Em algum lugar, entre o limite da cidade e a zona rural.
Danu sentada ao lado da bicicleta e verifica a mochila. Havia arrumado o necessário para quatro dias, além de um lanche para a estrada. Prende os pertences com segurança na bicicleta, ajeita a blusa de ciclista folgada para seu corpo, verifica, por uma última vez, o equipamento de proteção e parece ignorar a ausência das joelheiras.
Contando com ela, estão em cinco amigos, dois rapazes e três garotas. Juntos, seguem a parte da estrada de chão formada de descidas, apenas necessitam controlar a velocidade da bicicleta e deixar a gravidade realizar o restante do trabalho. Assim, seguem até chegar à parte plana.
Mesmo com marchas para facilitar a viagem, as pedaladas não parecem fáceis. Danu fica ao final da fila e, depois de certo tempo, distante cerca de dez metros dos demais. Sempre que isso acontece, não tarda para encontrar a vizinha parada à beira da estrada. Com um sorriso igual ao das fotos no mural, ajeitando as joelheiras emprestadas enquanto cantarola alguma música pop brasileira dos anos noventa, a espera para então seguirem juntas.
Em poucas horas, a parte plana chega ao fim e tem início uma subida. A cada pedalada, os esquálidos músculos de suas pernas tremem, o suor da fronte goteja uma traz outra, caí e esparsa sobre a terra calcária polvorosa. Sinal, claro, de que até então a chuva não chegara por essa região.
Não é sua primeira vez nessa trilha. Contudo, faz exatos doze meses desde a última. Cerra os dentes e se esforça ao máximo para aumentar a velocidade. Concentra seus pensamentos nas imagens onde pôr fim encontraria os amigos e teria uma tranquila volta de carona sobre a carroça da caminhonete de algum parente do interior.
Tinham como objetivo deixar as bicicletas com um conhecido que vive ao pé da montanha e de lá traçar a trilha em meio à mata, como um atalho até a casa da tia materna de Danu. Lá, passariam o fim de semana e comemorariam o seu aniversário.
Não é das mais animadas para este tipo de esporte, mas, de toda forma, já está em um destino sem volta. Com sua sorte, se voltasse, passaria todo o feriado dessa data m*****a em casa, às escuras, sem dinheiro, comida e água. Além de sozinha com seus pensamentos. Não seria esse um destino ainda pior?
Quando a trilha começa a seguir ao lado da mata, desce uma forte cerração, que logo toma a forma de um espesso nevoeiro, com o qual é impossível enxergar um metro à frente. Porém, há apenas um único caminho estreito a seguir. Assim, de um lado, estão as intermináveis cercas para o gado e tenras pastagens e, do outro, a densa vegetação nativa.
Com calma, vez ou outra, fecha os olhos e rela com o ar fresco da floresta, continua a seguir a rota sem parar. Quando, então, alguns minutos depois, começa a prestar atenção ao seu redor. Desde que iniciara o caminho, não escuta nenhum ruído do barulho das rodas levantando as pedras ao chão. Nada de canto dos pássaros e dos inúmeros insetos sibilando ao fundo, muito menos a familiar conversa ruidosa e risadas energéticas de seus amigos. Em um ímpeto de insegurança, chama pelos amigos, e tudo que lhe resta é o silêncio no vazio. O suficiente para que uma onda lhe percorra o corpo, saltando cada pelo da pele.
Junta forças e começa a pedalar com mais ânimo. Tenta de tudo para sair dessa parte da estrada que a inquieta. Logo entra em um estado de pânico que a faz perder o equilíbrio e tomba à beira da estrada, tudo graças ao mesmo inseto que aparecera em sua janela nesta manhã. A personificação do mau agouro que surge do nada e passa a centímetros de sua orelha, zunindo a toda velocidade. Isso a faz desequilibrar, caí de um pequeno barranco e fere os joelhos ao ponto de sangrarem. Fica de pé com dificuldade e, mais uma vez, se esforça ao chamar pelos amigos, e mais uma vez ninguém responde. Limpa o sangue com a pouca água do cantil e verifica o estado da bicicleta em para sua surpresa, está intacta. Ao constatar, sorri com canto da boca, como se agradecera por um pouco de sorte.
Até que uma frase quebre o clima...
— Não escute as vozes...
Ergue as sobrancelhas e escancara a boca assustada, tentando entender se escutara algo ou não. Quando se vira para o lado, faz uma cara de espanto com o dito inseto pousado sobre a poça d’água, com a qual havia limpado seus joelhos. Ali, ele a drena em poucos segundos, agita as ruidosas asas negras e levanta voo para em seguida desaparecer ao se atirar à frente na densa neblina.
Com olhar perdido, Danu começa a hiperventilar. Recua devagar até tocar com as mãos trêmulas sobre a bicicleta tombada entre o matagal e a inclinação, a põe sobre as rodas e segue empurrando barranco acima até a estrada.
Ao pedalar, queixa-se da dor de forma involuntária, porém, segue firme volta por volta, dando impulso à coroa dianteira cada vez mais rápido, até alcançar uma velocidade frenética. Todo o tempo olha para trás e para os lados, todo o tempo cercada pelo paredão branco, e todo o tempo nota as mesmas cercas e árvores da floresta. Assim, segue por minutos, que pareceram horas. Por mais que tente, a impressão é de que ela não consegue deixar esse trecho da trilha.
Arregala os olhos e esboça um sorriso quando enfim avista um caminho que adentra a vegetação. Passa ao lado de um caudaloso córrego e segue determinada por uma descida úmida, até estar entre folhas negras apodrecidas. Porém, nesse trecho, as rodas começam a escorregar de um lado ao outro a todo momento. Então, a descida se torna mais íngreme e sua velocidade acelera, até chegar a um ponto de ser impossível parar, desce do selim e põe os pés ao chão, tenta frear, mas desliza junto à bicicleta.
Grita seco ao olhar para os lados e perceber que toda a floresta segue com ela, juntos: terra, pedras, raízes e árvores na mesma direção, caminho abaixo. Ainda tenta saltar da bicicleta, agarra os galhos a sua volta, mas tudo desmorona ao seu redor. Seguia inclinação abaixo. Em seguida, estica os braços para os lados em outra tentativa de se salvar, sente os galhos da margem a sua volta escorregar entre os dedos e o sumidouro ruge impaciente enquanto solta brancas baforadas polvorosas. Ao despencar, por fim, agarra o primeiro galho da árvore que alcança. Está naqueles momentos onde o desespero faz a pessoa urrar sem parar e todo o seu miserável dia passa como um filme em sua mente. Danu deve ter pensado que deveria ter ficado na cama depois do evento da janela daquela madrugada. Enquanto isso, na Faz Pão&Cia, a única padaria aberta no bairro neste dia. — Bom dia, Carlos! Me vê um pingado. — Dia, José... Coloca o copo americano sobre o balcão e, antes de realizar a pergunta, escut
Danu segue emaranhada entre os galhos de uma árvore centenária enquanto cai de ponta-cabeça. Durante a queda, o carrasco do destino não tem pressa, pondo o evento a transcorrer como em câmera lenta. As extremidades, raiz e copa travam vez ou outra entre as frestas das paredes no gargalo do buraco e, assim, reduz a velocidade de queda da árvore, que acaba recostada em equilíbrio na horizontal sobre a ponta mais saliente de uma rocha da parede. A força durante um movimento em gangorra faz com que Danu escorregue sobre o tronco até a frondosa raiz, o que descompensa o peso na outra extremidade. Lado este que começa a inclinar-se para cima. Agarrada às cascas grossas do tronco, rasteja com intenção de regressar até o outro extremo, mas cria uma descompensação do equilíbrio suficiente para que a copa se erga abruptamente, assim, o solavanco arremessa Danu até os galhos, como se a presença da garota fora o mesmo que nada. Então, a árvore volta a cair, e agora de pé, ela, mais uma vez, se pr
Aproxima a mão até a boca, com os lábios, agarra para morder a maior lasca de madeira que lhe transpassava o dedo médio, porém, em um ímpeto, segura a respiração e mete a língua no espaço vazio entre os dentes da arcada superior. Arregala os olhos quando o alcançou com o dedo para confirmar, parece não acreditar que lhe falta um incisivo lateral. Trêmula, respira fundo, encolhendo o corpo em posição fetal. Do jeito que está, a sua maneira, emite um chamado uma e outra vez. Provavelmente aguarda a resposta de seus amigos, em especial, da vizinha. Em aparente exaustão, adormece por alguns minutos, escondendo o rosto com as mãos, e sua mente mergulha no vazio profundo, como se a alma saísse do corpo, desistindo de tudo, até que de golpe arregala os olhos e se senta. Tenta várias vezes agarrar com os dentes a farpa do dedo médio, enfim logra com uma mordida lateral e, com um tremor nervoso nos lábios, acaba puxando o empecilho de uma só vez. Quando o arranca, tinha-lhe um orifício que p
No pequeno apartamento, a senhora elegante, agora chorosa, é amparada pelo homem fardado, em uma nova versão, não tão feliz, da foto presa à porta da geladeira. — Senhor, tem certeza de que esses mapas não apontam um possível destino da sua filha? — perguntou quando segurou dois dos mais novos, dentro de sacos para custódia de evidências. — Minha filha é fraca! E mal está conseguindo subir uma escada. Nunca iria pedalar até qualquer um desses pontos marcados nos mapas. Sua mãe reage a essas palavras o observando com ar de preocupação e incredibilidade. Os peritos criminais já haviam investigado cada metro quadrado do lugar e dado atenção especial à mancha de sangue no carpete do quarto, além da incomum ordenação de maior a menor de tudo que havia dentro da quitinete. No quarto, entre sussurros discretos, observavam os troféus: — Modalidade "Airsoft", Asa Negra? Eu não sabia que a filha do Fantasma era competidora olímpica de tiro. — Pois é, Novato. O chefe sempre foi contra. Quer
É visível que, a essa altura, suas mãos começam a lhe causar desconforto. Em uma pequena poça cristalina sob a pedra côncava, lava os dedos afetados — os três últimos de cada mão. Em um ímpeto involuntário, treme enquanto retira o restante das farpas com a boca. Seca as feridas em uma toalha de mão e, com cautela para não movimentar os dedos afetados, a espreme, retirando o excesso de água, então, a reserva. Usando o canivete do “kit”, rasga parte de uma camisa fina em tiras e as põe para enfaixar os dedos em pior estado. Com os ferimentos protegidos, começa a agir com certa normalidade. Apanha a toalha úmida e limpa o corpo onde o barro está mais evidente, revelando parte de seu corpo, de seios pequenos e ombros de ossos salientes com largura reduzida, músculos fibrosos e pernas maiores que a média; com facilidade, pôde passar por ser mais magra e jovem do que realmente é. Senta-se sob a luz natural e verifica os outros bolsos laterais da mochila. Seus olhos acendem ao encontrar o re
Como em todas as manhãs, tosse em meio à densa fumaça que sobe e cuida para que o fogo não apague. Segue alimentando a chama até que uma fogueira média surja devidamente montada de maneira circular com a madeira ordenada de maior a menor espessura. Com a cara comprimida, se senta ao lado e evita a todo tempo apoiar o peso sobre a perna ruim. Segura acima do joelho, a coloca sobre uma elevação e assim recosta na parede de pedra. Ali come a última parte da barra de cereal, toma dois goles de água e, com as pálpebras cada vez mais pesadas, sem perceber, fecha os olhos. Em seus sonhos, adentra lembranças profundas. Estava na caminhada com os amigos em meio à floresta, quando preferiu outra rota e se afastou solitária. Acaba por avistar homens armados, que trajam, de peito estufado, um conhecido colete, símbolo de traficantes da região. Congela ao reconhecer o rosto de um deles, o mesmo visto em pastas policiais que esmiuçou secretamente na casa do pai e que, ao folhear os arquivos, fico
Desperta ansiosa ao início da tarde. Se põe a coletar pedras perfeitamente redondas e ordená-las, um comportamento obsessivo, mas que parece manter sua sanidade. Até que dois dos habitantes obscuros saltam das sombras engendrados em uma disputa. Cada um preso a uma das extremidades da carcaça do que fora o primata abatido noites passadas. Puxam, sacodem e exigem o direito de terminar de devorar os últimos restos de ossos presos à cartilagem, articulações e troços da pelagem marrom de onde pendiam de um lado parte da cabeça; do outro, a cauda, tendo na linha média as quatro patas, que são agitadas de um lado ao outro ao léu. Um deles, pequeno e determinado, disputa com o mais antigo o dobro de seu tamanho, fazendo Danu erguer as sobrancelhas ao reconhecer que lhe falta parte de uma das magníficas antenas, e é ele o dono original da presa. Por um segundo, ela vê seu próprio ser tomar o lugar do animal e, arrebatada pelo pânico, cai para trás, sobre a pilha de lenha que havia criado, e t
Tem a cabeça do perdedor ostentado na ponta da lança enquanto alimenta com mais madeira a chama que quase se extingue. Nessa manhã e nas outras seguintes, o vômito matutino cessara. Abraça os joelhos e observa o círculo luminoso acima. Está em um dia de ar pesado; seu tornozelo aparenta estar menos inchado, contudo, ainda resmunga ao apoiar o peso do corpo sobre ele. Abre o frasco laranja e traga outros dois comprimidos. *Silêncio* Se ocupa de juntar mais lenha quando algo acima lhe chama a atenção. Abaixo da entrada, tenta gritar até que sua face se pôs vermelha, respira cansada e enfim para. Ri seco, parecendo conversar consigo mesma enquanto gesticula com as mãos. Arfa sem ar e se senta. Quando o Sol atinge o centro do sumidouro, é possível ver as ondas de calor emanando das pedras ao redor. Com o cabelo aderido à testa e a blusa branca colada ao corpo, a essa altura, já bebeu mais água do que fracionara para o dia. Da pele exposta, onde antes ossos saltavam salientes, agora sã