Grita seco ao olhar para os lados e perceber que toda a floresta segue com ela, juntos: terra, pedras, raízes e árvores na mesma direção, caminho abaixo. Ainda tenta saltar da bicicleta, agarra os galhos a sua volta, mas tudo desmorona ao seu redor.
Seguia inclinação abaixo. Em seguida, estica os braços para os lados em outra tentativa de se salvar, sente os galhos da margem a sua volta escorregar entre os dedos e o sumidouro ruge impaciente enquanto solta brancas baforadas polvorosas.
Ao despencar, por fim, agarra o primeiro galho da árvore que alcança. Está naqueles momentos onde o desespero faz a pessoa urrar sem parar e todo o seu miserável dia passa como um filme em sua mente. Danu deve ter pensado que deveria ter ficado na cama depois do evento da janela daquela madrugada.
Enquanto isso, na Faz Pão&Cia, a única padaria aberta no bairro neste dia.
— Bom dia, Carlos! Me vê um pingado.
— Dia, José...
Coloca o copo americano sobre o balcão e, antes de realizar a pergunta, escuta a resposta.
— Estamos dando uma pausa devido à chuva. Veja bem, encontramos dois suspeitos “daquela empresa”. Os elementos estão detidos na delegacia.
O senhor de meia-idade, braços grossos e cabeça calva para por um instante. Passa a mão na cabeça e, com os lábios trêmulos, diz:
— Sabem de algo sobre a minha filha e o restante dos meninos?
— Tenho certeza. Por ora, fique quieto! — adverte. — Se forem culpados, será o primeiro a saber... — Coça o nariz como em um tique.
Carlos se vira de costas, aperta a glabela e contém o choro. Apanha a cafeteira e, em um instante, termina de preparar o pedido.
— Eu vi sua filha hoje! Ela veio cedinho, mal tinha aberto a padaria! Queria dois sonhos de creme. Dei de presente, por causa da data. Apesar de ainda não falar nada, parece bem melhor... — Termina a frase acrescentando o fio de leite no copo. É quando se dá conta da expressão séria no rosto do homem fardando trajando colete.
— A minha filha nunca foi de acordar cedo. A única que conseguia fazer isso com ela era a sua filha, a Danila. Agora o senhor me diz que a Danu apareceu aqui cedo, exatamente no mesmo horário daquele dia, só para comprar esses dois exatos pãezinhos? — Ergue o lado direito do lábio superior e estala a língua nos dentes, incrédulo.
Para de limpar o balcão, encara o amigo, e diz:
— Sim... — concorda com o olhar confuso —, mas isso é bom, não é? Afinal, ela saiu de casa, e sozinha! Depois de todo esse tempo! E ainda veio comprar comida! Isso é algo bom, certo? — Termina a frase jogando o pano em cima do ombro.
Com o copo de pingado na mão, caminha até a entrada da padaria que, desde a bancada de atendimento, não é mais de três passos de distância.
— Ela fez exatamente como naquele dia, na mesma data. Até onde isso é bom?
— Está achando que ela vai sair por aí depois de todo esse tempo trancada em casa?
— Não sei — enruga o queixo —, ela está medicada, a terapia parece estar fazendo efeito. Até voltou a comer..., mas realmente não sei — diz, encarando pensativo a estrada que levava direto até o apartamento da filha.
— Relaxa! Aonde ela iria com esse caos? Toda a parte baixa está alagada e estamos sem energia. Ela vai ter ainda mais medo de sair de casa.
— Ou vai se sentir ainda pior, sem poder se distrair dos sussurros... — Com uma golada, termina sua bebida. Põe o copo sobre o balcão, retira da carteira uma nota de cinquenta reais, larga sobre o balcão e sai às pressas. — Fica com o troco! Vou lá, só para ter certeza.
— Qualquer coisa avisa! — grita enquanto vê o amigo partir na viatura.
Danu segue emaranhada entre os galhos de uma árvore centenária enquanto cai de ponta-cabeça. Durante a queda, o carrasco do destino não tem pressa, pondo o evento a transcorrer como em câmera lenta. As extremidades, raiz e copa travam vez ou outra entre as frestas das paredes no gargalo do buraco e, assim, reduz a velocidade de queda da árvore, que acaba recostada em equilíbrio na horizontal sobre a ponta mais saliente de uma rocha da parede. A força durante um movimento em gangorra faz com que Danu escorregue sobre o tronco até a frondosa raiz, o que descompensa o peso na outra extremidade. Lado este que começa a inclinar-se para cima. Agarrada às cascas grossas do tronco, rasteja com intenção de regressar até o outro extremo, mas cria uma descompensação do equilíbrio suficiente para que a copa se erga abruptamente, assim, o solavanco arremessa Danu até os galhos, como se a presença da garota fora o mesmo que nada. Então, a árvore volta a cair, e agora de pé, ela, mais uma vez, se pr
Aproxima a mão até a boca, com os lábios, agarra para morder a maior lasca de madeira que lhe transpassava o dedo médio, porém, em um ímpeto, segura a respiração e mete a língua no espaço vazio entre os dentes da arcada superior. Arregala os olhos quando o alcançou com o dedo para confirmar, parece não acreditar que lhe falta um incisivo lateral. Trêmula, respira fundo, encolhendo o corpo em posição fetal. Do jeito que está, a sua maneira, emite um chamado uma e outra vez. Provavelmente aguarda a resposta de seus amigos, em especial, da vizinha. Em aparente exaustão, adormece por alguns minutos, escondendo o rosto com as mãos, e sua mente mergulha no vazio profundo, como se a alma saísse do corpo, desistindo de tudo, até que de golpe arregala os olhos e se senta. Tenta várias vezes agarrar com os dentes a farpa do dedo médio, enfim logra com uma mordida lateral e, com um tremor nervoso nos lábios, acaba puxando o empecilho de uma só vez. Quando o arranca, tinha-lhe um orifício que p
No pequeno apartamento, a senhora elegante, agora chorosa, é amparada pelo homem fardado, em uma nova versão, não tão feliz, da foto presa à porta da geladeira. — Senhor, tem certeza de que esses mapas não apontam um possível destino da sua filha? — perguntou quando segurou dois dos mais novos, dentro de sacos para custódia de evidências. — Minha filha é fraca! E mal está conseguindo subir uma escada. Nunca iria pedalar até qualquer um desses pontos marcados nos mapas. Sua mãe reage a essas palavras o observando com ar de preocupação e incredibilidade. Os peritos criminais já haviam investigado cada metro quadrado do lugar e dado atenção especial à mancha de sangue no carpete do quarto, além da incomum ordenação de maior a menor de tudo que havia dentro da quitinete. No quarto, entre sussurros discretos, observavam os troféus: — Modalidade "Airsoft", Asa Negra? Eu não sabia que a filha do Fantasma era competidora olímpica de tiro. — Pois é, Novato. O chefe sempre foi contra. Quer
É visível que, a essa altura, suas mãos começam a lhe causar desconforto. Em uma pequena poça cristalina sob a pedra côncava, lava os dedos afetados — os três últimos de cada mão. Em um ímpeto involuntário, treme enquanto retira o restante das farpas com a boca. Seca as feridas em uma toalha de mão e, com cautela para não movimentar os dedos afetados, a espreme, retirando o excesso de água, então, a reserva. Usando o canivete do “kit”, rasga parte de uma camisa fina em tiras e as põe para enfaixar os dedos em pior estado. Com os ferimentos protegidos, começa a agir com certa normalidade. Apanha a toalha úmida e limpa o corpo onde o barro está mais evidente, revelando parte de seu corpo, de seios pequenos e ombros de ossos salientes com largura reduzida, músculos fibrosos e pernas maiores que a média; com facilidade, pôde passar por ser mais magra e jovem do que realmente é. Senta-se sob a luz natural e verifica os outros bolsos laterais da mochila. Seus olhos acendem ao encontrar o re
Como em todas as manhãs, tosse em meio à densa fumaça que sobe e cuida para que o fogo não apague. Segue alimentando a chama até que uma fogueira média surja devidamente montada de maneira circular com a madeira ordenada de maior a menor espessura. Com a cara comprimida, se senta ao lado e evita a todo tempo apoiar o peso sobre a perna ruim. Segura acima do joelho, a coloca sobre uma elevação e assim recosta na parede de pedra. Ali come a última parte da barra de cereal, toma dois goles de água e, com as pálpebras cada vez mais pesadas, sem perceber, fecha os olhos. Em seus sonhos, adentra lembranças profundas. Estava na caminhada com os amigos em meio à floresta, quando preferiu outra rota e se afastou solitária. Acaba por avistar homens armados, que trajam, de peito estufado, um conhecido colete, símbolo de traficantes da região. Congela ao reconhecer o rosto de um deles, o mesmo visto em pastas policiais que esmiuçou secretamente na casa do pai e que, ao folhear os arquivos, fico
Desperta ansiosa ao início da tarde. Se põe a coletar pedras perfeitamente redondas e ordená-las, um comportamento obsessivo, mas que parece manter sua sanidade. Até que dois dos habitantes obscuros saltam das sombras engendrados em uma disputa. Cada um preso a uma das extremidades da carcaça do que fora o primata abatido noites passadas. Puxam, sacodem e exigem o direito de terminar de devorar os últimos restos de ossos presos à cartilagem, articulações e troços da pelagem marrom de onde pendiam de um lado parte da cabeça; do outro, a cauda, tendo na linha média as quatro patas, que são agitadas de um lado ao outro ao léu. Um deles, pequeno e determinado, disputa com o mais antigo o dobro de seu tamanho, fazendo Danu erguer as sobrancelhas ao reconhecer que lhe falta parte de uma das magníficas antenas, e é ele o dono original da presa. Por um segundo, ela vê seu próprio ser tomar o lugar do animal e, arrebatada pelo pânico, cai para trás, sobre a pilha de lenha que havia criado, e t
Tem a cabeça do perdedor ostentado na ponta da lança enquanto alimenta com mais madeira a chama que quase se extingue. Nessa manhã e nas outras seguintes, o vômito matutino cessara. Abraça os joelhos e observa o círculo luminoso acima. Está em um dia de ar pesado; seu tornozelo aparenta estar menos inchado, contudo, ainda resmunga ao apoiar o peso do corpo sobre ele. Abre o frasco laranja e traga outros dois comprimidos. *Silêncio* Se ocupa de juntar mais lenha quando algo acima lhe chama a atenção. Abaixo da entrada, tenta gritar até que sua face se pôs vermelha, respira cansada e enfim para. Ri seco, parecendo conversar consigo mesma enquanto gesticula com as mãos. Arfa sem ar e se senta. Quando o Sol atinge o centro do sumidouro, é possível ver as ondas de calor emanando das pedras ao redor. Com o cabelo aderido à testa e a blusa branca colada ao corpo, a essa altura, já bebeu mais água do que fracionara para o dia. Da pele exposta, onde antes ossos saltavam salientes, agora sã
Nervosamente esfrega os dedos sobre o bloqueio da tela até que se dá por vencida, pois sua digital não é aceita, tendo acesso apenas à data, hora e lanterna. Carga da bateria em 94% e sem sinal da operadora telefônica para qualquer tipo de chamada de emergência. De onde está é possível ver o rádio acima, perto da borda exterior. Quando a onda de euforia passa, respira pesado e um silêncio absoluto toma conta do lugar. Senta-se ao canto e, calada, encara a escuridão, não se mexe por várias horas e acaba por adormecer sentada em um estreito em “V” na pedra. Acorda com o som que remete ao gotejar d’água, o ruído ecoa ao fundo e a atrai como se dali transbordara um rio vindo desde as passagens artificiais. Traga seco e vira o olhar para suas reservas, estão vazias há dias. Põe um seixo na boca para estimular a salivação e, com ar de séria preocupação, se senta e espera... Nesse dia, come sem fome a última das quatro partes do primeiro sonho açucarado e o engole se