Lúcia não conseguia segurar as lágrimas, e Sílvio sorriu de canto, divertido:— Na próxima vida, você pode me perdoar também.— Quem disse que eu vou estar com você na próxima vida? — Lúcia respondeu, batendo nele mais uma vez. Sílvio parecia estar se divertindo. Mesmo com os tapas, a preocupação dela com ele fazia seu coração transbordar de alegria. Felizmente, apesar de tudo, a cirurgia tinha sido um sucesso. Ele estava acordado. Os obstáculos que pareciam intransponíveis tinham sido superados um a um. — Você ainda ri? Como consegue? — Lúcia reclamou, dando-lhe novos tapas. Sílvio segurou o pulso dela, mas logo a soltou ao ouvir um pequeno gemido de dor. Foi então que notou o corte no pulso dela. Lembrou-se do que Basílio tinha contado: que ela havia copiado a Bíblia inteira com sangue para rezar por ele. — Que tolice... — Murmurou Sílvio, com o olhar pesado. Lúcia soltou uma risada fria:— Ainda nem refizemos nosso casamento. Se acha que sou tola, dá tempo de desistir.
A porta do quarto se fechou novamente. Lúcia estava tão sem graça que queria que o chão se abrisse para que ela pudesse se esconder. Não fazia ideia de como encarar Leopoldo no futuro. Ao levantar os olhos e ver Sílvio sorrindo com aquele ar maroto, a raiva subiu em sua garganta. Com um olhar feroz, ela resmungou: — Não ria.— Tudo bem. Se minha esposa não quer que eu ria, eu não rio.Sílvio estendeu a mão para segurá-la novamente. Ela, no entanto, a afastou de imediato.— Tá chateada porque a gente não transou? — Perguntou Sílvio.— Sílvio! O rosto de Lúcia ficou ainda mais vermelho, e embora quisesse negar, sabia que havia um fundo de verdade no que ele dizia. Sílvio recolheu o sorriso e segurou a ponta dos dedos dela com firmeza:— Quando eu melhorar, a gente termina o que começamos. Não precisa ter pressa. — Quem tá com pressa? — Lúcia bufou, rindo de nervoso, enquanto puxava a mão de volta. Sílvio, porém, não parecia nem um pouco incomodado:— Ainda tá brava? — Você q
Aparentemente, abster-se com frequência não era uma boa ideia. Sílvio era tão jovem, sempre teve uma saúde de ferro. Não fazia sentido que fosse algo físico. — Sílvio, por que você ainda não saiu? — Lúcia bateu na porta do banheiro.Sílvio virou a cabeça e viu, no reflexo do vidro da porta, a silhueta graciosa da Lúcia.— Estou falando com você, Sílvio. — O tom dela ficou mais ansioso. Era tanto cuidado que ele até teve a impressão de que a antiga Lúcia, aquela de quando começaram a namorar na faculdade, tinha voltado. Naquela época, ela fazia de tudo para encontrá-lo “por acaso” e puxar assunto. Sílvio desligou a torneira e tirou o papel higiênico do nariz. O sangue tinha manchado tudo. Ele jogou o papel no vaso sanitário e deu descarga:— Já estou saindo. Depois de se certificar de que o sangue tinha parado de escorrer, ele abriu a porta.— Como você demorou tanto só para usar o banheiro? Achei que tivesse acontecido alguma coisa. — Lúcia correu para segurá-lo, pegando o supo
Talvez fosse a presença de alguém amado ao lado que fazia a diferença. Tanto o corpo de Sílvio quanto o de Lúcia estavam se recuperando, dia após dia.Com o tempo, Sílvio já conseguia sair ao ar livre. Apesar de acordar com dores no corpo por causa das noites mal dormidas, sentia-se mais disposto. Lúcia empurrava sua cadeira de rodas pelo jardim em frente ao prédio do hospital, onde ele podia respirar ar fresco e observar a vida ao redor. Juntos, viam as nuvens se transformarem no céu e o sol se pôr lentamente no horizonte, pintando o céu com um tom alaranjado deslumbrante. A tempestade de neve, que parecia interminável, finalmente tinha dado uma trégua.Lúcia acompanhava Sílvio enquanto admiravam as grandes árvores do jardim do hospital. Antes secas e sem vida, agora exibiam pequenas folhas verdes que anunciavam o início de um novo ciclo.No céu azul, bandos de gansos migravam em formação, voando aos pares. Sobre os fios de energia, dois passarinhos desconhecidos se encostavam um no o
No elevador, eram apenas três pessoas: Sílvio, Lúcia e Leopoldo. Mas Lúcia sentia o ar tão pesado que mal conseguia respirar. Trocar o fígado tinha dado certo, mas e daí? O final ainda era o mesmo. Sílvio também estava quieto, sentado na cadeira de rodas. Seu olhar fixava-se em seus dedos pálidos, sem trocar nenhuma palavra com Lúcia. Quando o levaram de volta ao quarto, Lúcia não conseguiu mais se segurar. Durante todo o tempo, ela havia estado atenta a cada gesto de Sílvio. Ela não acreditava que ele não tivesse percebido seu humor. No caminho de volta, foram minutos intermináveis, e ele não tentou consolá-la, não se deu ao trabalho de explicar nada. Será que ele tinha mesmo mudado? Um misto de mágoa e amargura preencheu o coração de Lúcia, deixando-a sufocada. Ela se sentia patética por ainda nutrir afeto por alguém que a rejeitava. As lágrimas ameaçavam transbordar, mas Lúcia, teimosa como sempre, as conteve. Em outra época, teria chorado na frente dele, sem hesitar. Mas ag
Lúcia ouviu aquelas palavras, mas nada disso a comoveu. Pelo contrário, sentiu um aperto inexplicável no peito. Uma onda de frustração parecia sufocá-la. Tentou se desvencilhar do aperto no braço dele:— Sílvio, se você não me soltar agora, eu vou me irritar de verdade! Ela estava fazendo o máximo para controlar suas emoções, esforçando-se para não explodir, pois sabia que ele ainda era um paciente em recuperação. Lúcia não queria discutir com ele. — Finalmente admitiu que está brava? — Disse Sílvio.Com um puxão rápido, Sílvio a fez sentar em seu colo. A proximidade repentina criou uma situação estranhamente íntima. Os olhos de Lúcia ficaram vermelhos como se ele tivesse atingido uma ferida oculta. As lágrimas insistiam em surgir, enquanto ela sentia a garganta apertar. Sílvio tentou limpar suas lágrimas, mas antes que sua mão tocasse seu rosto, ela a afastou com um tapa irritado:— Não precisa fingir que se importa! Se eu soubesse que você era um traidor, nunca teria rezado p
Na vida, o ódio era algo efêmero, intangível. Com o pouco tempo que se tinha, desperdiçá-lo com rancores era, sem dúvida, a decisão mais insensata. Felizmente, Deus havia concedido a Sílvio uma chance de redenção. Ele estava decidido a dedicar o resto de sua vida para cuidar de Lúcia, protegê-la e amá-la, trazendo de volta aquele brilho juvenil e despreocupado que ela costumava ter. O que Sílvio não imaginava era que as palavras de Lúcia, ditas em um momento de irritação, carregavam uma verdade desconcertante. O destino, com toda sua imprevisibilidade, tinha um jeito peculiar de pregar peças. Aquilo que parecia garantido poderia desaparecer num piscar de olhos, enquanto o que parecia perdido, às vezes, retornava de forma inesperada. Lúcia não queria que ele limpasse suas lágrimas, mas a postura firme e dominadora de Sílvio a mantinha presa em seu colo. Os dedos ásperos dele deslizavam suavemente pelo rosto dela, enquanto seus olhos a observavam com uma ternura quase palpável. C
— Nesta hora, eu não gostaria de incomodar vocês dois. — A voz de Basílio soava com um leve tom de riso pelo telefone. Sílvio estendeu a mão para Lúcia, que compreendeu imediatamente o gesto e entregou-lhe o celular. Ele sorriu antes de falar:— Por que você foi parar no Grupo Baptista no meio do expediente? — Você acha que eu faço isso porque gosto de resolver suas coisas? — Respondeu Basílio, com um tom frio e levemente sarcástico.Sílvio não se incomodou com a atitude, mantendo o sorriso no rosto:— Quando eu voltar, te convido para jantar.— Um jantar basta?— O que mais você quer? — Você realmente não sabe o que eu quero? Sílvio sabia, era claro. Basílio queria algo que ele jamais poderia ceder: Lúcia, desde o início até o fim. Mas isso era impossível. Agora que ele estava acordado, Lúcia era dele, e ele não abriria mão disso. Sílvio sabia que precisaria encontrar outra forma de demonstrar sua gratidão a Basílio. Após encerrar a ligação, Lúcia perguntou, confusa:— Sobre o