Capítulo III


Capítulo III

Mário Scucciatto

Mário Scucciatto despediu-se dos pais no cais do porto de Palermo e rumou para a rampa de acesso do vapor Bento I a caminho de Roma. Ouvia os murmurinhos de outras pessoas que também embarcavam sobre o assassinato do príncipe do império Austro-Hungaro, Ferdinando e como isso poderia afetar a vida dos italianos. Com passos firmes adentrou na embarcação e ouviu o silvo prolongado anunciando a partida imediata. Vagarosamente o navio foi se afastando, a  linha do horizonte já cobria o cais do porto de Palermo e Mário não podia mais ver a figura dos pais lhe acenando com lenços brancos em sinal de adeus, ou de até breve, ou ainda, de que Deus lhe acompanhe. O já desgastado “que Papai do céu cuide bem de você e que sempre lhe acompanhe” fazia parte dos pensamentos da mama. O filho estava a caminho de Roma e de lá seguiria para os Estados Unidos da América. Pensava fortemente na última frase que ele dirigiu aos pais; “eu vou fazer a América”. Em menos de vinte horas o menino aportava na capital. Sem perder tempo, procurou adquirir uma passagem no vapor “Il Mondo Romano”, que partiria em quarenta e oito horas para o novo mundo, para os Estados Unidos da América.

Não contava ele, porém, que o dinheiro lhe dado pelos pais, com parte já gasta na viagem de Palermo a Roma, seria insuficiente para a próxima etapa, mesmo viajando na terceira classe. Em dois dias o navio zarparia e esse era todo o tempo que dispunha para complementar o valor da passagem. Mas Roma estava longe de ser um lugar de oportunidades. Suas ruas e avenidas estavam cheias de soldados fortemente armados, amedrontando a população que das suas casas não saíam e os comerciantes que mantinham suas portas fechadas. Tão impossível era se conseguir algum bico, quanto impossível seria receber alguns trocados por ele, caso conseguisse. Para economizar, nada comeu e dormiu num banco de jardim sob os olhares desconfiados dos soldados e das sentinelas. Foi esse o seu primeiro encontro com a miséria anunciada por Aldo Prueti anos atrás.

Cansado, com fome, sem dinheiro e com sono, seria bastante viável que Mário voltasse para Enna. Ao invés disso, misturou-se aos passageiros que embarcavam e, num descuido do vigia que verificava as passagens, entrou como clandestino no vapor.

Manhã de sol em Roma. Seu porto, projetado por Júlio César séculos atrás, ainda mantinha a aldeia dos pescadores e seus encantos naturais. Mas no porão do navio, onde se mantinha oculto, Mário a nada podia ver. A fome lhe obrigou a praticar um ato famélico que felizmente não foi percebido por ninguém. Vencido pelo sono, deitou-se no chão frio e ali dormiu sem ser incomodado por horas a fio, acordando em alto mar no  início da noite. Perambulando pelos feios corredores da terceira classe, avistou a estibordo uma escada que dava acesso à segunda classe, bem melhor que a terceira e nova escada, desta vez a bombordo, dava acesso ao convés e a primeira classe. Para lá se dirigiu.

Mário tornou-se o centro das atenções naquele espaço do navio. Entre as pessoas que desfilavam elegantes pelo convés, destacava-se aquele menino magro, com roupas simples e puídas, cara de assustado e sem saber para onde se dirigir. Seus modos simples e até rústicos, se comparados aos passageiros daquela classe, fez por chamar a atenção do segurança Giácomo, que o interpelou pedindo-lhe a passagem para averiguação. Sem saber o que fazer ou dizer, Mário calou-se e encostou-se à amurada da proa. Pela experiência de anos de serviço na marinha mercante, o segurança sabia estar diante de um caso de clandestino. Com firmeza disse:

- Você não tem passagem, não é menino?

- Não.

- Como entrou no navio?

- Escondido.

- Tenho que levar você para o capitão. Venha comigo.

Dizer que Mário estava apavorado era pouco. Sem nenhuma resistência seguia a Giácomo até aos aposentos do capitão. Não conseguia imaginar o que poderia lhe acontecer e pensou até mesmo em atirar-se ao mar, mas não sabia nadar. E vendo aquela imensidão de água ainda pensava; mesmo que soubesse...

O velho e experiente comodoro abriu a porta e fez o segurança entrar, deixando Mário esperando do lado de fora. Giácomo o informou da situação e saiu, convidando Mário a entrar. Este assim fez e o comodoro lhe apontou uma cadeira. O italianinho olhou bem para o aposento. Na parede a direita tinha um quadro que soube a posterior tratar-se de uma cópia da Monalisa de Da Vinci. À esquerda uma estante com muitos livros. Na sua frente uma janela que dava para o convés e atrás mais quadros. No centro havia uma mesa de mogno, uma confortável poltrona e duas cadeiras, também confortáveis, que serviam às visitas. Uma porta na parede da direita devia dar acesso ao dormitório do capitão. Sobre a mesa havia muitos papéis e mapas de navegação. Enfim sentou-se e ouviu o capitão.

- Então você é um passageiro clandestino. Sabe o que pode lhe acontecer?

- Não senhor.

- Por que você embarcou como clandestino?

- Meu dinheiro não deu para comprar a passagem. Eu preciso ir para os Estados Unidos. Preciso trabalhar e levar meus pais para lá. Na Itália não se tem oportunidade de se progredir, ainda mais com a guerra que virá.

- Você está desertando?

- Não senhor. Ainda nem me alistei. Estou buscando uma vida melhor para mim e para os meus.

O comodoro ficou longos momentos em silêncio, imerso nos seus pensamentos. Ali estava ele diante de um menino com um ideal de vida fugindo da guerra. E ainda passageiro clandestino. O que deveria fazer nesse caso?  A guerra era iminente e esse decidido menino poderia nela morrer. De repente encontrou uma solução, mas resolveu brincar com Mário.

- Como você se chama?

- Mário.

- Só Mário?

- Mário Scucciatto.

- De onde vem?

- De Enna, na Sicília.

- Sicília. Terra da máfia.

- É sim. Mas eu não tenho nada com isso.

- Se tivesse, Mário, você estaria viajando de primeira classe.

- Mas eu não quero. Meu pai me ensinou que mafiosos não são pessoas boas.

- Seu pai tem razão. Mas eu preciso dar um jeito em você. As leis do mar são tão duras quanto as leis dos mafiosos.

- O que vai fazer comigo senhor?

- Posso jogá-lo no mar em um escaler com alguma comida e água. Com sorte você poderá encontrar terra firme. Também posso prendê-lo e entregá-lo às autoridades americanas que farão o seu repatriamento, depois de prendê-lo por algum tempo. Como vê, sua situação não é nada agradável.

Mário baixou a cabeça e chorou. Nenhuma das alternativas do comodoro lhe satisfazia. Ele queria mesmo era fazer a América e esbarrava na falta de dinheiro. Olhou novamente ao redor da sala e exclamou indignado: - Puxa! Só com um pouquinho do que foi gasto para fazer esta sala eu podia chegar na América. Mas vou ser preso ou jogado no mar, só porque não tenho o maldito dinheiro para comprar uma passagem. Um pouquinho só de dinheiro que mudaria a vida dura dos meus pais. Isso não é justo. Nessa altura interveio o comodoro. Imaginando que o menino pudesse ter uma crise resolveu não mais brincar. Com seriedade disse:

- Mário. Nem tudo que é justo é legal. Imagine um pai que vive sem o filho por culpa da mãe. Não é justo, mas a lei protege sempre a mãe, porque acha que ela é primordial à criança. Isso acontece comigo. E também nem tudo o que é legal é justo. Meu pai morreu numa revolução costarriquenha em mil oitocentos e quarenta e nove. Morreu legalmente pelo disparo de um soldado da força inimiga. É legal, mas nunca justo. Você está se distanciando de uma guerra que virá e eu o admiro. É claro que não vou jogá-lo no mar nem entregá-lo às autoridades americanas. Vamos dar um jeito no seu caso.

O enorme coração de Mário, conforme seu pai havia classificado, teve um misto de arritmia e calmaria. Disparava com a possibilidade de completar a viagem e se acalmava ante o rosto sereno e bondoso que agora podia ver na pessoa do comodoro. Este se dirigiu à porta e chamou o segurança Giácomo, que ali aguardava por novas ordens. Sem rodeios lhe disse:

- Giácomo. Este é o novo grumete Mário. Ensine-lhe o que deve aprender e cuide dos seus serviços.

Mário tentou agradecer, mas o comodoro já havia fechado a porta. Foi Giácomo quem o confortou.

- Não ligue. Ele gostou de você, mas não é pessoa que goste de agradecimentos. A melhor maneira de agradecê-lo é cumprindo bem suas tarefas. O que você sabe fazer?

- Sei cuidar da roça, capinar, tratar animais e cultivar.

- Ora. Nada disso se faz num navio. O que mais você sabe? E a propósito, como se chama?

- Meu nome é Mário Scucciatto. Sou de Enna, na Sicília. Quero ir para os Estados Unidos. Além do que já lhe falei, sei também ler e escrever, mas acho que isso não é importante no navio.

- Você lê e escreve? Por que não disse isso antes? A maioria da tripulação deste barco é analfabeta de pai e mãe. Você vai ser muito útil.

- E o que vou poder fazer?

- Vamos lá.

Giácomo o levou até o almoxarifado e o municiou de lápis e papel. Também lhe forneceu o uniforme da tripulação. Em seguida lhe mostrou o aposento coletivo e o lugar da sua cama. Mário pensou que após três longos dias finalmente poderia dormir numa cama limpa e confortável. Em seguida, acompanhou o segurança até a terceira classe. Novamente pensou; de volta às origens.

Mas seu trabalho na terceira classe era bem mais nobre do que nela estar. Ele deveria listar e endereçar todos os passageiros, visto que muitos deles não o fizeram na guia de viagem por não saberem ler e escrever. Cabia-lhe, portanto, a função de escrevedor daqueles que não podiam fazer. Essa listagem era de suma importância em caso de acidente e até mesmo de possível naufrágio. Giácomo o orientou:

- Você deve escrever nesta lista o nome e o endereço de todos que aqui estão. E olhe que não são poucos. Deve ainda acrescentar o nome e endereço de parentes próximos ou não. Provavelmente vai encontrar mais alguns na mesma situação que você estava.

- E se encontrar o que devo fazer?

Com um sorriso irônico, baixando o tom de voz o segurança respondeu:

- Lembre-se que o capitão não pode empregar a todos, como fez com você. Use o bom senso e a sua inteligência para resolver o problema.

Mário entendeu o recado, mas torcia para não encontrar nenhum outro clandestino. Decidiu que, por via das dúvidas, caso encontrasse não delataria e ainda se disporia em ajudá-lo. Era o enorme coração descrito pelo pai falando alto novamente.

O siciliano, como era chamado a bordo, desenvolvia suas tarefas em tempo recorde e por isso lhe sobrava horas de folga, com as quais atendia vários pedidos de passageiros da primeira classe que lhe rendiam boas gorjetas. Quando não, ele aprendia técnicas de navegação com a tripulação mais experiente. Aprendeu a orientar-se pelas estrelas, pelo sol e pela lua, além de usar um sextante. Em pouco tempo lia com exatidão os mapas náuticos e era admirado pelo comodoro, apesar deste nunca o demonstrar. Para os passageiros ensinava os diversos nós de marinheiro e foi o primeiro a fazer destes um quadro para decoração até hoje usado.

Já perto de alcançar a costa da América do Norte, Mário debruçou-se na amurada da proa. Queria ser o primeiro a avistar a nova terra e não percebeu a chegada silenciosa de Giácomo.

- Olhando para o futuro, siciliano?

- Quero ver como é a América.

- Então vou lhe contar. Eu já morei lá. Por enquanto é uma terra livre de hostilidades. Mas isso não vai ser sempre assim. Aquele povo é bastante patriota e muito senhor de si. Não são capazes de dialogar e um dia vão querer resolver tudo na bala. Se a guerra vier eles vão entrar nela, com toda a certeza. E vão lutar contra nós, os italianos.

- Mas lá tem muitos italianos. Como eles vão ficar se vier à guerra?

- Vão ser discriminados e perseguidos.

- Isso não é nada bom senhor Giácomo.

- Não é não. Por isso trate de arrumar logo um bom emprego e aprender a falar inglês. Não espere por ajuda. Vá até o Centro de Imigração Norte Americana da Europa e peça ajuda no departamento italiano. Eles vão lhe ajudar com a documentação e tentar lhe empregar em alguma coisa. Você leva uma certa vantagem por saber ler e escrever. Se aprender logo a falar inglês pode ser que tenha sucesso. Agora vamos até a cabine do capitão que ele quer falar com você.

Victor Quinália esqueceu um pouco o alto posto no comando do vapor para se tornar um amigo, um pai. Sem mesmo saber da conversa com o segurança, Victor reforçou tudo o que este já havia lhe dito e ofereceu ao jovem grumete um cargo de ordenança na embarcação. Enfeitava o convite com a possibilidade de se conhecer o mundo e de ganhar muito dinheiro. Ser um membro da tripulação do Il Mondo Romano não era para qualquer um, e isto estava agora lhe sendo oferecido. Mas na verdade o capitão estava mesmo preocupado com a possibilidade de um inteligente italiano ficar na mendicância das ruas de Nova York e assim se fazia cada vez mais eloquente. Narrava aventuras vividas, algumas até inventadas, tentando convencer o siciliano a permanecer embarcado. Mas Mário estava decidido. Ia mesmo fazer a América. Sem sucesso, o velho comandante tirou alguns trocados do próprio bolso e os deu a Mário. Abraçou-o e despediu-se:

- Vá com Deus meu filho. Faça mesmo a América e acabe com as guerras, com as hostilidades. Lute sempre contra o mal e nunca desista dos seus ideais. Mas se um dia resolver, saiba que aqui você será sempre bem vindo, pelo menos enquanto eu for o comandante.

Alguns meses depois a guerra se deflagrava na Europa com a união de Inglaterra, França e Rússia, mais tarde com os Estados Unidos, contra a união de Alemanha, Itália e império Austro-Húngaro.

Mário Scucciatto despediu-se de toda a tripulação do vapor Il Mondo Romano e dela recebeu um pequeno embrulho com certa quantidade de dinheiro, em dólares, fruto de uma passagem de chapéu entre amigos. Na rampa de saída do navio lembrou-se dos pais que deixou no porto de Roma lhe acenando com lenços  brancos e da promessa que lhes havia feito. Deu um último aceno aos marinheiros e finalmente pos os pés em terra firme. Estava nos Estados Unidos para fazer a América, frase dita por ele que ficou eternizada em todo o mundo.

A passos largos, com um croqui do lugar feito pelos marujos, encontrou a Central de Imigração Norte Americana da Europa e dirigiu-se para a ala italiana. Lá fez um cadastro prévio, foi orientado para retornar no dia seguinte a fim de se elaborar seu perfil profissional, providenciar a documentação e as chaves de um alojamento que poderia ser usado por trinta dias. Em seguida o dispensaram para que se refizesse da viagem, advertindo-o sobre o retorno no dia seguinte pela manhã. Sem este perfil não seria possível lhe arrumar algum emprego.

E assim Mário fez. Pela primeira hora da manhã estava à espera de atendimento num banco de madeira da Central de Imigração Norte Americana, até que uma funcionária voluntária o atendeu. Levou-o para uma sala reservada, apontou-lhe uma cadeira em frente a uma escrivaninha e passou a entrevistá-lo, anotando tudo numa extensa ficha.

- Seu nome completo.

- Mário Scucciatto.

- De onde vem?

- De Enna, na Sicília.

- Seus pais são vivos?

- Sim.

- Estão com você ou ficaram em Enna?

- Ficaram.

- Qual o nome do pai?

- Giuseppe Scucciatto.

- E da mãe?

- Filomena Maria Scucciatto.

- Você é alfabetizado?

- Sim.

- Tem parentes nos Estados Unidos?

- Não.

- Qual a sua data de nascimento?

- Treze de dezembro de mil oitocentos e noventa e seis.

- O que você fazia na Itália?

- Era lavrador, junto com meus pais.

- Sabe fazer mais alguma coisa?

- Vim no navio como clandestino. O capitão foi muito bom para mim e me deu um emprego para pagar a minha passagem. Aprendi muito sobre navegação e serviços de bordo. Também tenho muita facilidade em trabalhos de reparos e consertos em objetos danificados. Até os passageiros do navio pediam para que eu consertasse ou recuperasse seus pertences danificados. Pagavam-me bem por isso.

- Bem Mário. Isso tudo não é muito para se conseguir trabalho nos Estados Unidos. O país está em franco desenvolvimento. Estão construindo indústrias e precisam de muita mão de obra qualificada. O trabalho na lavoura está sendo mecanizado e por lá já existe até desemprego. Por aqui, pequenos trabalhos como biscateiro não é bem remunerado e nem bem visto pela sociedade. O povo daqui é muito orgulhoso.

- Moça. Eu aprendo depressa. Pode perguntar ao capitão do navio Il Mondo Romano. Ele ainda está ancorado. Me arruma qualquer trabalho e em pouco tempo já estarei sabendo tudo sobre ele. A senhora não vai se arrepender.

Finalmente a voluntária abriu um sorriso exibindo dentes por tratar. Prometeu-lhe fazer todo o possível para empregá-lo e o avisaria no alojamento assim que conseguisse. Mário se deu por satisfeito e passou a caminhar pelas ruas do porto. Avistou seu navio, mas não viu nenhum dos colegas que certamente estavam se divertindo pelas casas de prostituição espalhadas ao longo do cais. Olhou a cidade mirando os enormes arranha-céus que se erguiam do chão. Em frente àquele que seria no futuro o maior edifício do mundo, ainda em construção, perguntava-se como era possível fazer uma casa tão alta. Será que eles querem chegar no céu?

Perambulando aleatoriamente pela cidade Mário passou vários dias. Pode conhecer seus pontos mais pitorescos e até outros patrícios que lá estavam. Mas nenhuma ajuda obtinha e seu dinheiro estava minguando. Era preciso arrumar um emprego o mais depressa possível. Pelo fato de ainda não dominar a língua inglesa, ele os procurava junto aos conterrâneos, sabendo que não poderia depender apenas do suposto sucesso da Central de Imigração. Mas dos italianos ali estabelecidos ouvia apenas promessas. Cansado delas, juntou alguns níqueis, comprou papel e envelope, sentou-se à mesa de um café e escreveu aos pais. Sabia que eles teriam que pedir para alguém ler, mas pelo menos teriam notícias dele. Fechou o envelope lambendo a cola seca da borda e dirigiu-se à agência de correios despachando a missiva.

Mais alguns dias se passaram. Mário já temia por ter que deixar o alojamento cedido por trinta dias, quando foi chamado pela Central de Imigração. Haviam lhe conseguido um emprego com acomodação como aprendiz de sapateiro. Teria uma jornada de trabalho de dez horas e um salário não muito alto, mas suficiente para suprir suas necessidades básicas. O italianinho pulava de alegria. Pensava aqui ter começado o sonho de trazer os pais e novamente lhes escreveu contando com muita eloquência o seu relativo progresso.

De fato Mário progrediu. Em poucos meses dominava a arte na confecção de calçados. O veneziano Sábatto Migliori, dono da sapataria, observava a destreza do patrício e surpreendeu-se quando este lhe apresentou alguns desenhos de novos modelos. Estudou-os, selecionou dois deles e passou a fabricá-los, prometendo recompensar o menino se tivesse boas vendas. Tanto o modelo masculino, assim como o feminino, estourou no mercado e Mário obteve um bom aumento de salário.

Porém, a guerra que eclodia na Europa trouxe sérias consequências à colônia italiana nos Estados Unidos. Este, como atualmente, era simpático à Inglaterra, motivo pelo qual estrangeiros de origem italiana, germânica e húngara eram discriminados e até mesmo perseguidos. Sábatto era um desses. Temerosa, a esposa de origem irlandesa o fez despedir todos os empregados de origem suspeita, a fim de preservarem a empresa que tinham, sustento da família. Assim Mário Scucciatto ficou desempregado e novamente partiu em busca de novo trabalho.

Apesar de agora ter algum tipo de qualificação profissional, ninguém mais na América queria saber de empregar estrangeiros.  A sua origem o desqualificava e de novo o dinheirinho que havia juntado com o salário da sapataria estava se acabando. Começou a ver o sonho de trazer os pais tornar-se um pesadelo e não se atrevia a escrever-lhes. Tinha conhecimento que muitos sicilianos mal intencionados, pertencentes à máfia de Palermo estavam nos Estados Unidos e alguns deles, como o lendário All Capone, já haviam escrito vários capítulos pela história da ilicitude. Por isso temia qualquer ato que o colocasse em contato com a terra natal, inclusive uma carta.

Cansado de andar e um tanto quanto desanimado Mário sentou-se ao meio fio de uma avenida. Baixou a cabeça e a apoiou nos joelhos cruzando os braços pelas pernas. Assim ficou por algum tempo, até que um bêbado que passava pela calçada tropeçou e lhe caiu por cima, derramando-lhe boa parte da garrafa de vinho tinto de má qualidade que trazia na mão. Mário ergueu-se em sobressalto, mas nada fez contra aquele ser que mal podia parar em pé. Entretanto, o cheiro do horrível vinho impregnado na sua roupa lhe deu uma grande idéia.

Em disparada o italianinho rumou até o cômodo que havia alugado no subúrbio de Nova York. Banhou-se, trocou-se e fez as malas. Procurou pelo proprietário, pagou o aluguel e entregou-lhe a chave, recebidas com alívio pelo americano. Rumou para a estação ferroviária e embarcou numa composição com destino a São Francisco. Muito dessa cidade ele ouviu falar, quando das prosas com os amigos amantes de um bom vinho.

Agora dominando relativamente bem à língua inglesa, o rapaz conseguiu alugar um galpão que há muito estava desocupado pertencente a um americano de origem alemã. Trabalhou duro e sozinho na sua recuperação e construiu um alojamento. Equipou-o com tonéis, garrafões, prensas e fez um grande tanque de decantação com madeira de boa qualidade. Em seguida visitou as plantações de uva da cidade, tidas como as melhores das Américas. A receita do bom vinho do bisavô, aperfeiçoada pelo avô e a ele repassada pelo pai lhe renovava a esperança de fazer a América e para cá trazer os entes queridos.

Com ar de quem entendia da matéria, Mário selecionava as qualidades de uvas que pretendia. Queria fazer os melhores vinhos tintos que os americanos jamais tinham provado. E de quebra, teria assim seu próprio negócio, não mais dependendo de empregos. Mas havia um problema. Como pagar pela nobre matéria prima escolhida a dedo ao vinicultor?

O francês René Duboit, naturalizado americano, já era pessoa de avançada idade. Vindo de Paris diretamente para São Francisco, tinha como objetivos a produção e o cultivo de uvas nobres, que atentamente via e acompanhava aquele jovem italiano escolher. Na sua preferência estavam as merlot, cabernet sauvignon, pinot noir, etc. Notava a preocupação em relação ao preço que o rapaz tinha e imaginou que ele não tivesse dinheiro suficiente para a compra. Logo mais o que havia imaginado se materializou, mas aceitou a proposta de Mário em pagá-lo com parte da produção que teria. René esperando há muito tempo por saborear um bom vinho como fazia na França, achou por bem creditar o italiano, mas não sem antes testar o conhecimento que este mostrava ter. Convencido pela argumentação fechou um negócio que se estenderia por longos anos.

Não demorou muito para que a primeira safra de vinhos nobres “by Scucciatto”, como ele costumava chamar ficasse pronta. O difícil foi sobreviver até lá e necessário foi uma infindável argumentação para que as quintas espalhadas pela cidade, os bares, restaurantes e hotéis comprassem seu produto com parte do pagamento antecipado. Muitos o fizeram, graças à força da sua argumentação e à eloquência que a sua oratória tinha. Mas finalmente ali estava ele orientando o carregamento no caminhão Ford para as primeiras entregas. Seu René foi o primeiro americano a provar o sabor daquela nobre arte e com um estalar de língua aprovou totalmente a bebida, falando para ninguém:

- Oh minha França querida! Finalmente voltei a sentir o prazer de beber aquilo que você faz tão bem. Este menino vai longe.

E foi mesmo. Daquele dia em diante os que não tinham adquirido seu produto passaram a fazê-lo e os que já o conheciam aumentaram a quantidade para não ficarem sem ele. A cada instante sua freguesia aumentava e ele não pode mais vender apenas garrafões e tonéis. Foi obrigado a engarrafá-lo para atender a demanda do povo fazendo fila na porta da sua produtora.

Num determinado dia ali parou um automóvel de luxo. Dele desceram quatro indivíduos muito bem vestidos e armados. Três deles permaneceram junto ao veículo e o quarto adentrou à vinícola ignorando seu proprietário. Sem cerimônias abriu uma garrafa e sorveu seu conteúdo no próprio gargalo. Pediu mais quatro garrafas, pagou por elas e se foi do mesmo jeito que chegou.

Mário respirou aliviado. Tinha medo das armas, nunca tinha visto aquelas pessoas e imaginou tratar-se de mais uma perseguição, logo agora que ia tão bem. Ainda mais que os Estados Unidos haviam aderido à guerra ao lado da Inglaterra, França e Rússia. Podia ser também um bando de marginais estudando algum tipo de assalto. Mas foram educados e pagaram pelo produto. Seriam eles então da polícia em busca de propinas? Isso não podia ser, pois ele estava com toda documentação em ordem, sem a qual não conseguiria vender nada. Resolveu esquecer o incidente e voltar para sua produção, agora com a ajuda de vários empregados.

Stanley Cross era um velho americano que vivia de apontamentos de jogos clandestinos. O “bookmaker” mantinha certa admiração pelo vinheiro, como o chamava, e vez por outra por ali passava oferecendo seu serviço. Mário raramente jogava, mas não deixava de oferecer gratuitamente uma taça de vinho ao amigo, real motivo da sua visita. Nesta, enquanto sorvia o vinho que normalmente fazia calado, se manifestou:

- Eu vi um Chevrolet preto de luxo parado na sua porta outro dia.

- Tinha sim. Eles compraram vinho e foram embora.

- Você sabe quem eram?

- Nunca os vi antes.

- Então aguarde. Se a pessoa for quem eu penso ser e  gostar do seu vinho, logo você estará recebendo a visita de uma ilustre personagem do mundo do crime.

- Está brincando, Stanley. Quem é ele?

- É o meu patrão. Só que nem ele sabe disso. Ele não se importa com os menos favorecidos. Só se interessa mesmo pelo dinheiro que faço com os jogos clandestinos.

- E quem é esse seu patrão desumano?

- Não é inteligente falar. Você vai descobrir. Tchau bambino.

Mário não sabia se dava crédito às palavras do “bookmaker” ou se aquilo tudo não passava de mera fantasia. Ficou com isso na cabeça por diversos dias e como nada de novo aconteceu, esqueceu voltando-se integralmente para a sua produção. Mas eis que numa tarde, durante um carregamento no caminhão estacionado em frente à vinícola, avistou aqueles mesmos homens pedindo ao motorista que tirasse o veículo dali. Impressionado pelas armas, o motorista assim o fez e a um sinal do líder ali encostou um enorme Cadilac do ano. Na sua frente,  e também atrás, junto ao meio fio estacionaram mais cinco carros de cada lado, igualmente modernos e apinhados de gente fortemente armadas. Praticamente dominaram todo o quarteirão. Do Cadilac desceu um homem gordo, calvo, com aparência de ser estrangeiro, provavelmente italiano. Estava muito bem vestido, portava anéis de ouro em todos os dedos e por baixo do sobretudo escondia uma metralhadora. Dirigiu-se a Mário sem nada falar, apenas apontando com o dedo indicador para uma garrafa de vinho merlot. Sentou-se enquanto Mário a desarrolhava e lhe oferecia uma taça por ele recusada. Tirou do bolso do sobretudo uma fina taça de cristal e permitiu que fosse servido. Degustava devagar e prazerosamente, enquanto Mário permanecia na sua frente, estático. Em dado momento quebrou o silêncio:

- É você quem faz essa maravilha, patrício?

- Sim. É uma receita secular da minha família.

- De onde você veio?

- Da Sicília. Morava em Enna.

- Eu também. Morei em Palermo. Como foi possível não conhecer a sua família lá?

- A produção do nosso vinho era só para o consumo. Nunca foi divulgado por lá. Acho que é por isso que o senhor não os conheceu.

- É “vero”. Mas eu vim de Chicago até aqui para lhe propor um negócio. Se aceitar você vai ser muito rico. Caso contrário não sei. Quero construir aqui, em São Francisco uma grande fábrica de vinho. Também quero ter você como meu sócio, à base de vinte por cento para você e oitenta para mim. Veja que vinte por cento de uma grande indústria é muitas vezes mais do que você ganha agora. Com isso logo vai poder trazer seus pais, conforme a sua vontade.

- Como o senhor sabe disso?

- Eu sei de tudo, ragazzo.

- Quem é o senhor?

Não houve resposta. O elegante senhor ergueu-se, apanhou a garrafa semi consumida e esboçou um sorriso de deboche, dirigindo-se ao Cadilac. Pediu ao segurança para entrar na adega, pagar a garrafa e comprar mais uma dúzia delas. Em seguida toda a comitiva partia em alta velocidade pelas ruas de São Francisco. Mário lembrou-se do “bookmaker” e não tinha mais dúvidas de quem era aquele senhor. Lembrou-se também das palavras do pai sobre aquela organização criminosa e com ela nada queria. Mas a proposta do chefão acompanhada de um certo mistério caso a recusasse o deixava sem saber o que fazer.    

Era o ano de mil novecentos e vinte. Há dois que a guerra havia terminado na Europa e vencidas as forças italianas e seus aliados. Em carta mal redigida por moradores de Enna, Mário soube da morte do pai e da grave doença que se abatera sobre a mama. Somando-se nisso a proposta do mafioso, Mário resolveu e vendeu por bom preço todo o seu empreendimento ao senhor René Duboit. Em seguida embarcou, desta vez na segunda classe, de volta para a Itália. Iria cuidar da mãe enquanto se livrava da mafiosa proposta do senhor All Capone. Singrou o oceano Atlântico culpando-se pela incapacidade de realizar a promessa feita aos seus genitores anos passados.

Chegando em Enna, Mário tomou o caminho do sítio por ele já quase esquecido. Mas como por ali as coisas não haviam evoluído tanto como nos Estados Unidos, foi se lembrando e reconhecendo a tudo, até bater na porta da sala da sua casa. Aberta por Maria que lá estava a cuidar da viúva enferma alegrou-se  ela com a presença dele.  Ternamente o abraçou conduzindo-o até o quarto. Precariamente recebido pela mama, sentiu seus magros braços rodearem seu corpo. A mão trêmula lhe acariciava a face e dos lábios esbranquiçados uma única frase ouviu; filho! Que Papai do céu te proteja e te guarde e que cuide bem de você. Expirou em seguida. Parecia que suas forças somente foram suficientes para rever o amado filho que sabia estar a caminho.

Maria Prueti consolou Mário Scucciatto. Agora ele era o único remanescente da família e, com dor ou sem dor, teria que assumir o sítio e dar continuidade ao nome. No dia seguinte, após o funeral da mama que agora descansava ao lado do papa, chamou Maria para uma conversa:

- Maria. Você ainda se lembra dos nossos planos de antes?

- Lembro sim. Você ia me levar daqui junto com seus pais.

- E você ainda quer ir?

- Não sei. Muita coisa aconteceu. Seus pais já não podem ir e você tem que cuidar do sítio. Meu irmão voltou da guerra mutilado e diz que a grande culpa é sua e de pessoas que como você foram embora da Itália. Ele diz que você é um covarde desertor.

- E você acredita nisso?

- Não. Você foi antes de começar a guerra. Mas ele não lhe suporta. Tem ódio mesmo.

- E seus pais?

- Pensam igual ao meu irmão.

- Sabe Maria. Eu progredi muito nos Estados Unidos. Já estava por buscar os meus pais quando essa tragédia aconteceu. Só que não posso mais voltar. Corro um grande risco por não ter aceitado um convite da máfia. Mas também não quero ficar aqui. Este lugar não me faz bem. Tenho tristes recordações dele.

- E o que vai fazer então?

- Vou vender tudo e viajar outra vez. Vou para o Brasil e quero levar você comigo.

- Não sei Mário. Preciso de um tempo para pensar. Papai sempre achou que mulher era feita para ter filhos e cuidar da casa. Eu nunca fui à escola e não sou letrada como você. Também nunca saí de Enna e não tenho experiência nenhuma de vida. Eu poderia ser um estorvo para você. Infelizmente papai só priorizou a educação do Aldo que agora está numa cadeira de rodas. Eu nunca tive nada, mas com a morte da mamãe eles dependem muito de mim.

- Maria. Seu irmão ganha um bom soldo do exército e seu pai sempre foi muito bem de vida. Eles podem pagar alguma empregada.

- Vou pensar nisso.

- Você tem até o dia que eu vender o sítio para pensar.

- Está bem. Tchau.

- Tchau.

A propriedade dos Scucciatto estava longe de parecer o que já fora antes. O mato invadiu a lavoura, não tinha mais animais e a casa precisava de muitos reparos. O imóvel se desvalorizou e como Mário não tinha a intenção de gastar o seu dinheiro, assim o manteve até que o vendeu pela melhor oferta. Estava contente pela venda e também por saber que Maria Prueti o seguiria. Combinaram dia, hora e local da fuga e, passado um mês e nove dias da sua volta, lá estava ele de novo no porto de Roma. Desta vez acompanhado. Mário comprou passagens de segunda classe no vapor Constantino I e novamente singrou o oceano Atlântico, desta vez pelo hemisfério sul. Era a primeira vez que Maria Prueti saia de Enna.

  

    

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