A porta do quarto se fechou novamente. Lúcia estava tão sem graça que queria que o chão se abrisse para que ela pudesse se esconder. Não fazia ideia de como encarar Leopoldo no futuro. Ao levantar os olhos e ver Sílvio sorrindo com aquele ar maroto, a raiva subiu em sua garganta. Com um olhar feroz, ela resmungou: — Não ria.— Tudo bem. Se minha esposa não quer que eu ria, eu não rio.Sílvio estendeu a mão para segurá-la novamente. Ela, no entanto, a afastou de imediato.— Tá chateada porque a gente não transou? — Perguntou Sílvio.— Sílvio! O rosto de Lúcia ficou ainda mais vermelho, e embora quisesse negar, sabia que havia um fundo de verdade no que ele dizia. Sílvio recolheu o sorriso e segurou a ponta dos dedos dela com firmeza:— Quando eu melhorar, a gente termina o que começamos. Não precisa ter pressa. — Quem tá com pressa? — Lúcia bufou, rindo de nervoso, enquanto puxava a mão de volta. Sílvio, porém, não parecia nem um pouco incomodado:— Ainda tá brava? — Você q
Aparentemente, abster-se com frequência não era uma boa ideia. Sílvio era tão jovem, sempre teve uma saúde de ferro. Não fazia sentido que fosse algo físico. — Sílvio, por que você ainda não saiu? — Lúcia bateu na porta do banheiro.Sílvio virou a cabeça e viu, no reflexo do vidro da porta, a silhueta graciosa da Lúcia.— Estou falando com você, Sílvio. — O tom dela ficou mais ansioso. Era tanto cuidado que ele até teve a impressão de que a antiga Lúcia, aquela de quando começaram a namorar na faculdade, tinha voltado. Naquela época, ela fazia de tudo para encontrá-lo “por acaso” e puxar assunto. Sílvio desligou a torneira e tirou o papel higiênico do nariz. O sangue tinha manchado tudo. Ele jogou o papel no vaso sanitário e deu descarga:— Já estou saindo. Depois de se certificar de que o sangue tinha parado de escorrer, ele abriu a porta.— Como você demorou tanto só para usar o banheiro? Achei que tivesse acontecido alguma coisa. — Lúcia correu para segurá-lo, pegando o supo
Talvez fosse a presença de alguém amado ao lado que fazia a diferença. Tanto o corpo de Sílvio quanto o de Lúcia estavam se recuperando, dia após dia.Com o tempo, Sílvio já conseguia sair ao ar livre. Apesar de acordar com dores no corpo por causa das noites mal dormidas, sentia-se mais disposto. Lúcia empurrava sua cadeira de rodas pelo jardim em frente ao prédio do hospital, onde ele podia respirar ar fresco e observar a vida ao redor. Juntos, viam as nuvens se transformarem no céu e o sol se pôr lentamente no horizonte, pintando o céu com um tom alaranjado deslumbrante. A tempestade de neve, que parecia interminável, finalmente tinha dado uma trégua.Lúcia acompanhava Sílvio enquanto admiravam as grandes árvores do jardim do hospital. Antes secas e sem vida, agora exibiam pequenas folhas verdes que anunciavam o início de um novo ciclo.No céu azul, bandos de gansos migravam em formação, voando aos pares. Sobre os fios de energia, dois passarinhos desconhecidos se encostavam um no o
No elevador, eram apenas três pessoas: Sílvio, Lúcia e Leopoldo. Mas Lúcia sentia o ar tão pesado que mal conseguia respirar. Trocar o fígado tinha dado certo, mas e daí? O final ainda era o mesmo. Sílvio também estava quieto, sentado na cadeira de rodas. Seu olhar fixava-se em seus dedos pálidos, sem trocar nenhuma palavra com Lúcia. Quando o levaram de volta ao quarto, Lúcia não conseguiu mais se segurar. Durante todo o tempo, ela havia estado atenta a cada gesto de Sílvio. Ela não acreditava que ele não tivesse percebido seu humor. No caminho de volta, foram minutos intermináveis, e ele não tentou consolá-la, não se deu ao trabalho de explicar nada. Será que ele tinha mesmo mudado? Um misto de mágoa e amargura preencheu o coração de Lúcia, deixando-a sufocada. Ela se sentia patética por ainda nutrir afeto por alguém que a rejeitava. As lágrimas ameaçavam transbordar, mas Lúcia, teimosa como sempre, as conteve. Em outra época, teria chorado na frente dele, sem hesitar. Mas ag
Lúcia ouviu aquelas palavras, mas nada disso a comoveu. Pelo contrário, sentiu um aperto inexplicável no peito. Uma onda de frustração parecia sufocá-la. Tentou se desvencilhar do aperto no braço dele:— Sílvio, se você não me soltar agora, eu vou me irritar de verdade! Ela estava fazendo o máximo para controlar suas emoções, esforçando-se para não explodir, pois sabia que ele ainda era um paciente em recuperação. Lúcia não queria discutir com ele. — Finalmente admitiu que está brava? — Disse Sílvio.Com um puxão rápido, Sílvio a fez sentar em seu colo. A proximidade repentina criou uma situação estranhamente íntima. Os olhos de Lúcia ficaram vermelhos como se ele tivesse atingido uma ferida oculta. As lágrimas insistiam em surgir, enquanto ela sentia a garganta apertar. Sílvio tentou limpar suas lágrimas, mas antes que sua mão tocasse seu rosto, ela a afastou com um tapa irritado:— Não precisa fingir que se importa! Se eu soubesse que você era um traidor, nunca teria rezado p
Na vida, o ódio era algo efêmero, intangível. Com o pouco tempo que se tinha, desperdiçá-lo com rancores era, sem dúvida, a decisão mais insensata. Felizmente, Deus havia concedido a Sílvio uma chance de redenção. Ele estava decidido a dedicar o resto de sua vida para cuidar de Lúcia, protegê-la e amá-la, trazendo de volta aquele brilho juvenil e despreocupado que ela costumava ter. O que Sílvio não imaginava era que as palavras de Lúcia, ditas em um momento de irritação, carregavam uma verdade desconcertante. O destino, com toda sua imprevisibilidade, tinha um jeito peculiar de pregar peças. Aquilo que parecia garantido poderia desaparecer num piscar de olhos, enquanto o que parecia perdido, às vezes, retornava de forma inesperada. Lúcia não queria que ele limpasse suas lágrimas, mas a postura firme e dominadora de Sílvio a mantinha presa em seu colo. Os dedos ásperos dele deslizavam suavemente pelo rosto dela, enquanto seus olhos a observavam com uma ternura quase palpável. C
— Nesta hora, eu não gostaria de incomodar vocês dois. — A voz de Basílio soava com um leve tom de riso pelo telefone. Sílvio estendeu a mão para Lúcia, que compreendeu imediatamente o gesto e entregou-lhe o celular. Ele sorriu antes de falar:— Por que você foi parar no Grupo Baptista no meio do expediente? — Você acha que eu faço isso porque gosto de resolver suas coisas? — Respondeu Basílio, com um tom frio e levemente sarcástico.Sílvio não se incomodou com a atitude, mantendo o sorriso no rosto:— Quando eu voltar, te convido para jantar.— Um jantar basta?— O que mais você quer? — Você realmente não sabe o que eu quero? Sílvio sabia, era claro. Basílio queria algo que ele jamais poderia ceder: Lúcia, desde o início até o fim. Mas isso era impossível. Agora que ele estava acordado, Lúcia era dele, e ele não abriria mão disso. Sílvio sabia que precisaria encontrar outra forma de demonstrar sua gratidão a Basílio. Após encerrar a ligação, Lúcia perguntou, confusa:— Sobre o
Aquele som, tão acolhedor, trouxe Lúcia de volta à consciência. Com esforço, ela conseguiu abrir os olhos e percebeu que estava em um quarto de hospital na cidade de Serra Encantada.Sílvio estava deitado na mesma cama que ela, segurando-a em um abraço protetor. Ele passou a mão pelo rosto dela, enxugando uma lágrima que escorria.— Por que está chorando? Teve um pesadelo? — Perguntou Sílvio, com um tom preocupado que transparecia uma genuína preocupação.Lúcia não queria que ele se preocupasse:— Não foi nada. Só um sonho ruim.No caminho de volta para Cidade A, Lúcia permaneceu calada, imersa em seus pensamentos. A confusão a consumia. Sílvio dizia que ela era órfã desde pequena, mas as imagens do sonho eram tão vívidas que pareciam memórias reais. Era como se seus pais tivessem partido apenas quando ela já era adulta. E mais: como eles haviam morrido? Por que, no sonho, sua mãe a chamava de tola, com tanta raiva a ponto de quase sufocá-la com as próprias mãos?Quando chegaram à mans