Danu segue emaranhada entre os galhos de uma árvore centenária enquanto cai de ponta-cabeça. Durante a queda, o carrasco do destino não tem pressa, pondo o evento a transcorrer como em câmera lenta. As extremidades, raiz e copa travam vez ou outra entre as frestas das paredes no gargalo do buraco e, assim, reduz a velocidade de queda da árvore, que acaba recostada em equilíbrio na horizontal sobre a ponta mais saliente de uma rocha da parede. A força durante um movimento em gangorra faz com que Danu escorregue sobre o tronco até a frondosa raiz, o que descompensa o peso na outra extremidade. Lado este que começa a inclinar-se para cima. Agarrada às cascas grossas do tronco, rasteja com intenção de regressar até o outro extremo, mas cria uma descompensação do equilíbrio suficiente para que a copa se erga abruptamente, assim, o solavanco arremessa Danu até os galhos, como se a presença da garota fora o mesmo que nada.
Então, a árvore volta a cair, e agora de pé, ela, mais uma vez, se prende onde alcança até que a raiz atinja em cheio e afunda no macio monte de barro no centro ao fundo, o que estabiliza a gigante. O impacto fez tremer toda a estrutura, fazendo a torpe tripulante soltar e atravessar de uma só vez entre os galhos, até que um deles transpasse e enganche por dentro da blusa. Assim, termina o evento pendurada, balançando de um lado ao outro.
Quando abre os olhos, mal consegue realizar uma respiração completa. Sangue escorre por cima de seu nariz até gotejar sobre uma turva poça d’água e entulhos logo abaixo. Pôs a mão sobre a orelha direita e toca em uma lasca de madeira transpassada debaixo do capacete, desata a fivela abaixo do queixo e os deixa cair. Em um claro desconforto, leva as mãos atrás das costas e finalmente percebe estar presa ao galho, agita para soltar-se e cai batendo a cabeça. Então, acaba desacordada.
Quando a chuva cessa, a terra aos poucos assenta e, com isso, pequenos animais e insetos, como podiam e na velocidade que conseguiam, começam a emergir da fresca camada externa que caíra. Movimentando freneticamente as pequenas patas, seguem até as paredes ou levantam voo, como se tivessem um caminho trilhado movidos pela ânsia desesperada para sair fora daquele lugar em debandada. Os que não podem partir imediatamente tratam de se esconder, enterrando-se, encolhendo-se, e ali permanecem, aterrados.
Horas passam com o ir e vir dos raios de sol entre pesadas nuvens cinzentas. Como o dia, a noite adentra tendo como único ruído o lamento do vento. Ela permanece imóvel em decúbito ventral, braços estendidos e metade da face voltada para a lama. Com uma das narinas comprimida, respira em um ressonar suave pela única narina livre.
Em um dado momento, um par de pequenos olhos negros brilhantes saltam das sombras, seguido de muitos outros. Seres que lembram quimeras de insetos agitam as asas sincronicamente em meio a pausas, na busca de se colocarem atentos uns com os outros. Ruidosos, se dividem em grupos, movendo-se unidos como uma sombra. Suas longas e delicadas antenas descobrem uma a uma, cada centímetro das novas fagulhas ao redor. Cada, com suas oito longas e delgadas patas, segue pisando de forma tão sutil que caminha sobre a lama e sobre a água como se lá não estivesse. Vasculha e devorara tudo que encontra entre as pedras, folhas ocres e troncos ocos. Parando vez ou outra para se limpar, esfregando nos salta dos olhos e nas suas presas uma espécie de aro dourado, tal como as algemas de grilhões, que levam postos nas patas dianteiras.
Com a língua pontuda, uma a uma começa a lamber cada gota vermelha que encontra entre a umidade, descobre e devora um dente preso à árvore, drena a poça com o sangue diluído. Até que um deles encontra algo que lhe desperta profundo interesse. Ao subir sobre o corpo desacordado, inicia uma comoção generalizada, enquanto agita as asas, faz vibrar as cerdas de dentro dos inúmeros orifícios sobre o torso negro, chamando a atenção, fazendo que todos os seus iguais se aproximem ao redor.
Então começam a salivar impacientes e famintos. Quando o primeiro glutão morde o banquete, tonteia e cai para trás, o mesmo acontece com outros mais. Até que desistem, como se concordassem que aquilo era resistente demais para ser consumido, e um a um recua até subir ao céu. Restando um único aparentemente imune à droga presente no corpo de Danu, exatamente aquele com uma das antenas partida, que logo segue os demais ao terminar de devorar uma unha que pendia de um dedo da mão.
Após partirem, afora escutou-se o alvoroço de animais e logo o silêncio voltou a dominar a noite. Horas depois, com cascalhos caindo sobre as costas, ela desperta. Vira de lado, tosse lama e a expele pelo nariz, e finalmente apanha fôlego. Ao limpar os olhos, aos poucos percebe estar abaixo de um modesto círculo alaranjado de onde via o vento carregar rodopiantes folhas acima. Então, arregala os olhos, decerto por finalmente perceber o tão profundo havia caído. Passa a mão sobre a têmpora e se dá conta do longo corte horizontal coberto de casca da ferida seca sobre um calombo de onde havia retirado a lasca de madeira. Contusões e ferimentos superficiais cobriam seu corpo, porém, não encontra sangue em suas roupas ou em qualquer outro lugar. Ao erguer o torso, algo lhe incomoda abaixo da têmpora esquerda e, ao passar a mão para coçar, percebe faltar toda a parte superior da cartilagem da orelha. Então congela, morde os lábios e segura um choro.
O motivo? Finalmente observa de perto suas mãos. Com a pele lacerada por inúmeras farpas presas à carne, faz o abrir e fechar parecer dificultoso, e uma de suas unhas havia desaparecido. Entretanto, sua face não demonstrava a dor. Entre os dedos, percebe um espesso muco translúcido, o mesmo presente em formas circulares sobre suas pernas cobrindo hematomas do tamanho da palma de sua mão, tendo ao centro a marca de um corte profundo em forma de “T” recém-cicatrizado.
Aproxima a mão até a boca, com os lábios, agarra para morder a maior lasca de madeira que lhe transpassava o dedo médio, porém, em um ímpeto, segura a respiração e mete a língua no espaço vazio entre os dentes da arcada superior. Arregala os olhos quando o alcançou com o dedo para confirmar, parece não acreditar que lhe falta um incisivo lateral. Trêmula, respira fundo, encolhendo o corpo em posição fetal. Do jeito que está, a sua maneira, emite um chamado uma e outra vez. Provavelmente aguarda a resposta de seus amigos, em especial, da vizinha. Em aparente exaustão, adormece por alguns minutos, escondendo o rosto com as mãos, e sua mente mergulha no vazio profundo, como se a alma saísse do corpo, desistindo de tudo, até que de golpe arregala os olhos e se senta. Tenta várias vezes agarrar com os dentes a farpa do dedo médio, enfim logra com uma mordida lateral e, com um tremor nervoso nos lábios, acaba puxando o empecilho de uma só vez. Quando o arranca, tinha-lhe um orifício que p
No pequeno apartamento, a senhora elegante, agora chorosa, é amparada pelo homem fardado, em uma nova versão, não tão feliz, da foto presa à porta da geladeira. — Senhor, tem certeza de que esses mapas não apontam um possível destino da sua filha? — perguntou quando segurou dois dos mais novos, dentro de sacos para custódia de evidências. — Minha filha é fraca! E mal está conseguindo subir uma escada. Nunca iria pedalar até qualquer um desses pontos marcados nos mapas. Sua mãe reage a essas palavras o observando com ar de preocupação e incredibilidade. Os peritos criminais já haviam investigado cada metro quadrado do lugar e dado atenção especial à mancha de sangue no carpete do quarto, além da incomum ordenação de maior a menor de tudo que havia dentro da quitinete. No quarto, entre sussurros discretos, observavam os troféus: — Modalidade "Airsoft", Asa Negra? Eu não sabia que a filha do Fantasma era competidora olímpica de tiro. — Pois é, Novato. O chefe sempre foi contra. Quer
É visível que, a essa altura, suas mãos começam a lhe causar desconforto. Em uma pequena poça cristalina sob a pedra côncava, lava os dedos afetados — os três últimos de cada mão. Em um ímpeto involuntário, treme enquanto retira o restante das farpas com a boca. Seca as feridas em uma toalha de mão e, com cautela para não movimentar os dedos afetados, a espreme, retirando o excesso de água, então, a reserva. Usando o canivete do “kit”, rasga parte de uma camisa fina em tiras e as põe para enfaixar os dedos em pior estado. Com os ferimentos protegidos, começa a agir com certa normalidade. Apanha a toalha úmida e limpa o corpo onde o barro está mais evidente, revelando parte de seu corpo, de seios pequenos e ombros de ossos salientes com largura reduzida, músculos fibrosos e pernas maiores que a média; com facilidade, pôde passar por ser mais magra e jovem do que realmente é. Senta-se sob a luz natural e verifica os outros bolsos laterais da mochila. Seus olhos acendem ao encontrar o re
Como em todas as manhãs, tosse em meio à densa fumaça que sobe e cuida para que o fogo não apague. Segue alimentando a chama até que uma fogueira média surja devidamente montada de maneira circular com a madeira ordenada de maior a menor espessura. Com a cara comprimida, se senta ao lado e evita a todo tempo apoiar o peso sobre a perna ruim. Segura acima do joelho, a coloca sobre uma elevação e assim recosta na parede de pedra. Ali come a última parte da barra de cereal, toma dois goles de água e, com as pálpebras cada vez mais pesadas, sem perceber, fecha os olhos. Em seus sonhos, adentra lembranças profundas. Estava na caminhada com os amigos em meio à floresta, quando preferiu outra rota e se afastou solitária. Acaba por avistar homens armados, que trajam, de peito estufado, um conhecido colete, símbolo de traficantes da região. Congela ao reconhecer o rosto de um deles, o mesmo visto em pastas policiais que esmiuçou secretamente na casa do pai e que, ao folhear os arquivos, fico
Desperta ansiosa ao início da tarde. Se põe a coletar pedras perfeitamente redondas e ordená-las, um comportamento obsessivo, mas que parece manter sua sanidade. Até que dois dos habitantes obscuros saltam das sombras engendrados em uma disputa. Cada um preso a uma das extremidades da carcaça do que fora o primata abatido noites passadas. Puxam, sacodem e exigem o direito de terminar de devorar os últimos restos de ossos presos à cartilagem, articulações e troços da pelagem marrom de onde pendiam de um lado parte da cabeça; do outro, a cauda, tendo na linha média as quatro patas, que são agitadas de um lado ao outro ao léu. Um deles, pequeno e determinado, disputa com o mais antigo o dobro de seu tamanho, fazendo Danu erguer as sobrancelhas ao reconhecer que lhe falta parte de uma das magníficas antenas, e é ele o dono original da presa. Por um segundo, ela vê seu próprio ser tomar o lugar do animal e, arrebatada pelo pânico, cai para trás, sobre a pilha de lenha que havia criado, e t
Tem a cabeça do perdedor ostentado na ponta da lança enquanto alimenta com mais madeira a chama que quase se extingue. Nessa manhã e nas outras seguintes, o vômito matutino cessara. Abraça os joelhos e observa o círculo luminoso acima. Está em um dia de ar pesado; seu tornozelo aparenta estar menos inchado, contudo, ainda resmunga ao apoiar o peso do corpo sobre ele. Abre o frasco laranja e traga outros dois comprimidos. *Silêncio* Se ocupa de juntar mais lenha quando algo acima lhe chama a atenção. Abaixo da entrada, tenta gritar até que sua face se pôs vermelha, respira cansada e enfim para. Ri seco, parecendo conversar consigo mesma enquanto gesticula com as mãos. Arfa sem ar e se senta. Quando o Sol atinge o centro do sumidouro, é possível ver as ondas de calor emanando das pedras ao redor. Com o cabelo aderido à testa e a blusa branca colada ao corpo, a essa altura, já bebeu mais água do que fracionara para o dia. Da pele exposta, onde antes ossos saltavam salientes, agora sã
Nervosamente esfrega os dedos sobre o bloqueio da tela até que se dá por vencida, pois sua digital não é aceita, tendo acesso apenas à data, hora e lanterna. Carga da bateria em 94% e sem sinal da operadora telefônica para qualquer tipo de chamada de emergência. De onde está é possível ver o rádio acima, perto da borda exterior. Quando a onda de euforia passa, respira pesado e um silêncio absoluto toma conta do lugar. Senta-se ao canto e, calada, encara a escuridão, não se mexe por várias horas e acaba por adormecer sentada em um estreito em “V” na pedra. Acorda com o som que remete ao gotejar d’água, o ruído ecoa ao fundo e a atrai como se dali transbordara um rio vindo desde as passagens artificiais. Traga seco e vira o olhar para suas reservas, estão vazias há dias. Põe um seixo na boca para estimular a salivação e, com ar de séria preocupação, se senta e espera... Nesse dia, come sem fome a última das quatro partes do primeiro sonho açucarado e o engole se
Sempre há uma dívida a ser paga. E os humanos endividados nunca se veem livres, muito pelo contrário, acabam por trabalhar mais para conseguir estar a salvo de suas dívidas. Entretanto, para esse processo necessitam gerar outras dívidas, e a liberdade que tanto almejam se torna cada vez mais distante. Por isso, desde que com eles nasci, passei a observá-los, uns mais que outros, confesso. E foi um fato deveras curioso quando borbulhou o tema: “caçarola do inferno”. Definição dada pelos moradores dessa interessante cidade diante dos danos resultados da enchente nas últimas semanas. De tantos lugares para habitar, escolheram urbanizar a baixada, por onde cruza um grande rio, abastecido por córregos e afluentes menores que provêm da mata nativa típica de topografia acidentada, dominante nesta região. Faz duas décadas desde que os moradores viram uma monção tão forte, e a deste ano teve a força para transbordar o rio principal ao ponto de tomar metade da cidade. Casas construídas a esmo