financiou a recuperação dele, e não vai ter escolha a não ser te dar o título de esposa.— E se ele acordar, colocar as calças e fingir que nada aconteceu? — Giovana hesitou, mordendo o lábio.Arthur soltou uma risada sarcástica:— Você não entende nada de homens. Quando o amor da vida de um homem vai embora, todas as outras mulheres se tornam iguais. Além disso, você é a "benfeitora" dele. Ele vai encarar isso como uma forma de retri
Nos últimos dias, Basílio não saiu de perto da cama de Lúcia. Ele sequer fechou os olhos para descansar. Apesar de a cirurgia ter sido um sucesso, ela ainda não havia despertado.Daulo explicou que, quando ela acordasse, era muito provável que perdesse todas as memórias. Disse também que era a oportunidade perfeita para Basílio. Lúcia estava divorciada. Seria esse o momento dele?Basílio não sabia. Só sabia que, se Lúcia o escolhesse, ele faria de tudo para protegê-la e afastá-la de todo o caos que a cercava. Ele conhecia Lúcia antes mesmo de Sílvio. Mas, na época, sua insegurança o impedia de se aproximar. O rótulo de “filho ilegítimo” pesava demais, e ele nunca teve coragem de falar com a garota que tanto admirava. Suas interações limitavam-se a encontros casuais no campus, olhares furtivos e momentos que, para ela, não passavam de coincidências.Quando Lúcia e Sílvio se casaram logo após a formatura, em uma cerimônia grandiosa, Basílio mergulhou no trabalho. Tornou-se policial e, co
Basílio, atento ao fato de que ela havia acabado de acordar, foi direto ao ponto:— Você sofreu um acidente, e eu te salvei. Só aqui, com os recursos médicos disponíveis, foi possível cuidar de você.— Basílio... eu posso confiar em você? — Lúcia perguntou, encostada no travesseiro. Depois de um longo silêncio, finalmente falou, hesitante.Basílio assentiu com firmeza:— Claro que pode.— Você pode me levar de volta? Preciso encontrar uma pessoa.— Encontrar alguém?— Isso. Ele é muito importante pra mim. Se não me encontrar, ele vai ficar bravo.— Quem é essa pessoa?— Sílvio!— Sílvio? Você ainda se lembra de Sílvio?Os olhos de Basílio brilharam com uma surpresa desconfortável, enquanto um turbilhão de emoções invadia seu coração."Amnésia seletiva. Ela esqueceu tudo e todos, menos o Sílvio?" A mente dele fervilhava. "Será que Sílvio é mesmo tão importante pra ela? Isso não é Deus me dando uma chance. É Deus me mostrando que, depois de tudo, aquilo que nunca foi meu, continuará não
O quarto de hospital estava silencioso. Lúcia pegou o controle remoto ao lado da cama e ligou a TV presa à parede. Na tela, uma apresentadora relatava a notícia do funeral da esposa falecida de Sílvio, presidente do Grupo Baptista. Logo em seguida, a imagem de Sílvio ajoelhado diante de um altar, os cabelos completamente brancos, apareceu no monitor.A moldura da foto dela era rosa. As flores ao redor também eram cor-de-rosa. "Por que o cabelo dele está branco desse jeito?", ela se perguntou. "Será que ele pensou que eu estava morta e ficou tão triste assim? Nosso casamento virou um funeral?"Lúcia observava a expressão de Sílvio na tela. As linhas do rosto dele estavam rígidas, a postura fria e sombria como nunca antes. Ele vestia um terno preto impecável e estava na linha de frente da multidão, com os olhos fixos no altar. "Então ele me amava mais do que eu imaginava", pensou ela. "Caso contrário, como poderia estar tão acabado, com os cabelos brancos?""Sílvio não é frio. Ele só apa