NAS PRIMEIRAS NOITES ela vinha me visitar com frequência. Dava-me um beijo com os lábios úmidos em minha testa, levantava-me o lençol e se aninhava em meu peito. Ficava-me a fazer carícias no rosto enquanto me falava como havia sido seu dia. Contava das falésias onde cavalgava com Ragazza ao pôr do sol, dos vales verdejantes onde caminhava de mãos dadas com o pai e das colinas que visitava com Danielle. Fabrice a levava para ver o mar, mas tirava-lhe da água quando as ondas quebravam muito próximas da costa, preocupado. Remy a ajudava a colher conchas na praia parando para lhe fazer companhia e ouvir o barulho ressonante do mar dentro delas. Cada lembrança terminava com um risinho doce, suave. O calor que seu pequeno corpo me transmitia embaixo das cobertas era reconfortante. Fazia meu coração pulsar apressado. Pulsar como se eu estivesse viva. E eu ficava esperando que ela retornasse no outro d
O PROFESSOR RASHFORD havia montado uma base provisória da Teia no subsolo de um edifício centenário localizado bem no centro de Dublin e foi lá que acabei reencontrando alguns operativos que não via há anos. Eu havia chegado à ilha apenas e tão somente por causa de seus famosos bares e suas bebidas de alto teor alcóolico e por ali já estava há alguns meses, arrumando brigas ocasionais em becos sujos e em lugares mal frequentados. Nem lembrava mais por qual razão estava naquela parte do planeta. Tudo que me interessava era a cerveja e o uísque do lugar, embora o vinho tinto continuasse sendo mais agradável a meu paladar apurado.Jacqueline Bazelaire não parecia tão melhor do que eu mentalmente e reencontrá-la viva depois do que havíamos passado juntas em Düsseldorf e principalmente após tanto tempo, tinha sido estranho. Quando ela chegou par
EU NÃO SEI DIZER o que aconteceu entre os segundos em que tive meu último pensamento lúcido, ainda dona de meu próprio corpo e o momento em que miolos foram projetados contra meu rosto. Quando voltei a mim, a mulher-demônio estava caída sobre a chama da base do círculo de fogo e meu sobretudo já começava a queimar até o braço.— Alexia! Alexia!A voz de Jacqueline soava fora da roda de fogo e quando olhei, ela estava segurando um rifle cujo cano fumegava.— Seu sobretudo!Ainda desorientada, me vi tirando o casaco e o jogando de lado enquanto ele queimava. A mulher ruiva apresentava agora um rombo entre os dois olhos provocado pelo tiro de rifle disparado pela francesa, mas ela não havia sido abatida. Erguendo-se como se a bala não tivesse arrancado metade de seu cérebro, a figura avançou mais uma vez sobre mim, quando outro tiro lhe acertou
EM 1964 MINHA mineradora petrolífera na Arábia Saudita havia faturado mais nos seis primeiros meses do ano do que em todo o ano fiscal anterior e aquele crescimento exponencial me deu ânimo novo para voltar aos negócios e participar mais ativamente de seu gerenciamento. Eu havia transformado a mineradora venezuelana em uma filial de minha empresa principal e com a contratação de vários técnicos e engenheiros petrolíferos para trabalhar em ambos os lugares coloquei a Rux-Oil no topo das listas das companhias mais bem-sucedidas da década.Os advogados da Casavette & Montanaro que eu havia contratado há mais de dez anos haviam descoberto que um financiador ucraniano misterioso estava por trás da diretoria da Novyy Kordon — a empresa que havia comprado minhas ações da Rassvet — e quando o grupo começou a pedir diversas concordatas, fazendo com que o val
NO FINAL DAQUELE ANO, eu me mudei para um castelo em Edimburgo, na Escócia e de lá fiquei a tocar os negócios da Rux-Oil tendo minha presença requisitada raras vezes tanto na sede em Riad quanto em sua filial na Venezuela. Depois de tudo que havia me acontecido em Vaucluse, depois de tantas perdas, decidi contratar apenas um empregado para cuidar do castelo, mas suas características físicas peculiares faziam dele o servo perfeito: Ele era um licantropo.Eu havia conhecido Sergio Gutierrez em Caracas, numa de minhas visitas à mineradora e era uma noite comum de final de expediente quando eu o encontrei escondido no banheiro de meu escritório, sujo, rasgado e ensanguentado. Ele não devia ter mais do que dezessete anos na época e os moradores do bairro onde ele vivia haviam descoberto no que ele se transformava em noites de lua cheia, passando a persegui-lo. Vi na história daquele menino a minha pr&oacu
ERAM MEADOS do século XIX nas planícies da Valáquia. Aquela tinha sido uma temporada extenuante de muito trabalho no campo. Notícias trazidas do Norte dos montes Cárpatos anunciavam rebeliões camponesas por todo território da Moldávia, o que dificultaria ainda mais o cultivo e o transporte das uvas para as vinícolas num futuro próximo. As tropas russo-turcas coibiam com rigor os protestos dos aldeões na vizinhança aumentando ainda mais seu domínio. Oprimindo gente que vivia da terra. Gente como a minha família. Eu tinha sido batizada como Alina Grigorescu e era a filha única de Grigore e Ruxandra, um casal de camponeses valaquianos que morava há quase vinte anos naquela fazenda de poucos hectares. Eles viviam do que plantavam até mesmo antes do meu nascimento, sem qualquer medo do trabalho duro e sempre se gabando da sua saúde invejável. O que viria a acontecer posteriormente, todavia, provava o quanto o destino era dado a caprichosas ironias. Naquele verão, a minha mãe caiu de cama
POR ALGUM TEMPO, a companhia de Costel nos dias extenuantes e nas noites frias de sarjeta bastou, mas logo a necessidade de sobreviver nas ruas perigosas de Bucareste — para onde tínhamos fugido muito tempo depois — começou a criar conflitos entre nós dois. Tínhamos nos tornado dois pedintes em busca constante de abrigo e alimento, o que nos fazia brigar a todo momento. — Temos que pedir ajuda, Costel. — Não seja estúpida, Alina! Quem nessa cidade iria nos ajudar? Sofríamos diariamente para encontrar um teto sobre a cabeça ou mesmo roupas adequadas para suportar a temperatura baixíssima do outono europeu. Feito andarilhos, mudávamos de um endereço para outro logo que as autoridades nos identificavam, e naquele período, encontramos pelo caminho o que de pior a recém-formada Romênia tinha a nos oferecer. Passamos frio, fome e muito medo nas ruas por alguns meses até encontrarmos aquele que parecia ser o esconderijo perfeito na torre de uma velha igreja católica. Datada do século XVII
NOS DOIS PRIMEIROS DIAS que passei como hóspede do enigmático Dumitri, eu fui muito bem tratada por ele e seus lacaios. Embora não tivesse autorização para conhecer os demais ambientes do soturno castelo que mais parecia um intrincado labirinto de corredores sombrios, todos agiam com extrema cortesia me acompanhando do quarto ao banheiro, de lá para a sala de jantar e dali de volta para o meu quarto. Eu tinha roupas limpas à minha disposição, a água do banho estava sempre aquecida e não podia me queixar da comida que era sempre farta. Experimentei pratos que nunca antes tinha ouvido falar, de receitas vindas da Bulgária e até da Índia. Dumitri fazia questão que eu estivesse sempre bem alimentada, me encarando de perto enquanto eu comia sem nunca botar nada na própria boca. Parecia não sentir fome, porém, a sua sede era insaciável. Todos os dias tinha uma garrafa nova de vinho sobre a mesa. — Pedirei a sobremesa agora. Vamos ver o que os meus cozinheiros prepararam hoje. — Ele batia du
EU ENXERGUEI duas velas negras quase completamente derretidas no bocal de um castiçal de ferro dourado e lustrado logo que abri as pálpebras. Minhas pupilas demoraram para focar o objeto atado à uma das paredes petrificadas do castelo, mas quando o fizeram, foi como se a luz do sol tivesse retinido em meu rosto. Vozes cada vez mais nítidas e próximas enchiam-me os ouvidos trazendo-me desconforto. Uma carroça carregando esterco passava ruidosa pela via de paralelepípedos. Um cão pulguento erguia a pata traseira em direção à parede lateral de um armazém enquanto um líquido quente e asqueroso era direcionado a ela em jatos intermitentes. O cheiro! Oh, Deus! O cheiro! Voltei a sentir os meus braços logo que percebi que estava viva. Levei a minha mão em direção ao meu rosto e quase não a consegui controlar. Meti um dedo bem dentro do olho. Não senti dor alguma, e então, tentei erguer o meu tronco que pesava mais que o normal, comprimindo-me contra a cama. Uma senhora de sotaque búlgaro te