Capítulo II
Os Scucciatto
Giuseppe Scucciatto acorda em sobressalto com os altos gemidos e continuados pedidos da mama para buscar dona Rita. Grávida de nove meses sente que já está na hora da chegada do bambino, ou bambina nascer. É passado da meia noite e a madrugada se instala no sítio do casal na cidade de Enna, bem no coração da Sicília. O inverno castiga toda a região, obrigando o futuro pai a bem se agasalhar com um sobretudo preto em cima do pijama de grossa flanela. Na cabeça protegeu-se com um gorro também preto e calçou as botas sem as meias. Saiu do quarto rumo á sala e bateu com a cabeça no candeeiro de querosene, fato que o fez lembrar-se de acendê-lo, provocando risos na mama em meio aos gemidos.
Batendo os dentes de frio, Giuseppe atrelou a velha e preguiçosa mula na carroça e logo passou pela porteira, rumo à casa de dona Rita, sob o olhar meio indignado do Rex, um vira lata com quem ele sempre brincava ao acordar. Não habituado ao movimento pela madrugada e nem pela claridade do candeeiro aceso na sala, o cão latia sem parar irritando a mama.
Foram exatos quinze minutos até a casa de dona Rita. Apeou, passou pela varanda sem notar a beleza das flores de inverno que a mulher caprichosamente cultivava e bateu insistentemente à porta, parando somente depois que esta se abriu. Já vestida e com uma maleta na mão, com ar de quem conhecia da matéria e sabia o motivo da visita fora de hora, foi logo dizendo:
- Calma seu Giuseppe. Eu já estava esperando por isso e estou pronta. Faça essa velha mula andar depressa e vá me falando como está a mama.
Dona Rita era pessoa muito conhecida e querida em toda a região. Beirando aos sessenta anos, nunca se casou, apesar de bonita e charmosa na juventude. Herdou da mãe a nobre profissão de parteira e era a responsável pela maioria dos nascimentos naquele lugar. Decidida e mandona, adentrou ao quarto do casal e trancou a porta, empurrando o indignado Giuseppe para a sala. Ele temeroso em contrariá-la, aceitou a condição de impotência perante o fato e acomodou-se numa cadeira de balanço presenteada pelo finado pai.
Tendo Rex agora calado e deitado aos seus pés, picou fumo, enrolou um cigarro de palha e sorveu um grande gole de vinho tinto e seco, fabricado por ele mesmo conforme receita secular do avô paterno, herdada dos antigos Scucciatto franceses. Também comeu um bom naco de pão caseiro feito pela mama, exatamente como fazia todos os dias, mergulhando-o no copo de vinho. Ergueu-se, acendeu o cigarro de palha na chama do candeeiro e voltou para a balançadeira.
Porém, não chegou sequer a sentar-se. A porta do quarto se abriu e dona Rita, a mandona, deu-lhe severas ordens para ferver água e manter ao alcance das mãos panos limpos. Depois poderia fumar sossegado no frio da varanda, pois ali não era lugar adequado na atual circunstância. Também expulsou o Rex que meio sem graça rosnou e lhe mostrou os dentes, mas obedeceu. De imediato Giuseppe entendeu o recado, largou o cigarro e passou imediatamente a cumprir a ordem da parteira, levando-lhe o solicitado assim que tudo ficou pronto e desta vez bateu educadamente na porta. No quarto a mama tinha contrações cada vez mais frequentes e seus gemidos preocupavam Giuseppe, aumentando-lhe a ansiedade e a angústia pela espera inativa de um mero cumpridor de ordens.
Amanheceu no ocidente, na Itália, na Sicília, em Enna e no sítio. A velha mula, ainda atrelada na carroça, zurrava em sinal de protesto. O galo pos-se a cantar e as galinhas punham seus ovos. As aves faziam suas revoadas e o Rex dormia sobre um tapete na varanda. Os primeiros raios de sol tentavam derreter a geada acumulada na relva durante a noite. Caminharam até as frestas da janela do quarto e o iluminou naturalmente, no exato instante que Giuseppe ouviu o choro do rebento. Duas lágrimas lhe escorreram pela face com a barba ainda por fazer e se acomodaram na gola do sobretudo. Agradeceu a Deus e sem cerimônias, tampouco licença da parteira, adentrou ao quarto. Instintivamente carregava consigo mais chaleiras com água quente e fria e panos limpos, logo utilizados pela dona Rita no trato ao recém-nascido. Giuseppe ajudava cuidando da esposa e algum tempo depois pode segurar o filho, limpo e bem aquecido no enxoval feito pela mãe.
Era impossível descrever a expressão facial do pai que mudava a todo instante. Ele não sabia se ria, se chorava, dava cambalhotas ou rezava. Mas na verdade ele se pos na cama ao lado da mama com o filho no colo. Cerrou os olhos e parecia dormir, rezar ou sonhar, até que interrompido foi por dona Rita:
- Senhor Giuseppe. O bambino está bem e quer mamar. Já é tarde e está na hora de me levar de volta.
Foi então que ele se deu conta de não ter desatrelado a mula, nem alimentado às galinhas e tampouco ordenhado a Mimosa. Sob o mesmo olhar de protesto da mula, rapidamente levou dona Rita e mais rápido ainda voltou para cumprir as tarefas do dia. Na pressa, esqueceu de amarrar o rabo da vaca, o que lhe valeu uma grande rabada quase o derrubando do banquinho. Riu desse fato e agradou o animal agradecendo pelo leite. Sabia que de agora em diante este lhe seria muito útil.
Giuseppe Scucciatto, contrariando os ensinamentos do pai bastante religioso, nunca se mostrou muito devotado, apesar de muito aprender sobre os ensinamentos da igreja. Acreditava em Deus e nos santos. Por isso sabia que aquele treze de dezembro de mil oitocentos e noventa e seis, dia do nascimento do filho, era também dia de Santa Luzia, a protetora dos olhos. O instinto paternal lhe dizia que um dia viria daquele bambino algo de muito bom. Algo ou alguém que poderia fazer o mundo olhar muito além das estrelas.
No dia seguinte, logo após os afazeres do sítio, o jovem pai Scucciatto novamente atrelou a carroça e saiu pelas ruas de Enna noticiando a chegada do filho. Encontrou Pietro por quem foi parabenizado. Mais à frente Nereu, Jorge, Matilde, Renzo e uma infinidade de outros conhecidos e aparentados. De todos recebia com euforia os cumprimentos e as promessas de visitas. Dos mais íntimos ouvia também, e com muito bom humor, certas chacotas do tipo: tomara que ele se pareça com a mãe porque você é feio pra burro; até que enfim tem alguém inteligente na sua casa. E muitas outras mais.
Exatamente após uma semana do ocorrido, Giuseppe, tendo como testemunhas Matilde e dona Rita, promoveu no pequeno cartório de Enna, o assentamento do menino Mário Scucciatto, filho de Giuseppe Scucciatto e Filomena Scucciatto.
Mário Scucciatto crescia e se desenvolvia num ambiente alegre e feliz. Os simplórios pais agricultores lhes ensinava os segredos da terra e tudo que dela se poderia tirar. Alheios aos problemas que se desenvolviam em Roma e tampouco na capital da província, Palermo, muito mais próxima de Enna do que Roma limitavam-se ao cultivo e aos estudos do menino que alcançava a idade escolar. Eram poucas as escolas que se podia dispor e também pouca a quantidade de educadores habilitados, o que fazia Giuseppe e a mama andarem por quase toda Enna e até mesmo em cidades vizinhas na constante busca por uma melhor educação para o filho.
Num desses dias, uma sexta-feira, ao deixar a mama em casa no final da tarde, resolveu aceitar o convite do agora compadre Pietro e ir até a taberna que às vezes frequentava no centro da cidade. Poderia rever alguns amigos, prosear e saber o que tinha a dizer Aldo Prueti, tenente do exército italiano e motivo do convite do compadre, filho de Antônio Prueti, outro sitiante de Enna. Mesmo sem ser muito simpático ao velho Antônio Prueti, considerou o fato poder lhe ser positivo na busca pela escola do filho, já que lá se encontraria com muitos conhecidos. Sabendo que a taberna só funcionava após certa hora da noite, para lá se dirigiu a pé.
A taberna Bela Itália era típica da sua época e do lugar que estava. Ponto de encontro dos cidadãos de bem e também de mafiosos vindos de Palermo e de outras partes da velha terra. Quando estes lá chegavam ninguém mais podia frequentá-la, até que se fossem. Mal iluminada com poucos candeeiros, mesas e cadeiras rústicas, muito queijo e salame pendurado nas paredes, tonéis e garrafões de vinho de diversas qualidades e procedências espalhados pelo chão de terra batida, lhe emprestavam uma graça atípica, mas muito agradável.
Nico Renzalo, proprietário da taberna que bem conhecia os Scucciatto de longa data, logo lhe serviu uma botija de vinho tinto seco com tiragosto à base de queijo colonial e salame. Tirou um dedo de prosa e foi servir a outros fregueses que chegavam. Muitos desses se acomodaram junto a Giuseppe e entre todos, a conversa ia adquirindo um ar de suspense, curiosidade e mistério. O que será que o soldado tem a nos dizer? Era esta a pergunta e o pensamento comum.
De fato, pouco passado das oito horas da noite, o senhor Renzalo de sobre um caixote de madeira que antes serviu para o transporte de queijos, anunciou a chegada de tão aguardada personagem dizendo:
- Senhores. Peço um pouco de atenção. Já está aqui o filho do senhor Antônio Prueti, o tenente Aldo Prueti. Ele afirma que tem coisas muito sérias e importantes para nos dizer. Vamos ouvi-lo.
Trajando um uniforme verde-oliva dos carabinieri, gola e quepe vermelhos, brilhantes botas marrons de cano alto e uma potente Mauser quarenta e cinco de procedência alemã na cintura, o todo poderoso tenente, ao lado do pai, entrou e cumprimentou um a um dos frequentadores. Seu gesto foi logo notado por Giuseppe, comentando com os parceiros da mesa:
- Puxa! O rapaz é educado. Bem diferente do pai dele.
Terminado os cumprimentos, Aldo Prueti ocupou o mesmo caixote em que estava o senhor Renzalo e passou a dissertar:
- Senhores. Não lhes trago boas notícias. Vocês que moram aqui, quase no fim do mundo, não recebem muitas notícias da capital, mas o país está por incendiar-se. A Alemanha e a Itália, muito prejudicadas que foram nos séculos passados por coroas e reinados vizinhos sofre agora terríveis consequências. O povo está sem emprego, à fome ronda os nossos lares, não temos mais nenhuma qualidade de vida, a mendicância cresce em ritmo assustador assim como os crimes e os roubos. Nosso povo está em debandada geral para novos países da América do Norte e do Sul, em especial, para os Estados Unidos e para o Brasil. Os Estados Unidos oferecem ao nosso povo empregos, que na verdade não passa de subempregos. Os nossos vão para lá para fazer o serviço que os americanos não querem. No Brasil, os italianos apenas substituem os escravos por causa da recente abolição. São poucos os que conseguem uma vida melhor em qualquer desses países e nos Estados Unidos a máfia lá já se infiltrou.
O alto-comando das forças armadas italianas prevê para muito em breve a possibilidade de uma grande guerra, envolvendo vários países da Europa, uns contra os outros. França e Inglaterra tentam nos dominar e nos delegam pequenos territórios sem valor na partilha da África. Eles nos classificam de subraça e a Alemanha sofre a concorrência desleal das potências européias na corrida armamentista. É provável que Alemanha e Itália se unam contra as forças inimigas.
- E quando isso vai acontecer, Aldo? Perguntou Pietro.
- Segundo o alto-comando, em menos de uma década, senhor Pietro.
- Por que você vem nos dizer tudo isso Aldo? De que forma isso, se acontecer, pode nos atingir? Perguntou Giuseppe.
- Senhor Giuseppe. Como todos que aqui estão, eu também sou de Enna. Aqui tenho meus amigos, meu pai, minha mãe e a minha irmã caçula Maria. E como todos já sabem, a Sicília representa uma pedra na bota da Itália. Se entrarmos em guerra, esta parte desse país vai ser ainda mais esquecida, faltará comida, trabalho e sumirão aqueles que hoje compram seus produtos. Isso eu não quero que aconteça e por ser um graduado membro do exército, considerei ser meu dever avisá-los. Não quero vê-los sofrer e nem caírem nas mãos da máfia de Palermo.
Fez-se um silêncio total que durou por alguns minutos, até que o senhor Renzalo o quebrou.
- E o que devemos fazer?
- Rezar e trabalhar duro senhor Renzalo. Os mais jovens deverão se alistar nas forças armadas e os outros devem produzir mais e mais. Essa produção deverá ser diversificada e entre vocês deverá ser praticado o escambo das mercadorias para que nada falte a ninguém. Devem se organizar em grupos de trabalho e em cada casa construir um local adequado para a estocagem das mercadorias, principalmente de comida.
Após o discurso Aldo desceu do caixote e misturou-se aos frequentadores junto com o orgulhoso pai, entregando-se de vez aos prazeres do vinho, salame, pão e queijo. Giuseppe, com o semblante carregado levantou-se e caminhou até o jovem tenente apertando-lhe a mão em agradecimento. Com um aceno geral despediu-se dos outros e rumou para casa. Não foi ele o primeiro a chegar à taberna, mas foi o primeiro a sair.
Caminhando lentamente o jovem pai levou mais tempo da taberna para casa do que havia levado em sentido contrário. Pensava nas palavras do soldado e na idade do filho Mário. Era bastante possível que ele tivesse de enfrentar uma guerra, caso ela acontecesse mesmo. Será que o soldado tem mesmo razão? Afinal os Prueti são um tanto quanto orgulhosos e fanfarrões e ele pode estar querendo apenas mostrar superioridade. Mas e se não for? E se a guerra de fato levar o meu bambino? O quê fazer meu Deus? Se tivesse dinheiro mudava com ele e a mama agora mesmo lá pro outro mundo.
Entre os pensamentos que vinham, iam e se misturavam, alguns o deixavam triste e apreensivo, outros até mesmo o alegravam por parecerem dar uma suposta solução para o problema. Chegando ao lar estatelou-se na balançadeira. Não percebeu a presença da mulher sentada no canto da sala a sua espera e nem o candeeiro a querosene aceso até àquela hora. Dirigiu-se ao quarto e olhou o filho dormindo a sono solto. Beijou-o na testa e prostrou-se ao lado da cama em choro e soluços.
Calada, em pé na porta do quarto, apoiada no batente da porta, a mama a tudo assistia. Por longos minutos ali permaneceu tentando adivinhar o motivo de tanto sofrimento expresso pelo marido. Ele não tinha o vício do álcool, portanto, não estava bêbado. Também nunca havia retornado tão tarde da noite nas vezes anteriores que foi à taberna. Giuseppe sempre foi uma pessoa alegre, bondosa, divertida e muito controlada. Por mais que buscasse na memória não conseguia se lembrar de uma única vez que o tivesse visto naquele estado. Com a mão direita sobre o ombro esquerdo do marido ajoelhado aos pés da cama perguntou:
- Que se passa, papa?
- Tristes notícias que ouvi na taberna.
- Alguém morreu? Não vamos ter boa colheita este ano? O quê é?
Giuseppe Scucciatto ergueu-se, enxugou com as mãos o rosto molhado pelas lágrimas, abraçou a esposa e a conduziu até uma namoradeira de carvalho na sala. Passou o resto da noite dissertando a ela todo o acontecido, inclusive seus próprios pensamentos. Ela a tudo ouvia calada, apenas um “meu Deus” de espanto conseguia às vezes pronunciar. Ao final do relato arriscou uma pergunta:
- E o quê nós vamos fazer, papa?
- Vamos seguir a orientação do Aldo. Vamos trabalhar duro e vender o máximo que pudermos. Também vamos estocar para nós mesmos. Mas vamos guardar todo o dinheiro que pudermos. Eu não vou deixar o Mario ir pra guerra. Ele poderá precisar desse dinheiro. Acho que não vou poder lhe comprar aquele vestido novo que tinha prometido. Com isso recebeu um largo sorriso e um forte abraço da mama, que a tudo compreendeu e assentiu.
Anos mais se passaram e os Scucciatto trabalhavam duro, cumprindo a vontade do patriarca. O já alfabetizado Mário Scucciatto estava por atingir a maioridade. Inteligente, esperto e com enorme vontade pelo conhecimento e saber, não se conformava em ver os pais numa luta insana, juntando dinheiro e comida para enfrentar uma guerra que não era deles, cujos boatos já atingiam a Sicília, Palermo e Enna. Os ensinamentos que recebeu do colégio Santo Agostinho o faziam refletir e muito pensar no porque de ter de atirar em seu semelhante pela conquista de um nada, por pura maldade política. Resolveu que tiraria os pais daquela rotina desgastante e sobre isso falou a eles durante o jantar de uma sexta-feira;
- Papa. Eu quero ir para a América.
Um profundo silêncio reinou naquele ambiente. Podia-se ouvir ao longe o trinado dos pássaros e todos os sons que fazem parte de um ambiente campal. O tilintar do talher que a mama deixou cair sobre a mesa parecia ecoar por todo o sítio. O velho Scucciatto limpou a boca num guardanapo de pano feito e bordado pela mama e olhou fundo nos olhos do filho quebrando o silêncio;
- Por que Mário? Por quê quer ir embora?
- Não é por causa de vocês. Eu só tenho de agradecer tudo o que já fizeram por mim. Sou um dos poucos jovens da cidade que é alfabetizado. Apesar do trabalho, tenho uma vida boa e uma família maravilhosa. E é por causa dessa família que eu quero ir. Vou buscar outros lugares. Lugares onde não tenho que viver amedrontado por guerras e para lá levar vocês, antes que morram de tanto trabalhar.
- De onde você tirou essas idéias?
- O senhor está se esquecendo que eu sei ler, papa? Tenho lido muito no colégio sobre a possibilidade da Itália entrar em guerra. E a Maria também me fala muito sobre as notícias que o irmão dela manda de Roma.
- A Maria Prueti?
- É. Ela mesma.
- Ela é filha do Antônio Prueti, aquele farabuti.
- É sim. Mas pra mim isso não importa.
- Você gosta dela?
- A gente se vê e se fala bastante.
- Eu sei disso. Já vi muitas vezes. Mas nunca falei pro seu pai. Ele não gosta muito do senhor Antônio.
- Onde a senhora me viu mãe?
- Na saída da escola você sempre se desviava até a casa dela. Iam à sorveteria do Spinosa, depois na Praça de São Pedro e por outros lugares...
- Estava me seguindo, mãe?
- Não. Só vigiando.
- É Mário. As mulheres são assim mesmo. Quando a gente pensa que já sabe de tudo, lá vêm elas com mais novidades.
- E quanto a minha ida? O que acham?
- Filho. Quando eu soube da possibilidade do nosso país entrar em guerra, nós resolvemos que jamais deixaríamos você participar dela. E é por isso que nós trabalhamos tanto. Para que você, quando quisesse e chegasse à hora, pudesse fazer vida em outro lugar. Mas nunca imaginamos que você pensasse em nos tirar daqui e nos dar uma vida menos rude. Seu coração é do tamanho do muito, o que nos deixa cheios de orgulho. Tenho certeza que vai conseguir tudo o que planeja. Eu e sua mãe vamos sentir muitas saudades suas, mas como você disse, um dia nos reuniremos novamente num lugar seguro, próspero e feliz.
- Obrigado, pai, obrigado mãe. Nunca vou me esquecer de vocês. Vou trabalhar muito para que antes que possam imaginar, já estejam comigo no novo mundo. Vou para os Estados Unidos e quando voltar para buscar vocês vou levar também a Maria.
- E ela sabe disso?
- Sabe sim, nós já conversamos a esse respeito. Mas a família dela não pode saber de nada. Eles são muito conservadores.
- É. Vocês vão sim. Mas agora vá dormir que está muito tarde. Boa noite.
- Tchau pai, tchau mãe.
- Durma em paz meu filho. Que Papai do céu te proteja e te guarde e cuide bem de você.
Esta última frase da mama fez Giuseppe sorrir e comentar:
- Mama. Você diz essa frase pra ele desde o dia que ele nasceu. Agora já é um homem e você ainda lhe diz; “papai do céu”.
- Para mim ele vai ser sempre o bambino. Vamos dormir.
Capítulo IIIMário ScucciattoMário Scucciatto despediu-se dos pais no cais do porto de Palermo e rumou para a rampa de acesso do vapor Bento I a caminho de Roma. Ouvia os murmurinhos de outras pessoas que também embarcavam sobre o assassinato do príncipe do império Austro-Hungaro, Ferdinando e como isso poderia afetar a vida dos italianos. Com passos firmes adentrou na embarcação e ouviu o silvo prolongado anunciando a partida imediata. Vagarosamente o navio foi se afastando, a linha do horizonte já cobria o cais do porto de Palermo e Mário não podia mais ver a figura dos pais lhe acenando com lenços brancos em sinal de adeus, ou de até breve, ou ainda, de que Deus lhe acompanhe. O já desgastado “que Papai do céu cuide bem de você e que sempre lhe acompanhe” fazia parte dos pensamentos da mam
Capítulo IVOs Scucciatto no BrasilA experiência vivida como grumete no vapor Il Mondo Romano de Mário Scucciatto anos atrás fazia brilhar os olhos de Maria Prueti. Caminhando pelo convés do navio ele lhe explicava o que era bombordo, estibordo, proa, popa, o trabalho ali realizado pelos marujos, para que servia determinados aparelhos e de como se orientar pelas estrelas. Mostrando-lhe o céu explicava que nesta parte do hemisfério sul logo se poderia ver uma constelação que não aparecia no céu da Europa chamada Cruzeiro do Sul.Iriam aportar na cidade de Santos e sua intenção era seguir para o interior do estado de São Paulo, onde amigos lhe afirmaram ser uma região próspera na agricultura, principalmente na cultura de café. Tinha dólares suficientes para compra
Capítulo VA primeira geraçãoA matriarca dos Scucciatto parecia agora ter acordado de uma enorme hibernação. De repente achou por bem lutar pelo patrimônio quase perdido, mesmo contrariando a última vontade do finado marido. Se conseguisse estaria completando o sonho dele e, com certeza, lá do céu ele lhe agradeceria. Entre trancos e barrancos ela tentava equilibrar suas finanças e o custeio familiar. Contava com a ajuda dos filhos, cada qual realizando as tarefas que lhes cabiam. Eliza e Iolanda trabalhavam na roça colhendo o pouco café que ainda restava para vendê-lo no mercado municipal. Os rapazes, Alduino e Pascoal trabalhavam como operários em fábricas nas cidades vizinhas. Entre estes, Alduino era o que mais se destacava. Tal qual o pai, Alduino Scucciatto era inteligente, trabalhador, perspicaz, teimoso e terrivelmente debochado.
Capítulo VIOs CerviHerminda Cervi lia e relia a carta de Alduino comunicando a baixa do exército. Foi quase três anos de espera e agora, toda eufórica e tagarela repetia constantemente à mãe e às irmãs que em breve estaria casada e queria que todos a visitassem em Santo André, onde moraria com o marido. Seu pequeno sonho não ultrapassava os limites de um lar, filhos, trabalho e muita felicidade. Imaginava-se esperando pelo marido no fim de uma jornada de trabalho, preparando o jantar e cuidando dos filhos no retorno da escola. Indo além, sonhava ver esses filhos devidamente educados e cuidando deles na velhice. Perguntava constantemente ao pai se já havia pensado em se mudar para Santo André, lembrando-o que as coisas por Santo Antônio da Alegria não iam muito bem.E de fato não iam. Com um simples
Capítulo VIIIDo legado de BarduA grande família oriunda do velho descendente de imigrantes italianos se expandia sob a égide do patriarca. Do velho Mário Scucciatto, Alduino trouxe o conhecimento simples do homem do campo e a paixão pela vida. Herdou a inteligência e a força de vontade, a honestidade, o amor e a solidariedade. O espírito guerreiro e aventureiro, o bom humor, a irreverência e o deboche. A dignificação pelo trabalho de qualquer natureza e a responsabilidade pelos seus atos.Do exército veio a ordem, a obediência e a noção de soberania. Pontualidade com os compromissos e a satisfação pelo dever cumprido. O respeito pela vida e pela natureza, assim como pela preservação, manutenção e reparos dos bens a ele confiados. O valor de uma amizade e
Capítulo IXUm pouco mais da vida sem BarduA partir de dezesseis de julho de mil novecentos e noventa e oito a vida mudou bastante para os Scucciatto. A sua casa na avenida Doze de Outubro na vila Assunção estava a dois metros abaixo do nível da rua. José havia construído na frente e ao nível da rua uma garagem, o que fez sobrar abaixo um bom pátio medindo seis por oito metros. Nesse espaço Alduino construiu uma mesa em madeira bastante grande para acomodar toda a família e bancos que a rodeavam. Muitos eventos ali foram realizados. Natais, aniversários, nascimentos, comemorações esportivas e simples reuniões formais de alegres bate-papos e um bom jogo de tômbolas. Mas a luz apagou e a festa acabou. E agora José?Agora, naquela casa antes alegre, Herminda vivia sozinha. Diariamente recebia a visita
Capítulo XJosé ScucciattoJosé contempla o firmamento através da janela de um pequeno apartamento na travessa Apeninos. Estar ali não lhe faz bem, haja vista a recordação dos dias em que lá passou em companhia da mãe. Por entre os edifícios que se estendem à sua frente, vislumbra uma pequena parte do infinito azul do céu, que se expande até aonde a vista não mais alcança. Tão distante quanto ele vai seus pensamentos, suas lembranças, suas alegrias e tristezas.É verão nesta parte do hemisfério sul. Os dias são bem mais longos e ainda ajudados pelo horário especial adotado na estação, aumentando ainda mais seu istmo, teimando em deixá-lo sempre a mostra. A noite luta pelo seu espaço e só o consegue em horário já bem avançado.Logo abaixo da janela, na rua bem em f
Capítulo XIUm novo recomeçoTreze de novembro de dois mil e seis. Com passagem enviada por uma das suas filhas de Santo André na mão e sem nada dizer a Lucrecia, José preparou a mala com seus poucos pertences. Levou apenas roupas, muitas das quais trouxera de Santo André há cinco anos atrás. A pé rumou com a pesada mala até à casa do amigo Rubens, onde deixou seus pertences. Temia que Lucrecia pudesse notar qualquer coisa, pois por enquanto não pretendia dar explicações dos seus atos, haja vista que de nada valeriam mesmo. Mas Marinho notou a falta de uma das malas e até comentou o fato na presença de Lucrecia, que não se manifestou e também não demonstrou ter a menor curiosidade.José tencionava deixar a casa logo após o almoço, tempo em que Marinho estav