POR ALGUM TEMPO, a companhia de Costel nos dias extenuantes e nas noites frias de sarjeta bastou, mas logo a necessidade de sobreviver nas ruas perigosas de Bucareste — para onde tínhamos fugido muito tempo depois — começou a criar conflitos entre nós dois. Tínhamos nos tornado dois pedintes em busca constante de abrigo e alimento, o que nos fazia brigar a todo momento.
— Temos que pedir ajuda, Costel.
— Não seja estúpida, Alina! Quem nessa cidade iria nos ajudar?
Sofríamos diariamente para encontrar um teto sobre a cabeça ou mesmo roupas adequadas para suportar a temperatura baixíssima do outono europeu. Feito andarilhos, mudávamos de um endereço para outro logo que as autoridades nos identificavam, e naquele período, encontramos pelo caminho o que de pior a recém-formada Romênia tinha a nos oferecer. Passamos frio, fome e muito medo nas ruas por alguns meses até encontrarmos aquele que parecia ser o esconderijo perfeito na torre de uma velha igreja católica.
Datada do século XVIII, cada pedra das paredes grossas da construção cheirava a suor dos escravos que a tinham erguido. O andar térreo não tinha mais do que vinte metros quadrados e uns poucos bancos de madeira enfileirados diante de um altar decadente e mórbido pareciam esperar por fiéis que quase nunca apareciam.
— O Jesus pregado naquela cruz parece deformado! — ironizou Costel, de olho na imagem feiosa esculpida em madeira ao centro do altar. — O artesão não deve ser dos melhores!
Os degraus que levavam ao alto da torre ficavam na parte de trás da igreja e tivemos que arrombar sua tranca para entrar. O lugar era sujo e escuro, mas as suas paredes de pedra mantinham uma temperatura ambiente em seu interior. Dividimos o espaço inicialmente com ratazanas do tamanho de gatos domésticos, mas na queda de braço, acabamos vencendo os antigos inquilinos.
— Devem dar um belo banquete por alguns dias!
Durante as manhãs, saíamos para pegar restos de comidas nas feiras da província e à noite descansávamos no alto da igreja, protegidos da temperatura baixa que castigava a cidade. Às vezes, lá de cima, ouvíamos toda a ladainha rezada pelo padre em latim, além dos resmungos dos poucos fiéis que frequentavam a missa, mas aquele era um preço baixo demais a se pagar pelo teto que agora tínhamos sobre as nossas cabeças. Que Deus possa nos perdoar de nossos pecados, rogava eu de vez em quando, em voz baixa, ouvindo os sons da cerimônia religiosa, pensando nos atos que tinham conduzido a mim e a meu irmão àquela situação penosa. Mal eu sabia que ainda podia piorar.
Esgotadas as nossas fontes de restos de alimento nos mercados locais, eu e Costel nos vimos obrigados a roubar para nos sustentar, o que criou diversos conflitos com os comerciantes, além de fugas constantes pelas ruas inóspitas. A guarda policial responsável pela ronda na cidade começou a fazer a proteção dos nossos pontos preferidos de assalto e começamos a nos ver sem alternativas. Na situação mais crítica, cheguei a passar uma semana inteira sem ter o que botar no estômago e a morte por inanição passou a se tornar uma possibilidade para nós dois.
Numa das noites mais frias que passamos no alto da igreja, entre um delírio febril e outro pela falta de comida, eu vi Costel sair escondido pela porta pequena de madeira que dava acesso à torre e pareceu um sonho quando ele retornou horas mais tarde me sacudindo no chão sob os trapos que eu usava para me proteger da temperatura baixa.
— Eu consegui um lugar para ficarmos. Estamos salvos.
Meu corpo estava muito fraco pela falta de alimento. Sentia a cabeça girando e os meus dentes batiam pelo frio intenso que estava sentindo. Desci as escadas da torre que davam para o beco atrás da igreja quase a esmo, sem saber bem o que estava fazendo. Sentia a presença de Costel ao meu lado, mas de repente, havia outra voz ali na penumbra, ecoando cavernosa em meus ouvidos sensíveis.
— Ela está muito maltratada, mas nada que alguns dias de descanso e boa comida não a revigorem.
Eu tinha dificuldade para focar tal eram as minhas adversidades físicas e a falta de iluminação do lugar, mas havia um homem alto usando cartola e uma longa capa rubra falando com o meu irmão. Seu rosto não ficava visível em nenhum momento, eu só podia ouvir a sua voz. Tinha cabelos compridos a cair nas costas. Pareciam grisalhos, mas não havia como ter certeza naquela escuridão.
— Você receberá o pagamento como combinado, Grigorescu. Agora permita-me levá-la até o meu castelo.
Eu tive apenas mais alguns instantes de consciência após aquele diálogo sem sentido à primeira vista, e quando voltei a abrir os meus olhos, sentia como se não o fizesse há meses. Uma nuvem espessa e úmida cobria a minha visão me impedindo de enxergar o entorno de onde eu havia despertado. Sentia um tecido fino sobre a minha pele e via apenas pequenas luzes bruxuleantes à minha volta como velas compridas a iluminar o escuro do lugar.
— Finalmente está entre nós mais uma vez — a voz pegou-me de surpresa. Parecia ecoar de todos os lugares do espaço fechado e de nenhum lugar ao mesmo tempo —, dormiu por quase doze horas seguidas. Deve estar faminta.
Foi como se ele tivesse se materializado à minha frente. Meus olhos voltaram a focar no instante em que a figura de um homem pálido de rosto carrancudo aparentando meio século ofereceu a sua mão para que eu me apoiasse ao me levantar. Um sorriso lânguido escapava-lhe por entre os lábios finos e ressecados. Madeixas grisalhas faziam sombra em seu rosto maduro caindo-lhe em frente aos olhos. Enquanto me incomodava olhar a pele quase transparente das mãos frias do meu anfitrião, notei que eu estivera deitada numa cama muito grande de finíssimos lençóis escuros e que não vestia mais a roupa com a qual fugira naquela noite da fazenda de Grigore.
— Pedi para que as minhas aias lhe dessem um banho enquanto estava adormecida. Dei ordens para que elas se livrassem dos velhos trapos que usava, bela Alina. Quero que fique confortável em sua estadia.
Eu estava numa espécie de aposento de luxo construído com grossas paredes de pedra. Eram impenetráveis até mesmo para a luz do sol ao que parecia. As janelas estavam cerradas com trancas e ferrolhos. A única iluminação naquilo que me parecia um calabouço provinha das dezenas de velas presas aos castiçais. Eu sou uma prisioneira? Me indaguei em pensamento enquanto olhava apavorada o espaço ao meu redor.
— Você não é uma prisioneira, jovem dama.
Como ele consegue ler a minha mente? Voltei a pensar, me arrependendo no instante seguinte em que perguntei.
— Você é minha convidada dentro deste castelo. Desejo que se sinta à vontade para partir caso assim o queira. Até lá, quero que seja bem-vinda.
Aquele homem grande e magro tinha o olhar mais assustador que eu já tinha fitado em minha vida e quando encarei aquelas pupilas que pareciam brilhar num tom carmesim, foi como se ele tivesse me desvendado inteira. Dos pés à cabeça. Aliado a uma vontade muito grande de desabar em prantos, senti um frio percorrer a minha espinha. Como é que eu vim parar aqui?
Durante o jantar oferecido por Dumitri Ardelean, como o homem assustador dizia se chamar, descobri que ele tinha feito um acordo com Costel e que o meu irmão havia me usado como uma espécie de garantia até que ele fosse cumprido.
— Eu fui vendida a você?
Meu tom pareceu rude em excesso e uma empregada corpulenta que me servia um suculento prato de ciorbă de burtă congelou com a concha cheia no ar. Meu estômago roncava. O cheiro da sopa de tripas estava me dando ainda mais fome.
— Por assim dizer, minha cara. — e ele sinalizou para que a serviçal de olhos esbugalhados se retirasse tão logo ela me serviu. O prato dele permaneceu vazio sobre a mesa que se estendia por uns seis metros de comprimento entre nós. Da cabeceira, ele degustava um vinho Bordeaux numa taça de cristal e mais nada. — O senhor Grigorescu quis se certificar que sua bela irmã estaria segura em minha companhia. Ele foi muito bem pago por isso.
Um sentimento de abandono mesclado a ódio me tomou logo em seguida, e em pensamento, eu amaldiçoei Costel. Depois de tudo que tínhamos passado juntos nos últimos meses, não considerava justo que ele me vendesse daquela forma a um total desconhecido. Estávamos famintos, necessitados, mas podíamos dar um jeito na situação, fazê-la melhorar a nosso favor. Não podíamos? Pensei, desolada.
Embora condenasse a atitude do meu meio-irmão, eu continuava morta de fome, o que me fez aceitar sem grande cerimônia os três pratos diferentes oferecidos por Dumitri no jantar. Depois do ciorbă de burtă, veio um delicioso sarmale, fechando com uma saborosa zanusca que me fez lamber os beiços e lembrar da minha mama. Há muito tempo eu não comia de me fartar daquele jeito — não pelo menos desde os banquetes oferecidos por minha santa mãe para festejar as temporadas de muita colheita — e embora fosse desconfortável estar à mesa com aquele homem estranho de pele branco-gelo, eu não podia reclamar de sua hospitalidade, nem da de seus empregados — os oito diferentes que eu tinha contado apenas durante a refeição.
Como se tivesse realmente lendo os meus pensamentos, Dumitri ficou quase que o tempo todo apenas me observando, degustando vagarosamente o seu vinho. Eu estava constrangida. O vestido que haviam me dado era fino demais e deixava muito à mostra com o seu decote profundo. Eu sentia frio, e usando um dos braços, procurei cobrir o volume dos meus seios do olhar indecente daquele homem misterioso. No instante seguinte, o ouvi querer saber mais sobre a vinícola de Grigore.
— Grigorescu mencionou a fazenda do pai de vocês. Conte-me mais sobre ela.
Contei-lhe brevemente o processo desde a colheita das uvas à fermentação do vinho e logo em seguida, ele me deu uma taça do seu Bordeaux para que eu provasse. Voltando a sorrir sem mostrar os dentes, ele disse que encomendaria uma caixa da bebida fabricada por Grigore pessoalmente.
— Não quero que sinta saudades de casa enquanto for minha hóspede, Alina.
Me tremi de cima a baixo quando ele disse aquilo, e mais tarde, após o jantar, quando fui induzida a voltar para meu quarto-prisão e a porta grossa de carvalho se fechou atrás de mim, chorei sozinha em minha nova cama, praguejando Costel por me usar feito uma mercadoria.
Se o encontrar novamente algum dia, arranco-lhe o pau com os meus dentes, jurei a mim mesma.
NOS DOIS PRIMEIROS DIAS que passei como hóspede do enigmático Dumitri, eu fui muito bem tratada por ele e seus lacaios. Embora não tivesse autorização para conhecer os demais ambientes do soturno castelo que mais parecia um intrincado labirinto de corredores sombrios, todos agiam com extrema cortesia me acompanhando do quarto ao banheiro, de lá para a sala de jantar e dali de volta para o meu quarto. Eu tinha roupas limpas à minha disposição, a água do banho estava sempre aquecida e não podia me queixar da comida que era sempre farta. Experimentei pratos que nunca antes tinha ouvido falar, de receitas vindas da Bulgária e até da Índia. Dumitri fazia questão que eu estivesse sempre bem alimentada, me encarando de perto enquanto eu comia sem nunca botar nada na própria boca. Parecia não sentir fome, porém, a sua sede era insaciável. Todos os dias tinha uma garrafa nova de vinho sobre a mesa. — Pedirei a sobremesa agora. Vamos ver o que os meus cozinheiros prepararam hoje. — Ele batia du
EU ENXERGUEI duas velas negras quase completamente derretidas no bocal de um castiçal de ferro dourado e lustrado logo que abri as pálpebras. Minhas pupilas demoraram para focar o objeto atado à uma das paredes petrificadas do castelo, mas quando o fizeram, foi como se a luz do sol tivesse retinido em meu rosto. Vozes cada vez mais nítidas e próximas enchiam-me os ouvidos trazendo-me desconforto. Uma carroça carregando esterco passava ruidosa pela via de paralelepípedos. Um cão pulguento erguia a pata traseira em direção à parede lateral de um armazém enquanto um líquido quente e asqueroso era direcionado a ela em jatos intermitentes. O cheiro! Oh, Deus! O cheiro! Voltei a sentir os meus braços logo que percebi que estava viva. Levei a minha mão em direção ao meu rosto e quase não a consegui controlar. Meti um dedo bem dentro do olho. Não senti dor alguma, e então, tentei erguer o meu tronco que pesava mais que o normal, comprimindo-me contra a cama. Uma senhora de sotaque búlgaro te
DUMITRI ME ACOMPANHOU mais algumas noites em caçada depois da primeira vez e vê-lo matando pessoas desavisadas tão discriminadamente de forma tão sádica me causou certo desconforto. Havia prazer nele em tirar uma vida humana e embora eu agora fosse dependente de sangue para sobreviver, algo dentro de mim se recusava a aceitar aquela nova rotina. Quando chegou a minha vez de caçar sozinha, escolhi que não queria tirar a vida de pessoas inocentes e fui em busca de gente que valesse a pena matar. Comecei a espreitar becos e vielas onde ladrões e estupradores costumavam fazer as suas vítimas e ali comecei a caçar de verdade me passando antes por presa. Eu circulava por aquelas bandas usando vestidos decotados de tecido claro e fino, o que facilitava a minha identificação pelos pervertidos da cidade. Eu havia sido transformada em vampira em minha melhor forma física. Era jovem, bonita, tinha curvas bem acentuadas para uma garota de dezessete anos — agora dezoito — e aquilo chamava a atençã
ERA INVERNO na Europa quando eu e Costel chegamos à Kainsk — atual Kuibysev — localizada 315 km a Oeste de Novosibirski. Situada às margens do rio Om, a cidade tinha área em torno de 110 km² e havia sido fundada como um forte militar ainda no século XVIII. Com uma população pequena, formada principalmente por camponeses e lavradores, a cidade sofreria diretamente com o que estava para acontecer no restante do país nos próximos anos no governo do czar Alexandre II. Com uma gestão humanitária voltada para o povo, Alexandre II assumiu sua função de governante um ano após a minha chegada à Rússia. A Guerra da Crimeia ainda estava movimentando o Velho Continente e o czar havia decidido manter as forças russas em combate, o que mais tarde se mostrou um erro hediondo. A Inglaterra e a França esmagaram a Rússia um ano mais tarde, o que fez com que Al
A SITUAÇÃO POLÍTICA estava mudando rapidamente na Rússia sob o reinado de Alexandre II e além da abolição da servidão promulgada pelo czar, uma nova Assembleia Constituinte instalada por grupos radicais começava a discutir ideias socialistas dentro do país. Enquanto intelectuais e estudantes viam no campesinato uma classe revolucionária contra o regime de estado atual, a aristocracia via com preocupação o fim de certos privilégios antes fortemente gozados por ela. Aqueles assuntos eram amplamente comentados durante as festas que agora eu e Costel frequentávamos como os irmãos Vassiliev, e graças às aulas de Ivan, conseguíamos discutir de igual para igual com os prolixos. Nos passávamos facilmente entre eles como os órfãos de magnatas à frente das empresas dos pais, mas foi numa daquelas noites que me deparei com algué
UMA SEMANA HAVIA SE PASSADO desde que Adon tinha enfrentado Costel tentando fazê-lo entender que ele precisava ser cauteloso sobre nosso passado na Romênia, e naqueles dias, eu tomei a decisão que considerei a mais acertada.— Me leve até a mulher que pode me curar de minha maldição.Adon tinha se recuperado bem dos ferimentos quase mortais e esperamos a noite para tomarmos uma embarcação que iria nos levar desta vez para a Espanha, país onde morava Iolanda Columbus, uma bruxa capaz de me curar. Devido minhas condições, eu era obrigada a me esconder nos porões do barco sempre que o sol raiava do lado de fora e os ratos eram tudo que eu tinha para me banquetear por dias inteiros lá embaixo. Tinha aprendido logo em minhas primeiras semanas como vampira que a radiação solar era extremamente nociva em contato com minha pele e que eu não podia perambular por a
ERA DIFÍCIL SABER com precisão, mas segundo o que Alejandro relatou algum tempo depois, a viagem a bordo daquele barco, entre os Açores e a América do Sul, levou algo em torno de dois meses. Talvez mais, mas com certeza não menos. Parei de contar os dias por volta da terceira semana enfurnada em outro porão sujo e malcheiroso, onde os marujos jogavam todo tipo de resto de alimento consumido lá em cima, bebidas e às vezes até cadáveres que seriam jogados ao mar posteriormente. Alejandro tinha feito um acordo com o capitão do barco impedindo que outras pessoas além dele descessem ao porão por minha causa, e assim, eu tinha sempre a oportunidade de vê-lo, já que ele era o responsável por trazer e levar as cargas guardadas ali. Usando bastante de sua lábia, ele tinha convencido seu colega comandante que eu era uma pessoa muito doente que necessitava de cuidados especiais
TRUJILLO ERA UMA CIDADE muito aprazível com área total de 1100 km² conhecida como a “Capital da Cultura do Peru”, e apesar de estrangeiros — com o agravante de um de nós ter ascendência espanhola — fomos muito bem recebidos por seu povo. Minha temporada na calorenta Espanha não tinha sido longa o bastante para que eu já estivesse acostumada ao calor dos trópicos que fazia na América do Sul, e demorei a me adaptar ao clima insuportavelmente árido que fazia no litoral dali. Nos instalamos em um casebre rústico à beira-mar que Alejandro conseguira alugar vendendo um cordão de ouro que trazia desde a Europa no pescoço — e escondido muito bem dos apostadores no barco — e com o que sobrara do dinheiro, ele conseguiu abastecer o lugar com mantimentos que durariam cerca de um mês. Para que eu não tivesse que viver de peixe mais uma vez, comecei a ca