NOS DOIS PRIMEIROS DIAS que passei como hóspede do enigmático Dumitri, eu fui muito bem tratada por ele e seus lacaios. Embora não tivesse autorização para conhecer os demais ambientes do soturno castelo que mais parecia um intrincado labirinto de corredores sombrios, todos agiam com extrema cortesia me acompanhando do quarto ao banheiro, de lá para a sala de jantar e dali de volta para o meu quarto. Eu tinha roupas limpas à minha disposição, a água do banho estava sempre aquecida e não podia me queixar da comida que era sempre farta. Experimentei pratos que nunca antes tinha ouvido falar, de receitas vindas da Bulgária e até da Índia. Dumitri fazia questão que eu estivesse sempre bem alimentada, me encarando de perto enquanto eu comia sem nunca botar nada na própria boca. Parecia não sentir fome, porém, a sua sede era insaciável. Todos os dias tinha uma garrafa nova de vinho sobre a mesa.
— Pedirei a sobremesa agora. Vamos ver o que os meus cozinheiros prepararam hoje. — Ele batia duas palmas e logo tinha um par de empregados trazendo uma nova leva de guloseimas a fim de me empanturrar. Realmente, eu não tinha do que reclamar, não depois de ficar uma semana sem comer nada na rua.
Passaram-se sete dias naquela rotina e eu comecei a me sentir como uma leitoa num processo de engorda antes do abate. Numa tarde, enquanto me banhava imersa na água quente, notei que as minhas ancas tinham ganhado alguns centímetros enquanto o meu ventre parecia mais arredondado do que o normal. Sempre que retornava ao quarto, após as refeições, sentia ânsias terríveis, além de tonturas ao me erguer rápido da cama depois de acordar. Ando comendo até demais agora! Vou acabar gorda feito uma égua prenha!
Enquanto os dias se arrastavam em minha clausura, eu me entretinha em tentar adivinhar se era dia ou noite do lado de fora. Dumitri parecia ter grande sensibilidade à luz solar, ordenando que todas as portas e janelas do castelo estivessem sempre cerradas. Os corredores eram iluminados por candeeiros enquanto os aposentos que eu visitava tinham a luz proveniente de velas de cera grossa. Além da penumbra que ele exigia que se mantivesse, me permitindo enxergar pouco no interior daquele lugar enorme, Dumitri dava ordens expressas para que os seus lacaios não falassem nada comigo além do essencial. Havia uma grande rotatividade de serviçais trabalhando para o homem pálido, o que me fez perceber que raramente eu conseguia reconhecê-los de um dia para o outro.
— Obrigada pelas roupas, Viktor.
— Me chamo Augusto, senhorita Alina.
— Ah, perdão… Augusto.
Além dos cumprimentos e das indicações de onde eu deveria ir ou o que deveria fazer, eles se limitavam a consentir com gestos discretos, a dizer "sim, senhorita", "não, senhorita" ou "não tenho autorização para dizer, senhorita" quando eu lhes fazia alguma pergunta um pouco mais elaborada. Estava cada vez mais solitário ali dentro e havia dias que nem durante o jantar Dumitri aparecia para me fazer companhia à mesa, quase como se a sua aparência envelhecida dissesse a verdade sobre a sua saúde debilitada.
Estaria ele padecendo de alguma moléstia incurável? Seria ele apenas um velho doente querendo companhia nos últimos dias de vida?
Em meu isolamento dentro dos meus aposentos, além de aguçar os meus ouvidos aos sons noturnos da cidade ao nosso redor, passei a me dedicar na contagem dos dias criando uma espécie de calendário numa das paredes. Riscando a pedra espessa com a ponta de um prego, descobri que devíamos estar próximos das comemorações do dia de Santo André, em novembro. Os Grigorescu não eram religiosos, mas era muito comum se festejar aquele feriado na vila onde morávamos na Valáquia. O dia do padroeiro dos lobos também antecedia o meu aniversário, por isso me era tão especial. Eu estava prestes a completar meus dezoito anos.
A véspera do dia de Santo André foi marcada por uma mudança climática intensa que fez com que nem as paredes antes impenetráveis do castelo mantivessem o frio afastado. Ainda era outono na Europa e aquela noite eu me mantive acordada atormentada por uivos incessantes de lobos e chacais que ecoavam ao longe.
— Deixem-me dormir, malditos!
Um desconforto abdominal absurdo também estava me impedindo de me manter quieta sob as cobertas em minha cama e tinha a sensação cada vez mais nítida de que havia algo vivo se revirando dentro de mim. Fui acometida por um pânico agoniante enquanto lembranças das histórias contadas a mim na infância sobre strigois e morois vinham à minha mente.
Eu não posso estar grávida! Que tipo de aberração poderia sair de mim se eu viesse a ter um filho de Costel? Um filho de meu próprio irmão!
Quando o uivo dos animais noturnos cessou, eu finalmente consegui adormecer, embora pesadelos com monstros e bruxas não quisessem me deixar em paz. Acordei em minha cama dum pulo com o corpo encharcado em suor apesar do frio quase negativo dentro do meu quarto. Senti imediatamente cada pelo do meu corpo eriçar e não conseguia gritar. Eu estava muda. Senti o ar solidificar-se ao meu redor. Havia algo errado.
A porta… quem deixou a porta aberta?
A resposta aos meus pensamentos surgiu quase de imediato na forma de uma figura esguia que me espreitava ao lado da penteadeira do quarto negro. Não havia qualquer vela acesa ali dentro e apenas a luz que vinha de um dos candeeiros ao final do corredor me permitia ver a silhueta curvada movendo-se feito um animal de olhos vermelhos e brilhantes deslizando até mim. Senti os meus movimentos congelarem junto da minha voz e embora tentasse balbuciar um pedido de socorro, eu estava incapacitada. Petrificada sobre a cama.
— Não pode evitar. Sua pulsação soa feito uma melodia daqui.
A voz era sibilante e aguda. Vibrava em meus ouvidos como o uivo dos chacais do lado de fora. Ele estava agora em cima de mim forçando os meus ombros contra a cama. Os cabelos longos roçavam meu rosto.
— Mal consigo conter a minha sede.
Seu hálito fedia à morte. A língua úmida e áspera percorria o meu pescoço, o meu rosto, sem que eu pudesse evitar. As mãos compridas de dedos finos puxavam a barra do meu vestido tornando-me nua. Eu continuava tentando balbuciar. Não saía um sussurro sequer da minha boca. A sua língua agora penetrava-me lá embaixo. Eu estava imóvel.
— Doce como uma fruta fresca.
A figura grotesca não se prolongou muito no que fazia e logo voltou a subir sobre o meu corpo estático. Eu tremia num misto de horror, asco e frio. Muito frio. A coisa dentro de mim movia-se como que tocada pelo mal representado pelo monstro a me possuir. Eu estava seca, o que me fez sentir dor e angústia. Uma lágrima escorria do meu olho esquerdo, virando gelo antes mesmo de atingir o lençol. Gritava em pensamento para que a criatura me soltasse, mas sadicamente ela me prendia ainda mais, parecendo ouvir a minha mente.
— Sinto-a pulsar. Cada vez mais alto. Mais alto!
Os movimentos pélvicos fortes e intensos cessaram no momento em que ele virou o meu rosto de lado para a parede do calendário e forçou-me contra a cama. Dava para sentir a sua respiração muito próxima da minha pele, com ele sentindo o medo exalar junto do meu suor. A língua voltou a passear em meu pescoço e um grunhido anteviu a dor lancinante que me acometeu naquele momento.
— P-Por favor…
Quando a minha súplica finalmente ecoou, ela foi abruptamente interrompida por um berro que emiti ao sentir duas presas cravando-se em minha carótida. Meu corpo havia sido liberado do transe e eu espasmei de dor sentindo o líquido quente e vibrante escapar do meu corpo. Os dentes pontiagudos me soltaram apenas o suficiente para que eu os visse escorrer do meu próprio sangue, retornando em seguida para o mesmo lugar… sugando-me ainda mais intensamente.
— S-Socorro…
Sentia a pele do pescoço queimar em brasa. O fluido vermelho vertia de mim para ele parecendo incapaz de saciá-lo.
— Tão quente! Tão doce!
Eu não sei quanto tempo durou, mas quando ele terminou e se levantou, o meu corpo estava pesado, rígido. Sua voz agora parecia distante aos meus ouvidos. Os uivos eram apenas ganidos longínquos e não me incomodavam mais. A minha consciência estava abandonando o meu corpo vagarosamente. Meu raciocínio foi sendo minguado aos poucos e os meus olhos estavam cada vez mais escurecidos. Eu estava morrendo pela primeira vez.
EU ENXERGUEI duas velas negras quase completamente derretidas no bocal de um castiçal de ferro dourado e lustrado logo que abri as pálpebras. Minhas pupilas demoraram para focar o objeto atado à uma das paredes petrificadas do castelo, mas quando o fizeram, foi como se a luz do sol tivesse retinido em meu rosto. Vozes cada vez mais nítidas e próximas enchiam-me os ouvidos trazendo-me desconforto. Uma carroça carregando esterco passava ruidosa pela via de paralelepípedos. Um cão pulguento erguia a pata traseira em direção à parede lateral de um armazém enquanto um líquido quente e asqueroso era direcionado a ela em jatos intermitentes. O cheiro! Oh, Deus! O cheiro! Voltei a sentir os meus braços logo que percebi que estava viva. Levei a minha mão em direção ao meu rosto e quase não a consegui controlar. Meti um dedo bem dentro do olho. Não senti dor alguma, e então, tentei erguer o meu tronco que pesava mais que o normal, comprimindo-me contra a cama. Uma senhora de sotaque búlgaro te
DUMITRI ME ACOMPANHOU mais algumas noites em caçada depois da primeira vez e vê-lo matando pessoas desavisadas tão discriminadamente de forma tão sádica me causou certo desconforto. Havia prazer nele em tirar uma vida humana e embora eu agora fosse dependente de sangue para sobreviver, algo dentro de mim se recusava a aceitar aquela nova rotina. Quando chegou a minha vez de caçar sozinha, escolhi que não queria tirar a vida de pessoas inocentes e fui em busca de gente que valesse a pena matar. Comecei a espreitar becos e vielas onde ladrões e estupradores costumavam fazer as suas vítimas e ali comecei a caçar de verdade me passando antes por presa. Eu circulava por aquelas bandas usando vestidos decotados de tecido claro e fino, o que facilitava a minha identificação pelos pervertidos da cidade. Eu havia sido transformada em vampira em minha melhor forma física. Era jovem, bonita, tinha curvas bem acentuadas para uma garota de dezessete anos — agora dezoito — e aquilo chamava a atençã
ERA INVERNO na Europa quando eu e Costel chegamos à Kainsk — atual Kuibysev — localizada 315 km a Oeste de Novosibirski. Situada às margens do rio Om, a cidade tinha área em torno de 110 km² e havia sido fundada como um forte militar ainda no século XVIII. Com uma população pequena, formada principalmente por camponeses e lavradores, a cidade sofreria diretamente com o que estava para acontecer no restante do país nos próximos anos no governo do czar Alexandre II. Com uma gestão humanitária voltada para o povo, Alexandre II assumiu sua função de governante um ano após a minha chegada à Rússia. A Guerra da Crimeia ainda estava movimentando o Velho Continente e o czar havia decidido manter as forças russas em combate, o que mais tarde se mostrou um erro hediondo. A Inglaterra e a França esmagaram a Rússia um ano mais tarde, o que fez com que Al
A SITUAÇÃO POLÍTICA estava mudando rapidamente na Rússia sob o reinado de Alexandre II e além da abolição da servidão promulgada pelo czar, uma nova Assembleia Constituinte instalada por grupos radicais começava a discutir ideias socialistas dentro do país. Enquanto intelectuais e estudantes viam no campesinato uma classe revolucionária contra o regime de estado atual, a aristocracia via com preocupação o fim de certos privilégios antes fortemente gozados por ela. Aqueles assuntos eram amplamente comentados durante as festas que agora eu e Costel frequentávamos como os irmãos Vassiliev, e graças às aulas de Ivan, conseguíamos discutir de igual para igual com os prolixos. Nos passávamos facilmente entre eles como os órfãos de magnatas à frente das empresas dos pais, mas foi numa daquelas noites que me deparei com algué
UMA SEMANA HAVIA SE PASSADO desde que Adon tinha enfrentado Costel tentando fazê-lo entender que ele precisava ser cauteloso sobre nosso passado na Romênia, e naqueles dias, eu tomei a decisão que considerei a mais acertada.— Me leve até a mulher que pode me curar de minha maldição.Adon tinha se recuperado bem dos ferimentos quase mortais e esperamos a noite para tomarmos uma embarcação que iria nos levar desta vez para a Espanha, país onde morava Iolanda Columbus, uma bruxa capaz de me curar. Devido minhas condições, eu era obrigada a me esconder nos porões do barco sempre que o sol raiava do lado de fora e os ratos eram tudo que eu tinha para me banquetear por dias inteiros lá embaixo. Tinha aprendido logo em minhas primeiras semanas como vampira que a radiação solar era extremamente nociva em contato com minha pele e que eu não podia perambular por a
ERA DIFÍCIL SABER com precisão, mas segundo o que Alejandro relatou algum tempo depois, a viagem a bordo daquele barco, entre os Açores e a América do Sul, levou algo em torno de dois meses. Talvez mais, mas com certeza não menos. Parei de contar os dias por volta da terceira semana enfurnada em outro porão sujo e malcheiroso, onde os marujos jogavam todo tipo de resto de alimento consumido lá em cima, bebidas e às vezes até cadáveres que seriam jogados ao mar posteriormente. Alejandro tinha feito um acordo com o capitão do barco impedindo que outras pessoas além dele descessem ao porão por minha causa, e assim, eu tinha sempre a oportunidade de vê-lo, já que ele era o responsável por trazer e levar as cargas guardadas ali. Usando bastante de sua lábia, ele tinha convencido seu colega comandante que eu era uma pessoa muito doente que necessitava de cuidados especiais
TRUJILLO ERA UMA CIDADE muito aprazível com área total de 1100 km² conhecida como a “Capital da Cultura do Peru”, e apesar de estrangeiros — com o agravante de um de nós ter ascendência espanhola — fomos muito bem recebidos por seu povo. Minha temporada na calorenta Espanha não tinha sido longa o bastante para que eu já estivesse acostumada ao calor dos trópicos que fazia na América do Sul, e demorei a me adaptar ao clima insuportavelmente árido que fazia no litoral dali. Nos instalamos em um casebre rústico à beira-mar que Alejandro conseguira alugar vendendo um cordão de ouro que trazia desde a Europa no pescoço — e escondido muito bem dos apostadores no barco — e com o que sobrara do dinheiro, ele conseguiu abastecer o lugar com mantimentos que durariam cerca de um mês. Para que eu não tivesse que viver de peixe mais uma vez, comecei a ca
COMEÇOU COM UM zumbido. Depois pareciam sussurros ouvidos através de uma parede. Então era o tamborilar de dois corações. Um jovem e vigoroso, o outro errático e irregular. O ruído de martelo e cinzel sobre pedra sólida ecoava no que parecia ser uma câmara oca. Havia outros sussurros mais distantes, indefiníveis. Podiam ser dez ou vinte. O som de máquinas mecânicas fazia estremecer as paredes externas. Os sussurros agora eram vozes. Firmes, nítidas. Eram dois. Falavam num idioma estrangeiro anasalado. Me parecia inglês.— Ei, Peter! Traga aqui a lanterna. Acho que tem algo dentro dessa câmara.Estavam perto o suficiente agora para que eu sentisse o odor de suor em suas peles. O velho cheirava a colônia vagabunda de alfazema. O mais jovem tinha cheiro de leite estragado dentro das calças e suas mãos tremiam segurando um instrumento pontiagudo de