Basílio chegou ao quarto de Lúcia com a marmita na mão. Colocou o recipiente com a canja na frente dela e observou enquanto ela comia com atenção. O olhar dele caiu sobre a própria mão. A palma, já avermelhada e cheia de bolhas, latejava de dor, o que o fez soltar um leve suspiro. — Você está se sentindo bem? — Lúcia perguntou, levantando os olhos e notando a expressão tensa dele. Basílio imediatamente fechou a mão, escondendo-a ao lado do corpo. A pálpebra dele tremeu levemente antes de responder:— Estou bem.— Essa canja é de qual restaurante? — E o que achou do sabor?— Está deliciosa. É a melhor canja que já tomei. — Que bom. Amanhã eu trago mais para você. Esse restaurante não tem só canja, sabia? Eles também fazem outros pratos, como arroz de frutos do mar. Experimentei uma vez, estava ótimo. — Não é incômodo demais para você? — Perguntou Lúcia, meio sem jeito. Basílio abriu um sorriso caloroso:— Nós somos amigos. Não precisa se preocupar com isso. Lúcia não respo
— Hum? — Basílio voltou à realidade. Lúcia exibia um sorriso radiante:— Vamos ver o Sílvio, vai? — Só de vê-lo, você já fica tão feliz assim?— Claro! Ele é meu marido.— Antes de perder a memória, você queria se divorciar dele. — Basílio provocou, caminhando ao lado dela enquanto saíam do quarto. Lúcia parou por um instante, mas logo explicou:— Aquilo foi coisa da minha imaturidade. Agora é diferente. Quero tratá-lo bem, fazer tudo certo. Além disso, vamos nos casar de novo, sabia? — Casar de novo? — Sim. Por causa da minha amnésia, ele quer fazer outra cerimônia. E o Sr. Basílio, claro, está convidado para o nosso casamento. — Se você me convidar para ser padrinho, eu aceito. — Respondeu Basílio com um sorriso. Mas, por dentro, sentia um gosto amargo. Ela ia mesmo refazer o casamento. Basílio deveria estar feliz por ela. Desta vez, a princesa e o cavaleiro teriam um final perfeito. Quando chegaram ao fim do corredor, em frente a outro quarto, Basílio parou e indicou
— Sra. Lúcia, que bom que chegou! — Disse Leopoldo ao vê-la entrar no quarto, sorrindo enquanto se levantava. Ele coçou o nariz, percebendo que deveria dar espaço, e acrescentou. — Vou sair pra fumar um cigarro. Cuida bem do Sr. Sílvio, está bem?Sem esperar resposta, ele abriu a porta e saiu, fechando-a com cuidado atrás de si. Agora sem mais ninguém no quarto, o ambiente ficou silencioso, quase solene.Lúcia olhou para a cama onde Sílvio estava deitado. Ele vestia o mesmo uniforme listrado que o dela, típico de pacientes hospitalares, parecendo até uma combinação de casal. Era tão diferente daquela imagem de meio mês atrás, quando ele ainda usava um respirador na boca e no nariz. Agora, apesar de ainda conectado a vários aparelhos, já não precisava da ajuda do equipamento. O rosto dele estava um pouco mais corado, revelando sinais de recuperação.A sensação era de que uma eternidade havia passado. Finalmente estavam frente a frente novamente, depois de tantos altos e baixos, quase co
Lúcia não conseguia segurar as lágrimas, e Sílvio sorriu de canto, divertido:— Na próxima vida, você pode me perdoar também.— Quem disse que eu vou estar com você na próxima vida? — Lúcia respondeu, batendo nele mais uma vez. Sílvio parecia estar se divertindo. Mesmo com os tapas, a preocupação dela com ele fazia seu coração transbordar de alegria. Felizmente, apesar de tudo, a cirurgia tinha sido um sucesso. Ele estava acordado. Os obstáculos que pareciam intransponíveis tinham sido superados um a um. — Você ainda ri? Como consegue? — Lúcia reclamou, dando-lhe novos tapas. Sílvio segurou o pulso dela, mas logo a soltou ao ouvir um pequeno gemido de dor. Foi então que notou o corte no pulso dela. Lembrou-se do que Basílio tinha contado: que ela havia copiado a Bíblia inteira com sangue para rezar por ele. — Que tolice... — Murmurou Sílvio, com o olhar pesado. Lúcia soltou uma risada fria:— Ainda nem refizemos nosso casamento. Se acha que sou tola, dá tempo de desistir.
A porta do quarto se fechou novamente. Lúcia estava tão sem graça que queria que o chão se abrisse para que ela pudesse se esconder. Não fazia ideia de como encarar Leopoldo no futuro. Ao levantar os olhos e ver Sílvio sorrindo com aquele ar maroto, a raiva subiu em sua garganta. Com um olhar feroz, ela resmungou: — Não ria.— Tudo bem. Se minha esposa não quer que eu ria, eu não rio.Sílvio estendeu a mão para segurá-la novamente. Ela, no entanto, a afastou de imediato.— Tá chateada porque a gente não transou? — Perguntou Sílvio.— Sílvio! O rosto de Lúcia ficou ainda mais vermelho, e embora quisesse negar, sabia que havia um fundo de verdade no que ele dizia. Sílvio recolheu o sorriso e segurou a ponta dos dedos dela com firmeza:— Quando eu melhorar, a gente termina o que começamos. Não precisa ter pressa. — Quem tá com pressa? — Lúcia bufou, rindo de nervoso, enquanto puxava a mão de volta. Sílvio, porém, não parecia nem um pouco incomodado:— Ainda tá brava? — Você q
Aparentemente, abster-se com frequência não era uma boa ideia. Sílvio era tão jovem, sempre teve uma saúde de ferro. Não fazia sentido que fosse algo físico. — Sílvio, por que você ainda não saiu? — Lúcia bateu na porta do banheiro.Sílvio virou a cabeça e viu, no reflexo do vidro da porta, a silhueta graciosa da Lúcia.— Estou falando com você, Sílvio. — O tom dela ficou mais ansioso. Era tanto cuidado que ele até teve a impressão de que a antiga Lúcia, aquela de quando começaram a namorar na faculdade, tinha voltado. Naquela época, ela fazia de tudo para encontrá-lo “por acaso” e puxar assunto. Sílvio desligou a torneira e tirou o papel higiênico do nariz. O sangue tinha manchado tudo. Ele jogou o papel no vaso sanitário e deu descarga:— Já estou saindo. Depois de se certificar de que o sangue tinha parado de escorrer, ele abriu a porta.— Como você demorou tanto só para usar o banheiro? Achei que tivesse acontecido alguma coisa. — Lúcia correu para segurá-lo, pegando o supo
Talvez fosse a presença de alguém amado ao lado que fazia a diferença. Tanto o corpo de Sílvio quanto o de Lúcia estavam se recuperando, dia após dia.Com o tempo, Sílvio já conseguia sair ao ar livre. Apesar de acordar com dores no corpo por causa das noites mal dormidas, sentia-se mais disposto. Lúcia empurrava sua cadeira de rodas pelo jardim em frente ao prédio do hospital, onde ele podia respirar ar fresco e observar a vida ao redor. Juntos, viam as nuvens se transformarem no céu e o sol se pôr lentamente no horizonte, pintando o céu com um tom alaranjado deslumbrante. A tempestade de neve, que parecia interminável, finalmente tinha dado uma trégua.Lúcia acompanhava Sílvio enquanto admiravam as grandes árvores do jardim do hospital. Antes secas e sem vida, agora exibiam pequenas folhas verdes que anunciavam o início de um novo ciclo.No céu azul, bandos de gansos migravam em formação, voando aos pares. Sobre os fios de energia, dois passarinhos desconhecidos se encostavam um no o
No elevador, eram apenas três pessoas: Sílvio, Lúcia e Leopoldo. Mas Lúcia sentia o ar tão pesado que mal conseguia respirar. Trocar o fígado tinha dado certo, mas e daí? O final ainda era o mesmo. Sílvio também estava quieto, sentado na cadeira de rodas. Seu olhar fixava-se em seus dedos pálidos, sem trocar nenhuma palavra com Lúcia. Quando o levaram de volta ao quarto, Lúcia não conseguiu mais se segurar. Durante todo o tempo, ela havia estado atenta a cada gesto de Sílvio. Ela não acreditava que ele não tivesse percebido seu humor. No caminho de volta, foram minutos intermináveis, e ele não tentou consolá-la, não se deu ao trabalho de explicar nada. Será que ele tinha mesmo mudado? Um misto de mágoa e amargura preencheu o coração de Lúcia, deixando-a sufocada. Ela se sentia patética por ainda nutrir afeto por alguém que a rejeitava. As lágrimas ameaçavam transbordar, mas Lúcia, teimosa como sempre, as conteve. Em outra época, teria chorado na frente dele, sem hesitar. Mas ag