AYLA..Ainda estava escuro quando desci as escadas, cada degrau ecoando o peso de tudo o que acabara de acontecer. A casa estava mergulhada no silêncio, exceto pelo som abafado dos meus soluços. Meu coração pesava no peito como uma âncora, mas minha mente estava decidida. Se aquele era o meu destino, eu o enfrentaria de cabeça erguida. Assim que cheguei à sala, vi meus pais esperando por mim, uma cena que eu jamais esqueceria.Meu pai estava de pé, encostado na parede com os braços cruzados, o rosto molhado de lágrimas. Ele evitava me olhar diretamente, como se a dor de me ver partir fosse insuportável. Sua expressão mostrava uma tristeza que ele mal conseguia conter, como se quisesse me abraçar mais uma vez, mas estivesse preso à tradição que o impedia. Sua respiração pesada era o único som que preenchia a sala.Minha mãe, por outro lado, estava sentada no sofá, com uma postura rígida e o olhar gélido fixo no chão. O amor que antes eu via nos olhos dela agora havia se transformado
Eu me afastei levemente, olhando nos olhos dela, que brilhavam com lágrimas. Ver o sofrimento da minha avó doeu mais do que qualquer outra coisa naquela noite. Ela passou os dedos pelos meus cabelos, acariciando meu rosto como se quisesse consolar uma ferida profunda que não podia ser curada.— Sim, vó... eles me mandaram embora. As palavras saíram arranhando minha garganta. — Não tem mais volta. A tradição... eu sabia que isso iria acontecer. Só não sabia que seria tão rápido. E agora... agora estou sozinha.Ela fechou os olhos por um momento, as lágrimas finalmente escorrendo por suas rugas marcadas pelo tempo. O silêncio da casa, tão familiar e acolhedor, agora parecia sufocante.— Você não está sozinha, Ayla. Ela balançou a cabeça, tentando se recompor. — Nunca estará sozinha enquanto eu estiver viva. Mas... e agora? O que você vai fazer?Suspirei profundamente, sentindo o vazio crescer dentro de mim.— Eu não sei. Admiti, a verdade pesada nos meus lábios. — Só sei que não po
AZRAEL . . Eu sentei na calçada, com as costas encostadas contra a parede fria de concreto, os braços envolvendo meus joelhos, e o olhar perdido nas sombras que se estendiam ao meu redor. Eu estava exausto, como se cada célula do meu corpo carregasse um peso que eu não conseguia entender, e o vazio em meu peito era uma ferida latente, pulsando como um segundo coração. O céu parecia indiferente ao meu tormento, e as pessoas passavam por mim como se eu fosse apenas mais uma pedra na calçada. Minha fome era um buraco, uma dor afiada que se espalhava pelo estômago e subia até a garganta, me deixando tonto. A sensação era tão intensa que por um momento achei que desmaiaria ali, abandonado e esquecido entre passos e ecos. Meu estômago roncou, um som profundo e selvagem que se misturava ao murmúrio da cidade, tão alto que parecia que eu era apenas esse som, essa fome, essa necessidade avassaladora que parecia querer me consumir por completo. Eu sentia uma estranha vertigem, uma fraq
O dia estava nublado, como se o céu também pressentisse a seriedade daquele encontro. — Venha até aqui.Eu atravessei a cerca de arames farpados e caminhei até ela.Ela já estava quase curvada pela idade e pelo peso de histórias que eu sequer ousava imaginar. Suas mãos, finas e trêmulas, tentavam abrir a porta enquanto me observava com olhos envelhecidos, fundos e opacos, como se escondessem anos de dores e segredos. Seu rosto era marcado por rugas profundas que pareciam mais cicatrizes do que sinais de envelhecimento. A cada movimento dela, era como se um pedaço de sua própria essência se esvaísse.— Entre, menina.Disse Eliza, com a voz rouca e fraca, quase como um sussurro cansado.Ao passar pela porta, senti uma estranha sensação de respeito e medo. A cada passo em direção à pequena casa de madeira, eu era tomada por um frio que nada tinha a ver com o vento gelado daquele dia. A casa, humilde e desgastada pelo tempo, parecia mais uma extensão dela, envelhecida e triste. As parede
O calor da cozinha envolvia meu corpo, mas uma frieza profunda se instalou em meu coração. Enquanto Eliza me olhava, percebi que estávamos à beira de uma revelação que poderia mudar tudo. Eu não sabia o que esperar, mas a determinação de descobrir a verdade pulsava dentro de mim.Ela respirou fundo, como se estivesse se preparando para abrir um baú de segredos que permanecia fechado por gerações.— Muito bem, então. A história da nossa família começou há muitos séculos, em uma época em que os anjos não eram vistos como meras lendas. Eles vagavam entre nós, e um deles, um anjo obsessivo de imenso poder, buscou a pureza de uma de nossas ancestrais, chamada Clara.Enquanto falava, Eliza me transportava para um tempo em que a vida era tão diferente, e o perigo estava à espreita em cada esquina.— Clara era uma jovem de beleza impressionante, e seu coração era puro como o cristal. O anjo a observava, atraído não apenas por sua beleza, mas pela luz que emanava dela. Ele tentou seduzi-la com
A escuridão ao meu redor foi se dissipando, e percebi que estava em uma montanha elevada, entre o céu e a terra, suspensa no vazio, como se o próprio mundo tivesse me deixado na fronteira entre a luz e as trevas. De um lado, o sol tocava a terra em um dourado sereno e acolhedor; do outro, uma escuridão densa e antiga pairava, sugando toda a luz ao seu redor. Eu estava no limiar entre esses dois reinos, como se tivesse sido trazida ali para uma decisão.Então, uma voz profunda e fria irrompeu no silêncio, preenchendo o ar com uma sensação de poder que me arrepiou até a alma. Não havia corpo, apenas a presença e a voz que parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo, eu senti a mesma sensação quando estava sendo observada por Azrael, mas aquela presença era ainda mais forte.— Você se acha muito esperta, menina...A voz disse com um desprezo gélido. — Todos dessa família se acham mais fortes e inteligentes do que nós, como se a força humana estivesse acima da força sobrenatural. Seu p
Eu despertei de repente, como se tivesse sido puxada de volta para o meu corpo. O meu peito subia e descia rapidamente, minha respiração estava pesada, e gotas de suor frio escorriam pela minha testa. Meu coração parecia um tambor, batendo tão forte que eu podia ouvi-lo nos ouvidos. Abri os olhos e dei de cara com Eliza, que me observava com uma preocupação evidente.— Ayla?Ela chamou meu nome suavemente, mas sua voz tremia. — Você está bem?Eu tentei responder, mas minha garganta estava seca. A sensação da tempestade, a voz, o vazio... tudo parecia tão real que eu demorei um instante para me situar.— O que... o que aconteceu?Consegui perguntar, ainda tentando processar.Eliza se ajoelhou ao meu lado, pousando uma mão leve no meu ombro.— Você simplesmente apagou, querida. Estávamos conversando, e de repente, você ficou pálida e caiu. Tentei te acordar, mas parecia que estava em outro lugar.Me sentei lentamente, ainda sentindo o peso daquele sonho ou visão? Olhei ao redor. Estav
AZRAEL ..A madrugada parecia interminável. Eu me sentei em um canto qualquer, encostado em uma parede velha e úmida, sentindo o mundo ao meu redor se apagar lentamente. As ruas, antes repletas de passos apressados e murmúrios, foram sendo tomadas por um silêncio quase opressor. Era como se o mundo inteiro tivesse se recolhido para o conforto de suas casas, enquanto eu permanecia sozinho, em um lugar que não reconhecia, lutando contra uma fome que parecia ser a única coisa que me conectava à realidade, fome essa que não passou com o pão e a maçã.Os poucos transeuntes que ainda vagavam pela noite me ignoravam completamente. Meu estômago roncava, mas não era apenas a fome física que me consumia; era algo maior, uma ausência que eu não conseguia nomear. A sensação de perda me sufocava, como se houvesse um vazio em minha alma que eu não sabia como preencher.Olhei para o céu, esperando encontrar algum tipo de resposta nas estrelas, mas elas brilhavam indiferentes, distantes, inalcanç