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Capítulo 3 - Uivos e presas

NOS DOIS PRIMEIROS DIAS que passei como hóspede do enigmático Dumitri, eu fui muito bem tratada por ele e seus lacaios. Embora não tivesse autorização para conhecer os demais ambientes do soturno castelo que mais parecia um intrincado labirinto de corredores sombrios, todos agiam com extrema cortesia me acompanhando do quarto ao banheiro, de lá para a sala de jantar e dali de volta para o meu quarto. Eu tinha roupas limpas à minha disposição, a água do banho estava sempre aquecida e não podia me queixar da comida que era sempre farta. Experimentei pratos que nunca antes tinha ouvido falar, de receitas vindas da Bulgária e até da Índia. Dumitri fazia questão que eu estivesse sempre bem alimentada, me encarando de perto enquanto eu comia sem nunca botar nada na própria boca. Parecia não sentir fome, porém, a sua sede era insaciável. Todos os dias tinha uma garrafa nova de vinho sobre a mesa.

— Pedirei a sobremesa agora. Vamos ver o que os meus cozinheiros prepararam hoje. — Ele batia duas palmas e logo tinha um par de empregados trazendo uma nova leva de guloseimas a fim de me empanturrar. Realmente, eu não tinha do que reclamar, não depois de ficar uma semana sem comer nada na rua.

Passaram-se sete dias naquela rotina e eu comecei a me sentir como uma leitoa num processo de engorda antes do abate. Numa tarde, enquanto me banhava imersa na água quente, notei que as minhas ancas tinham ganhado alguns centímetros enquanto o meu ventre parecia mais arredondado do que o normal. Sempre que retornava ao quarto, após as refeições, sentia ânsias terríveis, além de tonturas ao me erguer rápido da cama depois de acordar. Ando comendo até demais agora! Vou acabar gorda feito uma égua prenha!

Enquanto os dias se arrastavam em minha clausura, eu me entretinha em tentar adivinhar se era dia ou noite do lado de fora. Dumitri parecia ter grande sensibilidade à luz solar, ordenando que todas as portas e janelas do castelo estivessem sempre cerradas. Os corredores eram iluminados por candeeiros enquanto os aposentos que eu visitava tinham a luz proveniente de velas de cera grossa. Além da penumbra que ele exigia que se mantivesse, me permitindo enxergar pouco no interior daquele lugar enorme, Dumitri dava ordens expressas para que os seus lacaios não falassem nada comigo além do essencial. Havia uma grande rotatividade de serviçais trabalhando para o homem pálido, o que me fez perceber que raramente eu conseguia reconhecê-los de um dia para o outro.

— Obrigada pelas roupas, Viktor.

— Me chamo Augusto, senhorita Alina.

— Ah, perdão… Augusto.

Além dos cumprimentos e das indicações de onde eu deveria ir ou o que deveria fazer, eles se limitavam a consentir com gestos discretos, a dizer "sim, senhorita", "não, senhorita" ou "não tenho autorização para dizer, senhorita" quando eu lhes fazia alguma pergunta um pouco mais elaborada. Estava cada vez mais solitário ali dentro e havia dias que nem durante o jantar Dumitri aparecia para me fazer companhia à mesa, quase como se a sua aparência envelhecida dissesse a verdade sobre a sua saúde debilitada.

Estaria ele padecendo de alguma moléstia incurável? Seria ele apenas um velho doente querendo companhia nos últimos dias de vida?

Em meu isolamento dentro dos meus aposentos, além de aguçar os meus ouvidos aos sons noturnos da cidade ao nosso redor, passei a me dedicar na contagem dos dias criando uma espécie de calendário numa das paredes. Riscando a pedra espessa com a ponta de um prego, descobri que devíamos estar próximos das comemorações do dia de Santo André, em novembro. Os Grigorescu não eram religiosos, mas era muito comum se festejar aquele feriado na vila onde morávamos na Valáquia. O dia do padroeiro dos lobos também antecedia o meu aniversário, por isso me era tão especial. Eu estava prestes a completar meus dezoito anos.

A véspera do dia de Santo André foi marcada por uma mudança climática intensa que fez com que nem as paredes antes impenetráveis do castelo mantivessem o frio afastado. Ainda era outono na Europa e aquela noite eu me mantive acordada atormentada por uivos incessantes de lobos e chacais que ecoavam ao longe.

— Deixem-me dormir, malditos!

Um desconforto abdominal absurdo também estava me impedindo de me manter quieta sob as cobertas em minha cama e tinha a sensação cada vez mais nítida de que havia algo vivo se revirando dentro de mim. Fui acometida por um pânico agoniante enquanto lembranças das histórias contadas a mim na infância sobre strigois e morois vinham à minha mente.

Eu não posso estar grávida! Que tipo de aberração poderia sair de mim se eu viesse a ter um filho de Costel? Um filho de meu próprio irmão!  

Quando o uivo dos animais noturnos cessou, eu finalmente consegui adormecer, embora pesadelos com monstros e bruxas não quisessem me deixar em paz. Acordei em minha cama dum pulo com o corpo encharcado em suor apesar do frio quase negativo dentro do meu quarto. Senti imediatamente cada pelo do meu corpo eriçar e não conseguia gritar. Eu estava muda. Senti o ar solidificar-se ao meu redor. Havia algo errado.

A porta… quem deixou a porta aberta?

A resposta aos meus pensamentos surgiu quase de imediato na forma de uma figura esguia que me espreitava ao lado da penteadeira do quarto negro. Não havia qualquer vela acesa ali dentro e apenas a luz que vinha de um dos candeeiros ao final do corredor me permitia ver a silhueta curvada movendo-se feito um animal de olhos vermelhos e brilhantes deslizando até mim. Senti os meus movimentos congelarem junto da minha voz e embora tentasse balbuciar um pedido de socorro, eu estava incapacitada. Petrificada sobre a cama.

— Não pode evitar. Sua pulsação soa feito uma melodia daqui.

A voz era sibilante e aguda. Vibrava em meus ouvidos como o uivo dos chacais do lado de fora. Ele estava agora em cima de mim forçando os meus ombros contra a cama. Os cabelos longos roçavam meu rosto.

— Mal consigo conter a minha sede.

Seu hálito fedia à morte. A língua úmida e áspera percorria o meu pescoço, o meu rosto, sem que eu pudesse evitar. As mãos compridas de dedos finos puxavam a barra do meu vestido tornando-me nua. Eu continuava tentando balbuciar. Não saía um sussurro sequer da minha boca. A sua língua agora penetrava-me lá embaixo. Eu estava imóvel.

— Doce como uma fruta fresca.

A figura grotesca não se prolongou muito no que fazia e logo voltou a subir sobre o meu corpo estático. Eu tremia num misto de horror, asco e frio. Muito frio. A coisa dentro de mim movia-se como que tocada pelo mal representado pelo monstro a me possuir. Eu estava seca, o que me fez sentir dor e angústia. Uma lágrima escorria do meu olho esquerdo, virando gelo antes mesmo de atingir o lençol. Gritava em pensamento para que a criatura me soltasse, mas sadicamente ela me prendia ainda mais, parecendo ouvir a minha mente.

— Sinto-a pulsar. Cada vez mais alto. Mais alto!

Os movimentos pélvicos fortes e intensos cessaram no momento em que ele virou o meu rosto de lado para a parede do calendário e forçou-me contra a cama. Dava para sentir a sua respiração muito próxima da minha pele, com ele sentindo o medo exalar junto do meu suor. A língua voltou a passear em meu pescoço e um grunhido anteviu a dor lancinante que me acometeu naquele momento.

— P-Por favor…

Quando a minha súplica finalmente ecoou, ela foi abruptamente interrompida por um berro que emiti ao sentir duas presas cravando-se em minha carótida. Meu corpo havia sido liberado do transe e eu espasmei de dor sentindo o líquido quente e vibrante escapar do meu corpo. Os dentes pontiagudos me soltaram apenas o suficiente para que eu os visse escorrer do meu próprio sangue, retornando em seguida para o mesmo lugar… sugando-me ainda mais intensamente.

— S-Socorro…

Sentia a pele do pescoço queimar em brasa. O fluido vermelho vertia de mim para ele parecendo incapaz de saciá-lo.

— Tão quente! Tão doce!

Eu não sei quanto tempo durou, mas quando ele terminou e se levantou, o meu corpo estava pesado, rígido. Sua voz agora parecia distante aos meus ouvidos. Os uivos eram apenas ganidos longínquos e não me incomodavam mais. A minha consciência estava abandonando o meu corpo vagarosamente. Meu raciocínio foi sendo minguado aos poucos e os meus olhos estavam cada vez mais escurecidos. Eu estava morrendo pela primeira vez.

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