Para o alívio de Sara, uma mulher toda de branco apareceu em seu campo de visão ainda embaçada. Assim como sua vista, sua audição estava prejudicava, pois ela movia os lábios, mas nada parecia compreensível para a mente confusa de Sara.
— Onde estou? — repetiu a pergunta com esforço, a garganta seca e dolorida dificultando a fala.
No lugar de fazer Sara compreender o que falava, a mulher se afastou.
O barulho da porta fechando retumbou dolorosamente nos tímpanos de Sara, que se encolheu na cama, no rosto uma máscara de dor.
Fechou os olhos e inspirou profundamente, tentando acalmar o coração e não surtar. Erguei a mão devagar, levando-a ao rosto ao notar que havia algo em seu nariz. Mais tubos. Continuou a explorar e seus dedos encontraram um pano em volta de sua cabeça. Bandagens, supôs, concluindo que as pontadas na cabeça se deviam a alguma ferida ali.
Piscou para aclarar a vista e a mente, forçando-se a captar os objetos. Aos poucos focalizou as coisas ao redor. Estava em um quarto espaçoso, com paredes, chão e móveis brancos. Do seu lado direito havia uma máquina emitindo um barulho incomodo, dela saiam vários fios que se conectavam ao seu corpo. A esquerda tinha uma cômoda, lotada de vasos com vários tipos de flores, cartões e ursinhos, uma janela fechada e uma poltrona. Na sua frente, acomodada em um suporte no teto, uma televisão ligada, transmitindo a conversa de um grupo de pessoas. Ficou evidente que estava em um quarto de hospital.
"O que aconteceu comigo?". Nenhuma informação coerente lhe vinha à mente, nada explicava como acabara naquela situação, por mais que se esforça-se.
Gemeu, fechando os olhos com força quando uma dor intensa fez tudo a sua volta rodopiar.
Não soube quanto tempo depois, mas, ouvindo passos se aproximando, abriu os olhos e viu, passando pela porta aberta duas mulheres. Uma era baixinha, de cabelo castanho preso em um coque alto, trajando um vestido branco. A outra, usando calças e jaleco branco, era alta e tinha longo cabelo loiro preso na nuca. Não conhecia a primeira, mas identificou rapidamente a segunda.
— Madrinha...? O que... Aconteceu...? — perguntou com dificuldade, a garganta seca e a língua grudenta atrapalhando sua fala.
Tatiana Santana, a melhor amiga de sua mãe, sua madrinha e uma médica renomada na capital de São Paulo, se aproximou com um sorriso aliviado.
— Estamos no hospital, querida. — Segurou a mão de Sara com carinho. — Você ficou em coma por duas semanas após o acidente. Deixou todos apavorados. — Sua voz transmitiu preocupação e reprovação ao questionar: — No que estava pensando, Sara? Você sabe o que acontece com quem dirigi em alta velocidade. Podia ter ferido outras pessoas ou morrido. Não faça isso novamente, eu te proíbo.
Como médica, Tatiana sabia que devia confortar os pacientes, mas aquela jovem era sua pupila, afilhada e filha de sua melhor amiga, falecida em um acidente semelhante ao sofrido por Sara. Tinha que colocar um pouco de juízo na cabeça dela.
— Que acidente...? — questionou sentindo a cabeça rodar ao tentar entender o que ouvia. Parecia que tinha chumbo por todo seu corpo, pressionando seu cérebro, empurrando-o para o vazio da incompreensão, esmagando seu corpo e mantendo-o preso ao leito. — Nem sei dirigir — comentou baixinho, confusa com a acusação. Não fazia sentido.
— Não se preocupe. É normal esquecer alguns fatos após tanto tempo em coma. — Tatiana acenou para a outra. — Essa é sua enfermeira particular, Silvia Vasques — apresentou, antes de declarar sorrindo: — O Rodrigo fez questão de contrata-la para ficar ao seu lado o tempo todo. Ele fez de tudo para garantir seu conforto — declarou esperando que a informação alegrasse sua afilhada, afinal, o mundo dela girava em torno do marido.
— Quem é Rodrigo? — Sara questionou confusa, sem reconhecer o nome ou que importância teria em sua vida.
Os olhos da médica se estreitaram, analisando Sara com ainda mais atenção e preocupação.
— Sara, qual é o último fato importante de que se lembra?
Ao pensar no assunto, Sara sentiu a mente embaralhada, a cabeça pesava e novamente uma dor imensa quase a fez desmaiar.
— Como assim? De que tipo? — perguntou com as pálpebras fechadas, massageando a fronte com a mão, o alívio não vindo como o desejado. Ao contrário, até seu toque parecia agulhas espetando sua pele.
— Aniversário, formatura, enterro, batizado ou casamento. — A médica indicou atenta a qualquer mudança na expressão da afilhada as palavras citadas. Não viu nada, nem mesmo um brilho de que alguma delas a impactava de alguma forma.
Sara não entendeu muito bem o porquê, mas teve a ligeira impressão que sua madrinha deu ênfase na última palavra.
Fechou os olhos, inspirou fundo, expirou devagar, método que sua mãe dizia servir para alinhar os pensamentos, e tentou lembrar-se de algo, sua mente estava lenta, mas, por fim, aproximou-se de uma resposta.
— Teve a festa de pijama na casa da Isabel. — Olhou para cima pensativa antes de continuar — Ela conseguiu ser aprovada em matemática ou física... Não lembro direito em qual matéria... Isabel, Laura e eu comemoramos ouvindo música, dançando e comendo pipoca.
Sua resposta pareceu não agradar sua madrinha, pois torceu os lábios com claro desgosto.
— Sabe em que ano estamos, Sara?
Essa pergunta era fácil.
— 2008.
De novo a cara de desgosto. Pelo jeito essa resposta também não agradara, porém, ela não fez outras.
Com a ajuda da enfermeira Silvia, Tatiana a examinou e, ao fim, a enfermeira saiu e quando voltou entregou um vidrinho para Tatiana.
— Tome esse remédio e descanse um pouco — sua madrinha comandou estendendo um comprimido e um copo de água. — Mais tarde farei novos exames.
Obedeceu, tanto pelo tom de Tatiana, que nunca aceitava não como resposta, quanto por sentir o corpo pesado e dolorido. Tomou o medicamento, se endireitou na cama e fechou os olhos. Descansar parecia uma ótima ideia.
Sara mergulhou em um tranquilo mundo sem sonhos e despertou com um agradável calor em sua mão, junto com caricias na palma, fazendo sua pele se arrepiar a partir daquele ponto.Abriu os olhos sorrindo, esperando ver seu namorado ao seu lado. Assustou-se e afastou a mão ao ver, em pé ao seu lado, um desconhecido alto, de porte imponente, vestindo blusa social branca, calça risca de giz e paletó do mesmo material.— Vim o mais rápido que pude — ele disse os olhos cor de carvão analisando Sara de um modo intenso e estranho.Encolheu-se no leito, levantando o lençol até o pescoço.Não notando, ou não ligando, para o medo refletido em seus gestos, o homem inclinou-se. Apavorada por perceber que ele planejava beija-la, mesmo com o corpo fraco e mole, em um ato de proteção, Sara espalmou as mãos no tórax do estranho e o emburrou.— Ainda zangada? — Ele deslizou os dedos pelo cabelo curto, o tom seco evidenciando o desagrado com a atitude dela. — Sara, vamos parar com essa briga estúpida.— N
A resposta não agradou a Rodrigo. Há dez anos, ele e seu irmão Izaque, se mudaram da capital de São Paulo para uma pequena cidade do interior do estado chamada Cezário. Lá conheceu várias pessoas, entre elas, Sara, sua esposa.— Dez anos? Ela não se lembra de mim?!"Bela conclusão, Montenegro", pensou Tatiana, gostando de ver a expressão normalmente indiferente ficar surpresa, confusa e até um pouco apavorada.— Temos de ter esperanças — aconselhou.Rodrigo se levantou furioso e bateu o punho fechado na mesa de Tatiana.— Esperanças? Estou tendo essa merda de esperança há dias. Estou farto de ouvir todos me dizendo para ter esperanças.A diretora do hospital também se levantou irada. Não era obrigada a aturar os ataques daquele esnobe que se achava o dono do mundo, nem ao menos gostava dele, então não precisava ser gentil.— Compreendo seu nervosismo, mas se descontrolar não ajuda em nada — praticamente gritou. — Sara vai precisar de nós, todos nós, quando se der conta do que está aco
O que se faz quando o mundo cai sobre nossa cabeça? Essa pergunta povoava a mente de Sara na última semana.Observando seu reflexo no espelho, passou a mão de leve sobre a cicatriz no alto de sua cabeça, a única prova do acidente que teve um mês atrás. Do qual não lembrava por mais que se esforçasse. Assim como os últimos dez anos...Respirou fundo e reparou nas sutis mudanças em seu rosto e corpo. Seu rosto estava mais fino, maduro e, provavelmente por causa de seu estado atual, melancólico. Suas formas também mudaram. Sofreara tanto por ser a única em seu grupo de amigas a ter seios quase inexistentes, agora conseguia percebê-los mesmo com a roupa larga e horrorosa do hospital. Estava mais parecida com uma mulher adulta."Lógico, Sara, você tem vinte sete anos, queria continuar com o corpo de uma menininha?". Fez uma careta diante das palavras vindas de seu interior. Podia ser uma mulher madura por fora, mas por dentro era outra história. Sentia-se como uma criança perdida diante do
Os dias passavam devagar para Rodrigo Montenegro. Dividia-se entre o trabalho, o hospital e a solidão de seu apartamento. Em nenhum desses lugares se sentia bem. No trabalho pensava na esposa; no hospital evitava aproximar-se dela, que o encarava com medo; e no apartamento... O lugar não era o mesmo sem ela.Durante as noites solitárias, passou e repassou a discussão que tiveram no dia do acidente, o que s aumentara sua culpa e a raiva por ter sido tão duro com a esposa. Se pudesse voltar no tempo...— Senhor Montenegro?Despertou de seus devaneios e olhou irritado para o funcionário que se atrevera a lhe chamar a atenção. O pobre homem encolheu-se em seu lugar. Rodrigo passou o olhar para os demais funcionários, sentados ao redor da grande mesa de reunião de sua empresa. Todos repetiram a reação do primeiro.Era temido por ter gênio difícil e não gostar de ser interrompido de forma alguma, mas naquele momento o errado era ele. Estava numa reunião e sua atenção estava em outro lugar.
Duas semanas depois de exames e testes, sem retorno de nenhuma lembrança, Sara recebeu alta do hospital. Não sabia se ficava feliz, por deixar aquele ambiente tão frio e impessoal, ou apavorada, por ter como próximo destino morar com seu recém-descoberto marido.No banheiro do hospital, aprontando-se para partir, apoiou-se na pia do banheiro e deslizou os dedos pela pequena cicatriz no topo da cabeça, observando seu reflexo. Tornara-se habito avaliar a atual imagem com a que tinha em suas lembranças. Procurava em si mesma respostas para resolver sua situação, sem nunca obtê-las.Tinha medo de sair daquele quarto de hospital e ficar sozinha com o "marido", trancada em um apartamento que o mesmo dizia ser o lar dos dois, mas do qual ela não lembrava."Seu marido é um gato, se joga mulher". Fez uma careta para o rumo que seus pensamentos tomavam. De onde saia tanto ideia besta? Logo em seguida admitiu que a culpa era da beleza de Rodrigo Montenegro. O homem podia ser caladão e emburrado
O restante do percurso foi feito em total silêncio. Na verdade, desde que acordou no hospital não tinham trocado mais que meia dúzia de palavras, nem ao menos olhavam um para o outro. Sara por constrangimento e presumia que ele pelo incomodo de ser esquecido. Que tipo de esposa ela foi? Que tipo de esposa esquecia o marido?Rodrigo, em cada parada no sinal vermelho, observava Sara pelo canto do olho, sempre a encontrando observando curiosa a paisagem a sua volta. A esposa apreciava tudo como uma criança na frente de uma loja de doces.Era a primeira vez que ficavam sozinhos e Rodrigo, o seguro e orgulhoso homem de negócios, não tinha coragem para confessar que sentira falta dela, dos momentos felizes que às vezes tinham. E de que adiantaria? Sara esquecera esses momentos, todos os que passaram juntos. Além disso, ela parecia ter pavor dele. Só lhe tocara o rosto e Sara rejeitara seu toque. Temia que fugisse para bem longe dele se tivesse oportunidade e alternativa.— Tem tantos prédio
Na esperança de recobrar a memória, de manhã, Sara decidiu vistoriar o local em que moraria, afinal, pelo menos quatro anos de sua vida foram passadas naquele local.Começou pelo quarto que ocupava. Espaçoso, com móveis em tons de cinza e marrom, tinha uma cama, que ocupava quase todo o cômodo, de cada lado uma mesa de cabeceira com abajur e na frente um raque baixo com uma televisão enorme. Era bonito, mas estava longe de ser aconchegante, não havia fotos, faltavam cores e personalidade, tudo parecia frio, impessoal e extremamente masculino.Observou que o quarto tinha três portas, lembrava-se da que havia utilizado para entrar no quarto, foi em direção à segunda, abriu e se deparou com um banheiro enorme. Novamente, tudo em tons escuros. Ficou fascinada ao perceber que havia uma banheira - sempre sonhara em ter uma -, mas em seus sonhos sempre era na cor branca e não preta.Curiosa, encaminhou-se para a terceira porta, maravilhando-se ao perceber que se tratava de um closet cheio de
Acomodada em sua casa, Marta terminou de jantar, tomou banho e, após um momento de dúvida, pegou seu celular, acessou a agenda e, quando atenderam, soltou num só fôlego:— Aqui é Marta. As fofocas são verdadeiras, a senhora Montenegro não se lembra de nada dos últimos dez anos.— Muito bem, foi mais rápida do que imaginei para obter o que lhe pedi — elogiou uma voz suave de mulher.— Não foi difícil, a senhora Montenegro parece outra, até me pediu que a chamasse somente de Sara. Se sente incomodada com o sobrenome.— Mesmo? — A mulher do outro lado da linha riu. — Quem diria, a majestosa senhora Montenegro se desfazendo do título.— Gosto mais dessa senhora Montenegro — declarou distraída.— Imagino. Agora tenho que desligar. Venha amanhã receber seu pagamento e me contar mais detalhes.— Sim.Desligou o celular com os pensamentos longe. Queria saber para que as informações que passava serviam. Mesmo não sendo importantes, temia que fossem para prejudicar seus patrões. Não que gostass