Dez Anos

Sara mergulhou em um tranquilo mundo sem sonhos e despertou com um agradável calor em sua mão, junto com caricias na palma, fazendo sua pele se arrepiar a partir daquele ponto.

Abriu os olhos sorrindo, esperando ver seu namorado ao seu lado. Assustou-se e afastou a mão ao ver, em pé ao seu lado, um desconhecido alto, de porte imponente, vestindo blusa social branca, calça risca de giz e paletó do mesmo material.

— Vim o mais rápido que pude — ele disse os olhos cor de carvão analisando Sara de um modo intenso e estranho.

Encolheu-se no leito, levantando o lençol até o pescoço.

Não notando, ou não ligando, para o medo refletido em seus gestos, o homem inclinou-se. Apavorada por perceber que ele planejava beija-la, mesmo com o corpo fraco e mole, em um ato de proteção, Sara espalmou as mãos no tórax do estranho e o emburrou.

— Ainda zangada? — Ele deslizou os dedos pelo cabelo curto, o tom seco evidenciando o desagrado com a atitude dela. — Sara, vamos parar com essa briga estúpida.

— Não sei do que o senhor esta falando. Nem te conheço — revidou assustada com o jeito que ele falava com ela e com a tentativa de beija-la.

Confuso, o homem a encarou fixamente como se quisesse ler seus pensamentos.

Uma pressão no peito de Sara a fez arfar, sua garganta ardia e tinha uma vontade intensa de chorar. Desesperada por ter um estranho em seu quarto, em pânico Sara olhou ansiosa ao redor, identificando Silvia sentada perto da janela.

— Por favor, chame a minha madrinha — pediu apavorada, apontando o homem ao seu lado. — E leve esse senhor com você.

Silvia olhou de um para o outro com olhos arregalados, abria e fechava a boca, mas nada dizia e nem fazia o que lhe foi pedido. Sara estava a ponto de gritar com a enfermeira quando Tatiana entrou no quarto.

— Madrinha... — Sara chamou sentindo-se sem ar e trêmula.

Tatiana foi para perto, examinando-a. Percebendo que Sara olhava apavorada para o homem parado observando-a, pediu:

— Rodrigo, me espere em minha sala.

O estranho titubeou, a expressão fechada fitando Sara. Exasperada com a resistência do homem em fazer o que pediu, Tatiana praticamente o colocou para fora do quarto e, depois de fechar a porta, retornou para o lado de Sara.

— Quem era aquele homem? Ele tentou me beijar.

— Querida, descanse um pouco. Daqui a pouco conversaremos — Tatiana prometeu antes de deixa-la em companhia da enfermeira.

Dessa vez, incomodada com a estranha visita, não conseguiu fazer o que lhe foi pedido. Estava em um hospital e, com exceção de Tatiana, estava sem nenhum de seus conhecidos por perto.

Olhou para as flores, cartões e ursos no quarto, sinal de que tivera visitas.

— Silvia, por favor, pegue aqueles cartões pra mim.

A enfermeira rapidamente pegou todos e levou até ela.

Sara abriu cada um, eram cinco no total. Um era de Laura, sorriu ao lembrar-se da amiga de infância. Estranhou que a assinatura dela e os desejos de melhoras vinham junto ao nome Júlio. O único rapaz que conhecia com esse nome era um colega delas do colégio, por quem Laura era secretamente apaixonada. Estavam juntos, agora? Quanto tempo passou desacordada? O que perdeu nesse tempo?

Inspirou e espirou para conter a aflição que fazia suas mãos tremerem e um frio subir por sua espinha.

Abriu o segundo cartão, não havia assinatura e a mensagem era estranha, sobre ela ter conseguido o palco que sempre desejou.

Os outros dois tinham mensagens genéricas dos próprios cartões com a assinatura de Rodrigo Montenegro. Reconhecendo o nome que Tatiana usara com o estranho, perguntou-se quem seria. Um médico? Amigo de sua mãe? Mas, se assim era, por qual motivo tivera coragem de tentar beija-la?

— Só tem esses? — perguntou para a enfermeira, estranhando não ver cartões assinados por seus amigos do colégio, por sua mãe e nem pelo namorado.

Silvia remexeu entre os vasos e ursos, depois confirmou que eram os únicos.

Afundou a cabeça o travesseiro, respirou fundo e pediu a si mesma calma, logo Tatiana retornaria e perguntaria tudo sobre seu estado, o tal acidente e pediria pra acharem sua mãe. Tinha quem manter a calma até Tatiana voltar com respostas, se exigiu fitando o teto, os dedos batendo impacientes no colchão.

~*~

Andando de um lado para o outro do escritório de Tatiana, Rodrigo Montenegro tinha todos os pensamentos voltados para a esposa.

Quando recebera a notícia que Sara despertara, através da enfermeira que contratou, largou o trabalho e dirigiu para o hospital o mais rápido que lhe era permitido por lei. Encontrava-se ansioso em rever os brilhantes olhos esverdeados e resolver definitivamente os problemas entre eles.

Devido ao que ocorrera antes do acidente, não esperava uma recepção calorosa. Mas o que vira estampado na face dela não fora raiva ou ressentimento, longe disso. Sara parecia ter medo dele e não reconhecê-lo.

Podia ser fingimento. A esposa tinha a péssima mania de transformar tudo em uma tragédia grega. Mas, por qual motivo ela fingiria não conhecê-lo?

A resposta apareceu veloz e na voz furiosa da esposa antes do acidente.

“Te amar é o maior erro da minha vida”.

Aquelas palavras tinham perturbado seus dias e noites, pois se sentia culpado pela constante instabilidade dela. O amor obsessivo da esposa o sufocava, mas jamais desejou vê-la machucada e inconsciente em um leito de hospital.

Ouviu o barulho da maçaneta e observou com ansiedade Tatiana entrar na sala, que ela ocupava como diretora do hospital particular Santana, situado no centro da capital paulista.

— O que Sara têm? — questionou colocando-se na frente da médica.

Mesmo compreendendo a angústia de Rodrigo, afinal, ele tinha grande parte da culpa pelo que ocorrera, Tatiana não gostou do jeito que lhe abordou, como um policial interrogando um criminoso. Se o gênio do Montenegro era ruim o seu era pior, porém decidiu colocar Sara a frente de suas diferenças.

— Farei alguns exames para ter certeza, mas, previamente, creio que está com perda parcial de memória; — Seu tom era profissional e distante, quando por dentro estava preocupada. — É comum após um longo tempo inconsciente, principalmente se levarmos em conta o forte estresse na hora do acidente e o ferimento na cabeça. — "Por sua culpa", pensou em acrescentar, mas se conteve. Esse tipo de acusação não ajudaria à afilhada.

Não simpatizava com Rodrigo. Por causa dele Sara perdera o amor próprio e passara a viver para agradar o marido, mesmo que significasse esquecer que também precisava ser agradada. Duvidava que a afilhada soubesse o que era ser amada de verdade.

— Comum? Como perder a memória pode ser considerado comum?

— Em alguns casos a memória volta em algumas semanas, meses... — A voz profissional falhou fazendo Rodrigo a encarar interrogativo.

Percebeu que havia algo a mais que Tatiana evitava contar.

Toda aquela situação, formada ao ser comunicado que sua esposa saíra em alta velocidade da sua empresa, o deixava nervoso, estressado e, não conseguia mais negar, preocupado.

— Se tem algo a dizer, o faça logo — ordenou, o tom imperativo de um homem acostumado a ser obedecido.

Tatiana sentou em sua poltrona marrom e apontou a cadeira a sua frente, indicando que ele também sentasse. Rodrigo o fez visivelmente irritado.

— Devo prepara-lo para o fato de que pode demorar anos para isso ocorrer.

A informação fez Rodrigo gelar.

— Ela nunca se lembrará de nada?

— Só parte da memória foi apagada, o que aumenta as chances de que logo se recorde de tudo ou boa parte do que esqueceu.

Algo lhe dizia que não iria gostar da resposta, mesmo assim perguntou:

— O quanto ela esqueceu?

— Dos últimos dez anos.

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