— Você é tão frio, Sílvio.Aquelas palavras perfuraram Sílvio como uma faca. A mão que ele mantinha apoiada no colchão se fechou com força, seus dedos cravando-se no tecido. Frio? Ele já tinha sido muito mais que isso. No passado, ele não apenas foi indiferente: ele a torturou, a feriu, desejou sua morte e até encomendou um caixão para ela.Repetidas vezes, ele a machucou, proferiu palavras que a despedaçavam, acusando-a de coisas que ela nunca fez e jogando culpas que ela não merecia. Ele nunca acreditou nela. Chegou ao ponto de difamá-la, envolvendo-a em rumores com Basílio. Ele foi cruel, desumano.Agora, com Lúcia tremendo em seus braços como um animalzinho assustado, com o rosto pálido e sem cor, ele mal conseguia olhar para ela. Um simples pesadelo a deixara nesse estado. Se ela realmente se lembrasse de algo, Sílvio não queria nem imaginar as consequências.— Não tenha medo, Lúcia. Estou aqui com você. Sempre estarei — Disse Sílvio, acariciando seu ombro com cuidado, como se qui
E se Lúcia a descobrisse? O que aconteceria?— Lúcia, se um dia você descobrisse que eu te enganei, o que faria? — Sílvio perguntou, tentando soar casual.Lúcia franziu as sobrancelhas, estreitando os olhos para ele:— Depende do motivo.— E se fosse para garantir um futuro melhor para nós dois? Se minha intenção fosse boa? — Sílvio insistiu, agarrando-se à possibilidade de que ela pudesse entender.Lúcia pensou por um instante, encarando-o com um olhar firme:— Dependeria do que você está escondendo. Mas, Sílvio, vou te dar um conselho: é melhor ser sincero. Isso sempre resolve.Ela se inclinou um pouco mais para perto dele, semicerrando os olhos de forma suspeita.— Me diz... Você está escondendo alguma mulher lá fora? É isso? — Provocou Lúcia.— Que absurdo! Mal consigo lidar com você, imagine com outra! — Sílvio respondeu com um tom brincalhão, tentando disfarçar o nervosismo.— Então o que você está escondendo de mim? — Insistiu Lúcia.— Nada. Não estou escondendo nada.— Tem cert
Os olhos de Lúcia estavam enevoados, mas o olhar dela perfurava Sílvio, atingindo-o no fundo da alma. Ele sentiu o coração apertar de forma quase insuportável, como se enxames de abelhas o ferroassem, uma após a outra. Ele não queria que ela soubesse. Não queria que ela carregasse o peso de uma culpa ou de uma dívida por algo que ele fez por amor. Ele não suportaria que o amor dela por ele fosse contaminado por gratidão.Com suavidade, ele afastou o cabelo molhado que estava grudado no rosto dela e colocou atrás da orelha.— Não, Lúcia. Essa cicatriz é antiga. Você só não se lembrava dela. — Sílvio mentiu, tentando soar convincente.Os olhos de Lúcia começaram a marejar. A ponta de seu nariz ficou avermelhada, e ela o encarou com uma expressão de vulnerabilidade.— É verdade? — Perguntou Lúcia, com a voz tremendo.— Sim, é verdade.— Como aconteceu? — Lúcia continuou acariciando a cicatriz, os dedos trêmulos.Depois de uma pausa, Sílvio respondeu, inventando rapidamente uma história:—
Havia algo que incomodava Sílvio, mas ele não sabia dizer exatamente o quê. A cirurgia de Lúcia tinha sido um sucesso, e agora ela sequer se lembrava do passado. Eles estavam de volta ao início, não estavam?Pensando nisso, Sílvio a puxou para mais perto, envolvendo-a em seus braços com uma intensidade quase desesperada. Antes de Lúcia perder a memória, ele também queria abraçá-la assim, mas ela sempre parecia tão distante, sempre pronta para enfrentá-lo, com palavras afiadas ou um silêncio carregado de mágoa. Agora, finalmente, eles pareciam um casal de verdade.— Lúcia, me promete uma coisa. — Disse Sílvio.Lúcia, que estava recostada no peito dele, ergueu os olhos curiosos, enquanto brincava com o nariz dele com os dedos.— O quê?— Se algum dia você descobrir que eu cometi um erro... promete que não vai ficar brava comigo.— Que erro você cometeu? — Perguntou Lúcia, com um olhar suave, quase doce.Sílvio acariciou o rosto dela, sentindo a maciez da pele sob seus dedos. Seus olhos s
Aquelas palavras soaram tanto para Lúcia quanto para ele mesmo. Talvez fossem para ambos.O antigo Sílvio nunca teria permitido que alguém enxergasse sua carência. Ele escondia sua fome de afeto atrás de uma máscara de ódio e vingança, convencido de que sua vida tinha apenas um propósito: retribuir a dor que sofreu. Felicidade era algo que ele acreditava estar fora de seu alcance, algo que jamais combinaria com sua existência.Mas agora ele via as coisas de outra forma. Pela primeira vez, Sílvio desejava abrir sua alma, mostrar suas feridas e deixar Lúcia enxergar tudo.— Sílvio, sua infância deve ter sido muito difícil, não é? — Lúcia perguntou de repente, sua voz suave, mas cheia de empatia.Sílvio ficou em silêncio por alguns segundos, sua expressão congelada. Suas sobrancelhas bem desenhadas se franziram levemente. Difícil? Aquela palavra nem começava a descrever. Ao olhar para trás, ele percebia que nunca havia experimentado felicidade genuína em seus trinta anos de vida. A única
Sílvio costumava sonhar com o dia em que seria elogiado pelos pais. Mas esse dia nunca chegou. Ele não teve infância. Enquanto os outros meninos da sua idade brincavam no parque, tiravam fotos ou se divertiam em passeios, ele passava os dias limpando mesas, servindo pratos e recolhendo louça. Suas mãos, que deveriam ser macias e delicadas como as de qualquer criança, cedo ganharam calos finos, cicatrizes de um trabalho que nunca combinou com sua pouca idade.Os clientes do pequeno restaurante sempre diziam que o pai de Sílvio era um homem exemplar. Mas o pai dele só era assim com os outros. Com ele, o tratamento era diferente, marcado pela disciplina rígida e uma educação severa.— O seu pai é um excelente cozinheiro! — Diziam os fregueses.Mas Sílvio nunca teve o privilégio de provar os pratos que o pai preparava. Toda vez que desejava algo, via aquilo ser vendido para um cliente. Quando criança, ele adorava queijo, mas o queijo nunca era suficiente: sempre acabava na mesa de alguém.
Lúcia olhou para o próprio ombro e, com um sorriso gentil, disse:— Você pode chorar no meu ombro, se quiser.— Não precisa. — Respondeu Sílvio, entre lágrimas e um sorriso.Mas Lúcia não aceitou a recusa. Com delicadeza, pressionou a cabeça dele contra seu ombro:— Somos marido e mulher. Não precisa ter vergonha de mim.— Lúcia, aquilo que você disse mais cedo... eu levei a sério.— O que eu disse? — Lúcia perguntou, confusa.Ele respirou fundo, tentando se recompor. Seus olhos ainda estavam vermelhos quando ele a encarou.— Que você nunca vai me deixar. Eu não estou brincando. Se você me abandonar, Lúcia, eu vou enlouquecer de verdade.— Eu nunca vou te deixar, Sílvio.— E se um dia você descobrir que fiz algo errado?— Então eu vou ouvir sua explicação. Eu sei que você sempre teve boas intenções.Sílvio não respondeu. Em vez disso, ergueu o corpo e a puxou para um abraço ainda mais apertado. Ele a segurou com tanta força que parecia querer protegê-la de todo o mal do mundo. Com aque
Sílvio segurava o cigarro entre os lábios. A fumaça escapava devagar, formando espirais no ar frio da noite. Por trás das lentes de seus óculos, seus olhos, cansados e sombrios, refletiam o peso de vinte anos de memórias.“Pai... mãe... vocês estão bem aí em cima? Já se passaram vinte anos. Como será que estão no paraíso? Eu cresci... e vinguei vocês. Mas, sabem, não estou feliz. Estou tão cansado... tão exausto. Passei esses anos todos vivendo para a vingança. Fiz de tudo para não ter pesadelos à noite, para não ouvir vocês me acusando de ser ingrato. Mas, no processo, quase perdi o que há de mais importante na minha vida. Abelardo e a esposa dele morreram. Vocês os encontraram aí em cima? Pai, mãe... quero viver como uma pessoa normal. Quero envelhecer ao lado da mulher que amo, ter um filho, formar minha própria família. Rezem por mim, por favor. Rezem pela Lúcia, para que ela viva com saúde, em paz, sem preocupações. E, se puderem, rezem por mim também. Não deixem que ela recupere