NÓS ENTERRAMOS Enzo Di Grassi num dos jazigos de sua família em Veneza e aquela cerimônia foi tão curta quanto dolorosa. Eu estava vestindo um sobretudo preto sobre um conjunto de blusa e saia de mesma cor e havia prendido meus cabelos num rabo de cavalo desleixado. Além de dois ou três familiares de Enzo que eu mal havia conhecido na comemoração de nosso casamento, estavam presentes a babá francesa Danielle, meu motorista siciliano Fabrice e todos os Batedores de Ferro. Miguel Harone parecia inconsolável ao lado da esposa vendo o caixão de meu marido ser abaixado até a cova enquanto os presentes começavam a jogar pétalas de rosa. Alex tremia aos prantos com suas mãozinhas segurando firme em minha roupa, com o rosto cheio de lágrimas em meu peito incapaz sequer de dar o último adeus ao pai. Ela ainda passaria as próximas semanas amuada em seu quarto.
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NO OUTONO DE 1954, eu precisei me ausentar de casa para as negociações presenciais com minha nova aquisição na Arábia Saudita e eu viajei para o Oriente Médio com Miguel Harone, cujo filho Jorge estava prestes a nascer no Brasil, para onde ele havia se mudado recentemente. O espanhol havia aberto uma filial de sua consultoria administrativa na América do Sul e passaria a operar de lá a partir do nascimento de seu primeiro herdeiro. Após aquela negociação com os empresários árabes que me tornaria a proprietária de uma das mineradoras mais rentáveis do Oriente, seria bem mais raro que eu me encontrasse com Harone e sua esposa por aí e ele fez aquele último trabalho para honrar sua amizade com Enzo Di Grassi. Todos os trâmites legais levaram alguns dias e mesmo instalada num luxuoso hotel de Riad, com toda a riqueza e o conforto oferecidos por um xeque ára
EU HAVIA EVITADO aquele reencontro por quase cem anos, mas quando senti traços do vinho francês preferido de Dumitri nos corpos de meus fieis amigos e serviçais, eu parti de Vaucluse na França direto para Bucareste, na Romênia. Apesar de ter feito várias visitas à minha terra ao longo de minha vida eterna, eu nunca tinha tido coragem de retornar àquela parte de Bucareste desde que havia envenenado o vinho daquele que havia me transformado em vampira. Tinha se passado muito tempo. A Guerra dos Balcãs, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial podiam ter acabado com o castelo daquela abominação, mas quando lá cheguei, ele estava intacto. Sua fachada apresentava um tom mais encardido, ele estava decadente, com buracos de bala enfeitando a região próximo da nave frontal… mas ele ainda estava erguido na paisagem soturna da cidade.Era noite quando cheguei na Romênia. Eu estacio
DIFERENTE DO QUE ACONTECIA com qualquer mortal, eu não conseguia captar os sinais vitais de Costel e aquilo tinha garantido que sua presença só fosse descoberta por mim num último instante antes dele degolar Dumitri. Meu meio-irmão tinha me privado de minha vingança contra o único homem que eu já havia temido na vida e agora só me restava caçá-lo e puni-lo por seu erro. Não havia qualquer sinal de outras pessoas no interior daquele castelo sombrio e eu o percorri inteiro tentando encontrar Costel. Ele não tinha mais do que poucos minutos para sugar o que restara do sangue do corpo de nosso mentor antes que o líquido frio se tornasse indigesto e foi exatamente esse tempo que ele levou para reaparecer. Meu meio-irmão estava na sala espaçosa do lugar, a encarar a lareira apagada. A catana estava presa a uma bainha de couro às suas costas e ele parecia me esperar ali. E
NAS PRIMEIRAS NOITES ela vinha me visitar com frequência. Dava-me um beijo com os lábios úmidos em minha testa, levantava-me o lençol e se aninhava em meu peito. Ficava-me a fazer carícias no rosto enquanto me falava como havia sido seu dia. Contava das falésias onde cavalgava com Ragazza ao pôr do sol, dos vales verdejantes onde caminhava de mãos dadas com o pai e das colinas que visitava com Danielle. Fabrice a levava para ver o mar, mas tirava-lhe da água quando as ondas quebravam muito próximas da costa, preocupado. Remy a ajudava a colher conchas na praia parando para lhe fazer companhia e ouvir o barulho ressonante do mar dentro delas. Cada lembrança terminava com um risinho doce, suave. O calor que seu pequeno corpo me transmitia embaixo das cobertas era reconfortante. Fazia meu coração pulsar apressado. Pulsar como se eu estivesse viva. E eu ficava esperando que ela retornasse no outro d
O PROFESSOR RASHFORD havia montado uma base provisória da Teia no subsolo de um edifício centenário localizado bem no centro de Dublin e foi lá que acabei reencontrando alguns operativos que não via há anos. Eu havia chegado à ilha apenas e tão somente por causa de seus famosos bares e suas bebidas de alto teor alcóolico e por ali já estava há alguns meses, arrumando brigas ocasionais em becos sujos e em lugares mal frequentados. Nem lembrava mais por qual razão estava naquela parte do planeta. Tudo que me interessava era a cerveja e o uísque do lugar, embora o vinho tinto continuasse sendo mais agradável a meu paladar apurado.Jacqueline Bazelaire não parecia tão melhor do que eu mentalmente e reencontrá-la viva depois do que havíamos passado juntas em Düsseldorf e principalmente após tanto tempo, tinha sido estranho. Quando ela chegou par
EU NÃO SEI DIZER o que aconteceu entre os segundos em que tive meu último pensamento lúcido, ainda dona de meu próprio corpo e o momento em que miolos foram projetados contra meu rosto. Quando voltei a mim, a mulher-demônio estava caída sobre a chama da base do círculo de fogo e meu sobretudo já começava a queimar até o braço.— Alexia! Alexia!A voz de Jacqueline soava fora da roda de fogo e quando olhei, ela estava segurando um rifle cujo cano fumegava.— Seu sobretudo!Ainda desorientada, me vi tirando o casaco e o jogando de lado enquanto ele queimava. A mulher ruiva apresentava agora um rombo entre os dois olhos provocado pelo tiro de rifle disparado pela francesa, mas ela não havia sido abatida. Erguendo-se como se a bala não tivesse arrancado metade de seu cérebro, a figura avançou mais uma vez sobre mim, quando outro tiro lhe acertou
EM 1964 MINHA mineradora petrolífera na Arábia Saudita havia faturado mais nos seis primeiros meses do ano do que em todo o ano fiscal anterior e aquele crescimento exponencial me deu ânimo novo para voltar aos negócios e participar mais ativamente de seu gerenciamento. Eu havia transformado a mineradora venezuelana em uma filial de minha empresa principal e com a contratação de vários técnicos e engenheiros petrolíferos para trabalhar em ambos os lugares coloquei a Rux-Oil no topo das listas das companhias mais bem-sucedidas da década.Os advogados da Casavette & Montanaro que eu havia contratado há mais de dez anos haviam descoberto que um financiador ucraniano misterioso estava por trás da diretoria da Novyy Kordon — a empresa que havia comprado minhas ações da Rassvet — e quando o grupo começou a pedir diversas concordatas, fazendo com que o val
NO FINAL DAQUELE ANO, eu me mudei para um castelo em Edimburgo, na Escócia e de lá fiquei a tocar os negócios da Rux-Oil tendo minha presença requisitada raras vezes tanto na sede em Riad quanto em sua filial na Venezuela. Depois de tudo que havia me acontecido em Vaucluse, depois de tantas perdas, decidi contratar apenas um empregado para cuidar do castelo, mas suas características físicas peculiares faziam dele o servo perfeito: Ele era um licantropo.Eu havia conhecido Sergio Gutierrez em Caracas, numa de minhas visitas à mineradora e era uma noite comum de final de expediente quando eu o encontrei escondido no banheiro de meu escritório, sujo, rasgado e ensanguentado. Ele não devia ter mais do que dezessete anos na época e os moradores do bairro onde ele vivia haviam descoberto no que ele se transformava em noites de lua cheia, passando a persegui-lo. Vi na história daquele menino a minha pr&oacu