Aproveita a recém-calmaria e, em um passo de cada vez, segue para fora do refeitório quando então um borbulhar inquieto de pura escuridão toma a luz ao fim do túnel — outra revoada retornava. Quase não teve tempo de abaixar e se proteger atrás da mochila. Enquanto passavam, perde as contas de quantos trombam contra seu capacete e, ao dar a volta, dá de cara com um deles pousados ao chão. O reconhece de imediato — é o batedor —, ele está em busca das manchas rubras e frescas, concentrado demais em drená-las para notar a presença da mulher. Foi então que as sobrancelhas de Danu erguem-se ao perceber tratar de seu próprio sangue quando finalmente se dá conta do ferimento no braço. Agachada, recua até bater com a mochila na parede, rasga uma tira da blusa e a amarra sobre o corte vívido. O animal insidioso agita as asas e, com suas longas patas, começa a se aproximar. Nesse mesmo tempo, Danu, cautelosa e sem desviar a atenção dele, se afasta caminho acima. Nesse hiato, um fio de água at
Sem dizer uma palavra, ela sorri, vira e segue para dentro da gruta. Danu grita seu nome repetidas vezes, mas o som já não sai de sua boca. Por mais rápido que a persiga, mais rápido ela se distancia. Estende a mão várias vezes para a agarrar, sempre a um fio de alcançá-la. Em um dado momento, tropeça, caindo em meio ao pó e ali permanece. De onde está, ergue a cabeça e arregala os olhos, o que enxerga abaixo é um círculo perfeito de pedras arredondadas, tendo ao centro uma larga e plana com a superfície preenchida de inscrições talhadas. Pressiona o ferimento no braço, abaixa a cabeça e se põe de pé. Ao olhar novamente para o monumento, assusta-se de tal forma que a faz desequilibrar e deslizar abaixo. Quando seus pés tocam o fundo, aperta os olhos, como se estivesse tentando concentrar-se no que era real. Ao olhar novamente, sua boca abre em espanto. Parado ao lado da pedra com inscrições, há a figura em negro do homem alto, trajando chapéu, o mesmo ser que a perseguia em seus pes
Meses atrás, quando o caso de desaparecimento dos conhecidos jovens esportistas repercutiu, chocou a cidade do interior e ninguém sabia mais do que o (não) dito por Danu. O mistério é o suficiente para motivar as crianças a criarem uma canção: “Danu, Danu, com eles, partiu. Danu, Danu, com eles, seguiu. E um dia, sozinha, surgiu. Danu, Danu, onde estão? Danu, Danu, perdida do rio. Comeu suas palavras? Comeu suas almas? Danu, Danu? Onde estão? Sua cuca, o rio levou!” Só escutara essa canção infantil uma vez, o suficiente pa
Os primeiros raios de sol invadiram o quarto e iluminaram a coleção de troféus ordenados sobre as prateleiras presas nas paredes acima da cama. Logo abaixo está um colorido mural de cortiça, e nele, presas por alfinetes coloridos, inúmeras fotos remetem à amizade entre um grupo de amigos, sobretudo entre duas garotas de marcada diferença em altura, cujas fotos juntas retratavam uma forte relação afetiva desde a infância. Junto a um calendário, destacado em vermelho a data 13 de uma sexta de dezembro com o desenho de um bolo enfeitado com estrelas e velas. Por cima de tudo, em um riscado nervoso, se via a curta frase dizendo: “data m*****a”. Enrolada entre as cobertas, respira fundo e se vira para a janela. O dia já aponta afora enquanto a escuridão reina em casa. Revira os tristes olhos cansados e, com ar de desânimo, levanta da cama expondo parte do seu esquálido corpo. A madrugada foi um desafio. Antes mesmo do raiar, despertou com um inseto negro, que, para ela, tinha o tamanho de
Revolve a roupa espalhada sobre a cômoda e chão, veste as que encontrou mais limpas. Evitando olhar no espelho, prende os cabelos sem pentear em um rabo de cavalo, esconde a cabeça com o gorro do largo moletom e puxa uma bolsa de tecido debaixo de uma pilha de apostilas, cujo tema é odontologia, sem se importar para onde cairiam. Desce as escadas de emergência iluminadas de vão em vão, até deixar o edifício de quitinetes. Então toma caminho para a padaria, na generosa distância de oito quadras. Durante o trajeto, a maioria dos residentes está afora, entre resmungos e queixas. Após três quadras, viu o que seria a imagem da vizinha que se despedia da tia depois de mais uma das suas “curtas” longas conversas de passagem. Em silêncio, seguiram até o destino, juntas. Sobre Danu, paira uma existência misteriosa oculta, que observa a garota alta desde um mundo obscuro, e vez ou outra solta um comentário. —Tanto desejo para ver o que não mais existe. Por ter ignorado por tanto tempo aquele
Em algum lugar, entre o limite da cidade e a zona rural. Danu sentada ao lado da bicicleta e verifica a mochila. Havia arrumado o necessário para quatro dias, além de um lanche para a estrada. Prende os pertences com segurança na bicicleta, ajeita a blusa de ciclista folgada para seu corpo, verifica, por uma última vez, o equipamento de proteção e parece ignorar a ausência das joelheiras. Contando com ela, estão em cinco amigos, dois rapazes e três garotas. Juntos, seguem a parte da estrada de chão formada de descidas, apenas necessitam controlar a velocidade da bicicleta e deixar a gravidade realizar o restante do trabalho. Assim, seguem até chegar à parte plana. Mesmo com marchas para facilitar a viagem, as pedaladas não parecem fáceis. Danu fica ao final da fila e, depois de certo tempo, distante cerca de dez metros dos demais. Sempre que isso acontece, não tarda para encontrar a vizinha parada à beira da estrada. Com um sorriso igual ao das fotos no mural, ajeitando as joelheira
Grita seco ao olhar para os lados e perceber que toda a floresta segue com ela, juntos: terra, pedras, raízes e árvores na mesma direção, caminho abaixo. Ainda tenta saltar da bicicleta, agarra os galhos a sua volta, mas tudo desmorona ao seu redor. Seguia inclinação abaixo. Em seguida, estica os braços para os lados em outra tentativa de se salvar, sente os galhos da margem a sua volta escorregar entre os dedos e o sumidouro ruge impaciente enquanto solta brancas baforadas polvorosas. Ao despencar, por fim, agarra o primeiro galho da árvore que alcança. Está naqueles momentos onde o desespero faz a pessoa urrar sem parar e todo o seu miserável dia passa como um filme em sua mente. Danu deve ter pensado que deveria ter ficado na cama depois do evento da janela daquela madrugada. Enquanto isso, na Faz Pão&Cia, a única padaria aberta no bairro neste dia. — Bom dia, Carlos! Me vê um pingado. — Dia, José... Coloca o copo americano sobre o balcão e, antes de realizar a pergunta, escut
Danu segue emaranhada entre os galhos de uma árvore centenária enquanto cai de ponta-cabeça. Durante a queda, o carrasco do destino não tem pressa, pondo o evento a transcorrer como em câmera lenta. As extremidades, raiz e copa travam vez ou outra entre as frestas das paredes no gargalo do buraco e, assim, reduz a velocidade de queda da árvore, que acaba recostada em equilíbrio na horizontal sobre a ponta mais saliente de uma rocha da parede. A força durante um movimento em gangorra faz com que Danu escorregue sobre o tronco até a frondosa raiz, o que descompensa o peso na outra extremidade. Lado este que começa a inclinar-se para cima. Agarrada às cascas grossas do tronco, rasteja com intenção de regressar até o outro extremo, mas cria uma descompensação do equilíbrio suficiente para que a copa se erga abruptamente, assim, o solavanco arremessa Danu até os galhos, como se a presença da garota fora o mesmo que nada. Então, a árvore volta a cair, e agora de pé, ela, mais uma vez, se pr