ERA DIFÍCIL SABER com precisão, mas segundo o que Alejandro relatou algum tempo depois, a viagem a bordo daquele barco, entre os Açores e a América do Sul, levou algo em torno de dois meses. Talvez mais, mas com certeza não menos. Parei de contar os dias por volta da terceira semana enfurnada em outro porão sujo e malcheiroso, onde os marujos jogavam todo tipo de resto de alimento consumido lá em cima, bebidas e às vezes até cadáveres que seriam jogados ao mar posteriormente. Alejandro tinha feito um acordo com o capitão do barco impedindo que outras pessoas além dele descessem ao porão por minha causa, e assim, eu tinha sempre a oportunidade de vê-lo, já que ele era o responsável por trazer e levar as cargas guardadas ali. Usando bastante de sua lábia, ele tinha convencido seu colega comandante que eu era uma pessoa muito doente que necessitava de cuidados especiais
TRUJILLO ERA UMA CIDADE muito aprazível com área total de 1100 km² conhecida como a “Capital da Cultura do Peru”, e apesar de estrangeiros — com o agravante de um de nós ter ascendência espanhola — fomos muito bem recebidos por seu povo. Minha temporada na calorenta Espanha não tinha sido longa o bastante para que eu já estivesse acostumada ao calor dos trópicos que fazia na América do Sul, e demorei a me adaptar ao clima insuportavelmente árido que fazia no litoral dali. Nos instalamos em um casebre rústico à beira-mar que Alejandro conseguira alugar vendendo um cordão de ouro que trazia desde a Europa no pescoço — e escondido muito bem dos apostadores no barco — e com o que sobrara do dinheiro, ele conseguiu abastecer o lugar com mantimentos que durariam cerca de um mês. Para que eu não tivesse que viver de peixe mais uma vez, comecei a ca
COMEÇOU COM UM zumbido. Depois pareciam sussurros ouvidos através de uma parede. Então era o tamborilar de dois corações. Um jovem e vigoroso, o outro errático e irregular. O ruído de martelo e cinzel sobre pedra sólida ecoava no que parecia ser uma câmara oca. Havia outros sussurros mais distantes, indefiníveis. Podiam ser dez ou vinte. O som de máquinas mecânicas fazia estremecer as paredes externas. Os sussurros agora eram vozes. Firmes, nítidas. Eram dois. Falavam num idioma estrangeiro anasalado. Me parecia inglês.— Ei, Peter! Traga aqui a lanterna. Acho que tem algo dentro dessa câmara.Estavam perto o suficiente agora para que eu sentisse o odor de suor em suas peles. O velho cheirava a colônia vagabunda de alfazema. O mais jovem tinha cheiro de leite estragado dentro das calças e suas mãos tremiam segurando um instrumento pontiagudo de
MACHU-PICCHU TINHA sido descoberta em 1911, em meio a uma floresta que ocultava aquilo que parecia ser os restos de uma civilização que não existia mais há muito tempo. O Império Inca sempre despertou interesse da humanidade devido sua disciplina incrivelmente aguçada para com a agricultura e arquitetura, mas além disso, havia muito a ser descoberto sobre o lado místico dos antigos habitantes da região onde agora ficava o Peru. Quando a encontrei, guiada até ela por uma espécie de magia pululante que emitira propositalmente na calada da noite, a velha bruxa estava sentada diante de uma fogueira, de olhos fechados, em meio a uma clareira na floresta, em meditação. Parecia mais idosa do que sua real idade provava. Tinha a pele escura, traços indígenas e fartos cabelos pretos já perdidos entre os muitos fios grisalhos que desciam do alto de sua cabeça. Vestia um tipo d
QUANDO EU RETORNEI para a Europa, o Velho Continente era como um barril de pólvora prestes a explodir, o que não demorou a acontecer. A Revolução Industrial iniciada nas últimas décadas do século XIX tinha acirrado os ânimos entre os principais países europeus e por uma disputa grande de territórios vizinhos, teve início também o que muitos historiadores chamaram de corrida armamentista ou “paz armada”.O conflito entre o Império Austro-Húngaro — fundado após meu período de hibernação em Cusco —, a Bósnia e a Sérvia, fez com que a Rússia também entrasse na contenda, o que ocasionou outras unificações e agravou a crise entre os países da chamada Tríplice Aliança — formada pela Alemanha, o Império Austro-Húngaro, o Império Otomano, a Itá
MEU CORPO AINDA estava enterrado em uma câmara mortuária no Peru enquanto a Guerra dos Balcãs agitava os países do Sudeste europeu. O conflito bélico pela posse dos territórios remanescentes do Império Otomano fez com que Sérvia, Grécia, Turquia — a nação sucessora do Império Otomano — e a Romênia, lutassem umas com as outras para expandir suas fronteiras. Quando retornei para a Europa, o Tratado de Bucareste havia cedido parte de Dobruja aos romenos — a outra metade tinha ficado para os búlgaros — e entre a Bessarábia e a Transilvânia, optou-se pela segunda para se manter como parte do território do país onde eu havia nascido.Em 1916, enquanto eu vagava pela Europa atrás de vestígios de Adon e Iolanda, a Romênia se juntou à Grã-Bretanha, França, Rússia e Itália em outro confl
O CONDADO DE SZOLNOK era localizado cerca de 100 km da capital húngara Budapeste e tive trabalho para encontrar o sobrado de esquina onde a amante de meu irmão devia estar escondida. Após frequentar o bordel onde ela trabalhava e interrogar algumas das prostitutas casualmente acerca do sumiço de Hajna, eu havia descoberto através de minha telepatia que Shirley, a magricela que eu havia abordado mais visceralmente, era a melhor amiga da loira dançarina de czardas. O endereço que ela havia me fornecido de maneira indireta era preciso e eu invadi o local pelo telhado, ouvindo a pulsação acelerada da garota no quarto a fazer as malas.— Está indo viajar, prostituta?Os olhos verdes de Hajna se arregalaram quando ela me viu despencando do telhado frágil logo em cima dela, começando a comprimi-la contra o chão rústico do quarto de pouco mais do que cinco metros quadrados.<
O ESCRITÓRIO DE ANTROPOLOGIA Social onde Gavril trabalhava ficava localizado numa das últimas salas de um corredor mal iluminado e abandonado nos fundos do Museu Nacional de História. O aspecto em seu interior era tão caótico quanto parecia do lado de fora e um sem número de bugigangas e manuscritos volumosos se empilhavam em estantes pessimamente organizadas. Enciclopédias de capa dura brigavam por espaço com quinquilharias de todo tipo e perdi um tempo observando as divisórias de madeira entulhadas em três das quatro paredes do local que mais parecia um depósito para objetos obsoletos. Logo que entrei, meu olfato foi agredido por um odor acre de mofo proveniente do acúmulo de papel velho naquela sala e o rapaz me indicou uma poltrona desgastada largada num canto enquanto ele se dirigia até a estante à direita da porta de entrada.— Deve estar aqui em algum lugar. Me d&ecir
A SEGUNDA SEMANA sem notícias de meu irmão foi a mais cruel de todas e de repente, comecei a acreditar que não conseguiria mais salvar Costel das garras de seus raptores passado tanto tempo. Eu conhecia bem o que era ser torturada e queimada viva por bruxos malignos que tentavam dobrar minha vontade psíquica e sabia também que as defesas mentais de meu irmão podiam não ser tão fortes quanto as minhas. Adon e Iolanda tinham tentado ferrenhamente dominar minha mente com o auxílio de sua magia arcana e eu só tinha conseguido sair com vida daquele porão por causa da ajuda de Alejandro. Eu tinha passado horas sob o jugo dos dois e carregava até aquele momento as cicatrizes que o amuleto incandescente havia me causado na pele. Costel já estava preso há uma semana. Os danos agora podiam ser irreversíveis. “Oh, meu irmão. Aguente firme, por favor! ”.Al