O corredor a sua frente era longo, o piso, as paredes e o teto eram brancos cobertos por douradas inscrições pequeninas. Sara tentou ler o que diziam, mas não conseguia, pareciam desbotar a cada esforço que fazia para compreendê-las.
O local era bem iluminado e havia enormes livros de cada lado, todos com números enormes no meio e o seu nome, Sara Almeida, em brilhantes letras de ouro. Sentindo-se minúscula perto dos grandes encadernados, Sara caminhou devagar.
Ao parar na frente de um livro, ele se abria. Folhas viravam lentamente, letras formavam palavras, frases e se mesclavam até que, como mágica, Sara era transportada para alguma cena referente ao número do livro.
No volume sete, viu-se pequena olhando para sua mãe falando no telefone. Sua mini versão admirou a roupa imaculadamente branca - uniforme de trabalho no hospital geral de Cezário -, assim como o cabelo castanho claro preso em um coque.
O rosto de Minerva Almeida estava vermelho, os olhos furiosos e a voz irritadiça aumentava a cada segundo da ligação. Preocupada, a pequena Sara caminhou até a mãe, que a repeliu sem nem mesmo olhar, sem reparar que a rejeição encheu os olhos verdes da filha com lágrimas.
A pequena Sara correu, passando pela Sara observadora, entrando no quarto, se jogando na cama e dando vazão ao choro. Minerva encerrou a ligação minutos depois e chamou a filha. Sua versão menor engoliu o choro e foi até a mãe esperando um abraço, uma demonstração de afeto. No entanto, sempre apressada, Minerva a levou até a vizinha, para quem pediu que olhasse a filha enquanto trabalhava.
Amargando a recordação da constante falta de carinho da mãe, a Sara observadora continuou a andar, vendo outros momentos tristes, felizes, de bobeira, de silêncio de sua vida em cada volume.
No de numeração doze, observou sua versão adolescente caminhar de mãos dadas com seu primeiro namorado. Sorriam, o sol iluminando sua face, seu corpo aproximando-se do rapaz. Podia sentir, como se eclipsando as reações da lembrança, o rosto dolorido de tanto sorrir.
No quinze estava no quarto do segundo namorado. Mãos afobadas, roupas sendo jogadas longe, uma tarde de descobertas na casa dele após, inconsequentemente, faltarem à aula.
No dezesseis chorava copiosamente. Sua mãe a reprovava, dizia que era fraca, emotiva, que devia se dar o valor.
O seguinte, de número dezessete, não se abriu, não folheou e nem mostrou alguma cena para a Sara observadora. Curiosa, caminhou até ele e o abriu com as próprias mãos, tendo que colocar toda sua força devido o tamanho descomunal da capa e das folhas. Na primeira folha, no lugar de serem douradas, as letras eram acinzentadas, fixas, mas que mesmo assim Sara não conseguia ler. Virou mais e mais folhas, mas todas estavam do mesmo jeito. Não havia lembranças, não conseguia ler o que havia escrito e quando forçava os olhos e a mente para compreender algo, as letras sumiam e só restavam páginas e mais páginas em branco.
Seguiu para os outros volumes, sentindo uma sensação opressora no peito, um sentimento de erro, de falta, e, assim como o dezesseis, os demais a partir dele estavam do mesmo jeito. Letras acinzentadas que sumiam quando se forçava a lê-los. Reparou que os números e o nome na capa também tinham coloração diferente das anteriores, estavam acinzentados, quase apagados.
Angustiada, virando mais e mais páginas do volume vinte, cujas palavras desapareciam assim que as olhava, assustou-se quando as luzes piscaram e um eco aterrorizante reverberou pelo corredor.
— Dentro destas páginas só há palavras que doem e sangram.
Foi quando a viu, em pé em frente ao último volume no corredor, sua mão pousada no meio do grande número vinte e sete. Aquele volume, diferente dos demais, tinha a numeração em vermelho e o sobrenome estava apagado. Não conseguia ver o rosto da mulher, tanto por causa da distância quanto por ela estar voltada para o número. Mas conseguia perceber que usava um vestido vermelho na altura dos joelhos, os pés descalços, o cabelo uma massa de desordenados fios acobreados.
— O livro do amor é como um jogo cruel. Você o ganha apenas para perder. — A voz triste e chorosa ecoava pelos corredores, causando um frio em sua espinha. — Perco meu tempo vendo os dias passarem, me sentindo insignificante, esperando que pense em mim, que diga que me ama.
A mulher caiu de joelhos no chão, às mãos no rosto, lágrimas pingando em seu vestido.
O choro aumentou de intensidade, perturbando Sara. Quis se aproximar, mas sentiu as pernas pesadas e os pés presos no chão. Abriu a boca, querendo consolar, perguntar o que abatia a mulher de vermelho, mas nenhuma palavra passava por sua garganta.
A mulher ergueu os olhos, dois brilhantes círculos verdes, voltados para Sara, a face retorcida de dor e ódio flamejante.
— Se eu pudesse, passaria uma borracha nos últimos anos e te apagaria para sempre do meu coração.
Aquelas palavras atingiram Sara como socos por todo seu corpo, empurrando-a para trás com força descomunal, golpeando violentamente sua cabeça. Sua vista escureceu e tudo ao redor sumiu, mas ainda conseguia ouvir o choro doloroso da mulher de vermelho misturado com um ruído agudo.
~*~
Um ruído irritante e insistente se infiltrou em seus ouvidos, alastrando-se, latejante e dolorosamente, da raiz dos cabelos até às sobrancelhas. Forçou as pálpebras a se abrirem. Uma fresta foi o suficiente para gemer, a luz aumentando a dor por cada centímetro de sua cabeça, e fazê-la cerrar os olhos com um gemido trêmulo.
Confusa, com uma sensação pastosa na língua, braços e pernas pesando como chumbo, Sara insistiu e, piscando para se adaptar a claridade, conseguiu ver o que a cercava. E não reconheceu nada.
Tentou se mover, mas, além de pesarem, seus braços tinham fios, agulhas, gazes e tanto aparato que teve medo do que aconteceria se os desconecta-se sem ajuda.
— Onde estou...? — perguntou, a voz saindo esganiçada, a garganta seca e cortante.
A falta de resposta a desesperou, assim como as dores por todo seu corpo.
Para o alívio de Sara, uma mulher toda de branco apareceu em seu campo de visão ainda embaçada. Assim como sua vista, sua audição estava prejudicava, pois ela movia os lábios, mas nada parecia compreensível para a mente confusa de Sara.— Onde estou? — repetiu a pergunta com esforço, a garganta seca e dolorida dificultando a fala.No lugar de fazer Sara compreender o que falava, a mulher se afastou.O barulho da porta fechando retumbou dolorosamente nos tímpanos de Sara, que se encolheu na cama, no rosto uma máscara de dor.Fechou os olhos e inspirou profundamente, tentando acalmar o coração e não surtar. Erguei a mão devagar, levando-a ao rosto ao notar que havia algo em seu nariz. Mais tubos. Continuou a explorar e seus dedos encontraram um pano em volta de sua cabeça. Bandagens, supôs, concluindo que as pontadas na cabeça se deviam a alguma ferida ali.Piscou para aclarar a vista e a mente, forçando-se a captar os objetos. Aos poucos focalizou as coisas ao redor. Estava em um quart
Sara mergulhou em um tranquilo mundo sem sonhos e despertou com um agradável calor em sua mão, junto com caricias na palma, fazendo sua pele se arrepiar a partir daquele ponto.Abriu os olhos sorrindo, esperando ver seu namorado ao seu lado. Assustou-se e afastou a mão ao ver, em pé ao seu lado, um desconhecido alto, de porte imponente, vestindo blusa social branca, calça risca de giz e paletó do mesmo material.— Vim o mais rápido que pude — ele disse os olhos cor de carvão analisando Sara de um modo intenso e estranho.Encolheu-se no leito, levantando o lençol até o pescoço.Não notando, ou não ligando, para o medo refletido em seus gestos, o homem inclinou-se. Apavorada por perceber que ele planejava beija-la, mesmo com o corpo fraco e mole, em um ato de proteção, Sara espalmou as mãos no tórax do estranho e o emburrou.— Ainda zangada? — Ele deslizou os dedos pelo cabelo curto, o tom seco evidenciando o desagrado com a atitude dela. — Sara, vamos parar com essa briga estúpida.— N
A resposta não agradou a Rodrigo. Há dez anos, ele e seu irmão Izaque, se mudaram da capital de São Paulo para uma pequena cidade do interior do estado chamada Cezário. Lá conheceu várias pessoas, entre elas, Sara, sua esposa.— Dez anos? Ela não se lembra de mim?!"Bela conclusão, Montenegro", pensou Tatiana, gostando de ver a expressão normalmente indiferente ficar surpresa, confusa e até um pouco apavorada.— Temos de ter esperanças — aconselhou.Rodrigo se levantou furioso e bateu o punho fechado na mesa de Tatiana.— Esperanças? Estou tendo essa merda de esperança há dias. Estou farto de ouvir todos me dizendo para ter esperanças.A diretora do hospital também se levantou irada. Não era obrigada a aturar os ataques daquele esnobe que se achava o dono do mundo, nem ao menos gostava dele, então não precisava ser gentil.— Compreendo seu nervosismo, mas se descontrolar não ajuda em nada — praticamente gritou. — Sara vai precisar de nós, todos nós, quando se der conta do que está aco
O que se faz quando o mundo cai sobre nossa cabeça? Essa pergunta povoava a mente de Sara na última semana.Observando seu reflexo no espelho, passou a mão de leve sobre a cicatriz no alto de sua cabeça, a única prova do acidente que teve um mês atrás. Do qual não lembrava por mais que se esforçasse. Assim como os últimos dez anos...Respirou fundo e reparou nas sutis mudanças em seu rosto e corpo. Seu rosto estava mais fino, maduro e, provavelmente por causa de seu estado atual, melancólico. Suas formas também mudaram. Sofreara tanto por ser a única em seu grupo de amigas a ter seios quase inexistentes, agora conseguia percebê-los mesmo com a roupa larga e horrorosa do hospital. Estava mais parecida com uma mulher adulta."Lógico, Sara, você tem vinte sete anos, queria continuar com o corpo de uma menininha?". Fez uma careta diante das palavras vindas de seu interior. Podia ser uma mulher madura por fora, mas por dentro era outra história. Sentia-se como uma criança perdida diante do
Os dias passavam devagar para Rodrigo Montenegro. Dividia-se entre o trabalho, o hospital e a solidão de seu apartamento. Em nenhum desses lugares se sentia bem. No trabalho pensava na esposa; no hospital evitava aproximar-se dela, que o encarava com medo; e no apartamento... O lugar não era o mesmo sem ela.Durante as noites solitárias, passou e repassou a discussão que tiveram no dia do acidente, o que s aumentara sua culpa e a raiva por ter sido tão duro com a esposa. Se pudesse voltar no tempo...— Senhor Montenegro?Despertou de seus devaneios e olhou irritado para o funcionário que se atrevera a lhe chamar a atenção. O pobre homem encolheu-se em seu lugar. Rodrigo passou o olhar para os demais funcionários, sentados ao redor da grande mesa de reunião de sua empresa. Todos repetiram a reação do primeiro.Era temido por ter gênio difícil e não gostar de ser interrompido de forma alguma, mas naquele momento o errado era ele. Estava numa reunião e sua atenção estava em outro lugar.
Duas semanas depois de exames e testes, sem retorno de nenhuma lembrança, Sara recebeu alta do hospital. Não sabia se ficava feliz, por deixar aquele ambiente tão frio e impessoal, ou apavorada, por ter como próximo destino morar com seu recém-descoberto marido.No banheiro do hospital, aprontando-se para partir, apoiou-se na pia do banheiro e deslizou os dedos pela pequena cicatriz no topo da cabeça, observando seu reflexo. Tornara-se habito avaliar a atual imagem com a que tinha em suas lembranças. Procurava em si mesma respostas para resolver sua situação, sem nunca obtê-las.Tinha medo de sair daquele quarto de hospital e ficar sozinha com o "marido", trancada em um apartamento que o mesmo dizia ser o lar dos dois, mas do qual ela não lembrava."Seu marido é um gato, se joga mulher". Fez uma careta para o rumo que seus pensamentos tomavam. De onde saia tanto ideia besta? Logo em seguida admitiu que a culpa era da beleza de Rodrigo Montenegro. O homem podia ser caladão e emburrado
O restante do percurso foi feito em total silêncio. Na verdade, desde que acordou no hospital não tinham trocado mais que meia dúzia de palavras, nem ao menos olhavam um para o outro. Sara por constrangimento e presumia que ele pelo incomodo de ser esquecido. Que tipo de esposa ela foi? Que tipo de esposa esquecia o marido?Rodrigo, em cada parada no sinal vermelho, observava Sara pelo canto do olho, sempre a encontrando observando curiosa a paisagem a sua volta. A esposa apreciava tudo como uma criança na frente de uma loja de doces.Era a primeira vez que ficavam sozinhos e Rodrigo, o seguro e orgulhoso homem de negócios, não tinha coragem para confessar que sentira falta dela, dos momentos felizes que às vezes tinham. E de que adiantaria? Sara esquecera esses momentos, todos os que passaram juntos. Além disso, ela parecia ter pavor dele. Só lhe tocara o rosto e Sara rejeitara seu toque. Temia que fugisse para bem longe dele se tivesse oportunidade e alternativa.— Tem tantos prédio
Na esperança de recobrar a memória, de manhã, Sara decidiu vistoriar o local em que moraria, afinal, pelo menos quatro anos de sua vida foram passadas naquele local.Começou pelo quarto que ocupava. Espaçoso, com móveis em tons de cinza e marrom, tinha uma cama, que ocupava quase todo o cômodo, de cada lado uma mesa de cabeceira com abajur e na frente um raque baixo com uma televisão enorme. Era bonito, mas estava longe de ser aconchegante, não havia fotos, faltavam cores e personalidade, tudo parecia frio, impessoal e extremamente masculino.Observou que o quarto tinha três portas, lembrava-se da que havia utilizado para entrar no quarto, foi em direção à segunda, abriu e se deparou com um banheiro enorme. Novamente, tudo em tons escuros. Ficou fascinada ao perceber que havia uma banheira - sempre sonhara em ter uma -, mas em seus sonhos sempre era na cor branca e não preta.Curiosa, encaminhou-se para a terceira porta, maravilhando-se ao perceber que se tratava de um closet cheio de