Revolve a roupa espalhada sobre a cômoda e chão, veste as que encontrou mais limpas. Evitando olhar no espelho, prende os cabelos sem pentear em um rabo de cavalo, esconde a cabeça com o gorro do largo moletom e puxa uma bolsa de tecido debaixo de uma pilha de apostilas, cujo tema é odontologia, sem se importar para onde cairiam. Desce as escadas de emergência iluminadas de vão em vão, até deixar o edifício de quitinetes. Então toma caminho para a padaria, na generosa distância de oito quadras.
Durante o trajeto, a maioria dos residentes está afora, entre resmungos e queixas. Após três quadras, viu o que seria a imagem da vizinha que se despedia da tia depois de mais uma das suas “curtas” longas conversas de passagem. Em silêncio, seguiram até o destino, juntas.
Sobre Danu, paira uma existência misteriosa oculta, que observa a garota alta desde um mundo obscuro, e vez ou outra solta um comentário.
—Tanto desejo para ver o que não mais existe. Por ter ignorado por tanto tempo aqueles comprimidos verdes, agora posso agir sobre sua mente livremente — fala e depois lança um sorriso fechado.
Na padaria, constata que não havia recém-orneados. Escolhe, entre os embalados, os mais barato e duas águas. Ao pagar, estala a língua entre os dentes ao perceber estar sem trocados; tudo que era elétrico não funciona, e os cartões de crédito eram a única presença financeira na carteira. No fim, acaba na situação de estar educadamente recusando o empréstimo do senhor que havia separado dois sonhos e pede desculpas pelo cancelamento da compra.
No caminho de volta, era visível o seu desgosto, ainda via a amiga dando-lhe broncas, mas permanece em silêncio, trazendo consigo os dois sonhos e duas águas.
Para no primeiro caixa rápido de seu Banco. Tenta sacar o dinheiro, e seu cartão é engolido pela máquina. Gira de um lado ao outro, como se maldissesse a vida. Então, segue até a porta giratória e é bloqueada em uma travada da porta, pregado a sua frente, leu o aviso sobre o fechamento do estabelecimento devido ao feriado local e às consequências da falta de energia elétrica.
De volta à casa, senta-se no sofá, exalando descrença, encara bem de frente o pacote da padaria quando então escuta alguém bater à porta. Ao atender, vê a vizinha vestida com traje completo de ciclismo, uma mochila nas costas, outra na sua mão e um grande sorriso.
Segue até a mesa onde estão os mapas e aponta o destino, uma trilha cuja demarcação parecia recente. Como lhe era sabido, havia uma bicicleta extra na garagem, esperando por ela. Não aparenta estar muito animada, mesmo assim apronta-se e juntas seguem abaixo. Lá, surpreende-se ao encontrar os seus outros amigos, todos equipados para o esporte e com sorrisos celebram com a canção de aniversário. Após abraços e beijos, pegam a estrada.
Cada pedalada fazia aparentar um martírio. Olha os carros passarem com olhar de piedade, como se buscasse um rosto conhecido. Tudo cessa quando começa a descer para a área urbana mais nivelada. Até que alcança um ponto com o trânsito parado e entende que apenas quem estava a pé ou de bicicleta tinha livre passagem para o outro lado sobre uma balsa improvisada. Aparenta estar impressionada quando constata o estrago do alagamento. Sobre a balsa, as conversas se centravam no tema de uma forte tempestade da noite anterior, notícia que a deixa surpresa, pois finalmente havia dormido, e dessa vez feito pedra. Foi quando dá conta da quantidade de postes elétricos e telefônicos caídos logo à frente na outra margem, responsáveis por abastecer a cidade.
Poucas horas depois. Longe dali.
De volta à via asfaltada, nos limites da área urbana. Parou na antiga birosca. Um flash de memória confundindo passado e presente a faz ver seus amigos na última parada. Porém, dessa vez, a birosca está com quase todo rés-do-chão coberto por terra lamacenta. Ignorando esse fato do presente, ainda vê os amigos comprando doces e água, então, escolhe ficar no passado.
Enquanto isso, no edifício de quitinete. Uma senhora grisalha de cabelo curto e roupa alinhada traz consigo uma sacola de pães doces e, com a chave em mãos, abre a porta.
— Danu? Danu querida, ainda está na cama? — diz com voz doce.
Ao colocar a sacola sobre a mesa, observa com atenção os círculos e rotas marcados nos mapas espalhados na superfície. Ergue as sobrancelhas, parecendo estar diante de uma novidade. Segue até o quarto e franze o cenho ao se deparar com o único espelho da casa trincado ao centro. Logo inicia uma busca aflita no guarda-roupa, dentro da banheira, debaixo da cama e desde a sacada abaixo, revolveu a roupa amontoada, até perceber que a colorida mochila de viagem não estava pendurada em seu lugar habitual, e logo abaixo, o frasco transparente de tarja negra com os comprimidos verdes jogados ao chão com seu lacre intacto. Seus olhos se enchem de preocupação, então, ela se abaixa e apanha o frasco, gira o rótulo para sua direção e lê “Clozapina”.
— Ah! Querida! Eu entendo por que não quer tomar esse... Se seu pai fosse menos cabeça dura, nada disso seria necessário.
Finalmente, ao juntar as apostilas espalhadas sobre o chão, percebe sangue fresco logo abaixo, a senhora empalidece diante do carmim fresco sobre o carpete junto à janela, em uma reação de quem parecia saber com certeza de quem era.
Entre um vão e outro dos lances de escada, apanha o celular de dentro da lustrosa bolsa de couro e faz uma ligação descendo as escadas até a garagem. Os seus olhos congelam quando vê vaga a área da bicicleta do apartamento nº 157. Quando a pessoa do outro lado da linha não atende a sua chamada, percebe que ainda estava sem sinal. Diz em voz alta, num desabafo quase se ar:
— Tudo que é sagrado! Não permita que a minha neta esteja sofrendo outra crise!
Em algum lugar, entre o limite da cidade e a zona rural. Danu sentada ao lado da bicicleta e verifica a mochila. Havia arrumado o necessário para quatro dias, além de um lanche para a estrada. Prende os pertences com segurança na bicicleta, ajeita a blusa de ciclista folgada para seu corpo, verifica, por uma última vez, o equipamento de proteção e parece ignorar a ausência das joelheiras. Contando com ela, estão em cinco amigos, dois rapazes e três garotas. Juntos, seguem a parte da estrada de chão formada de descidas, apenas necessitam controlar a velocidade da bicicleta e deixar a gravidade realizar o restante do trabalho. Assim, seguem até chegar à parte plana. Mesmo com marchas para facilitar a viagem, as pedaladas não parecem fáceis. Danu fica ao final da fila e, depois de certo tempo, distante cerca de dez metros dos demais. Sempre que isso acontece, não tarda para encontrar a vizinha parada à beira da estrada. Com um sorriso igual ao das fotos no mural, ajeitando as joelheira
Grita seco ao olhar para os lados e perceber que toda a floresta segue com ela, juntos: terra, pedras, raízes e árvores na mesma direção, caminho abaixo. Ainda tenta saltar da bicicleta, agarra os galhos a sua volta, mas tudo desmorona ao seu redor. Seguia inclinação abaixo. Em seguida, estica os braços para os lados em outra tentativa de se salvar, sente os galhos da margem a sua volta escorregar entre os dedos e o sumidouro ruge impaciente enquanto solta brancas baforadas polvorosas. Ao despencar, por fim, agarra o primeiro galho da árvore que alcança. Está naqueles momentos onde o desespero faz a pessoa urrar sem parar e todo o seu miserável dia passa como um filme em sua mente. Danu deve ter pensado que deveria ter ficado na cama depois do evento da janela daquela madrugada. Enquanto isso, na Faz Pão&Cia, a única padaria aberta no bairro neste dia. — Bom dia, Carlos! Me vê um pingado. — Dia, José... Coloca o copo americano sobre o balcão e, antes de realizar a pergunta, escut
Danu segue emaranhada entre os galhos de uma árvore centenária enquanto cai de ponta-cabeça. Durante a queda, o carrasco do destino não tem pressa, pondo o evento a transcorrer como em câmera lenta. As extremidades, raiz e copa travam vez ou outra entre as frestas das paredes no gargalo do buraco e, assim, reduz a velocidade de queda da árvore, que acaba recostada em equilíbrio na horizontal sobre a ponta mais saliente de uma rocha da parede. A força durante um movimento em gangorra faz com que Danu escorregue sobre o tronco até a frondosa raiz, o que descompensa o peso na outra extremidade. Lado este que começa a inclinar-se para cima. Agarrada às cascas grossas do tronco, rasteja com intenção de regressar até o outro extremo, mas cria uma descompensação do equilíbrio suficiente para que a copa se erga abruptamente, assim, o solavanco arremessa Danu até os galhos, como se a presença da garota fora o mesmo que nada. Então, a árvore volta a cair, e agora de pé, ela, mais uma vez, se pr
Aproxima a mão até a boca, com os lábios, agarra para morder a maior lasca de madeira que lhe transpassava o dedo médio, porém, em um ímpeto, segura a respiração e mete a língua no espaço vazio entre os dentes da arcada superior. Arregala os olhos quando o alcançou com o dedo para confirmar, parece não acreditar que lhe falta um incisivo lateral. Trêmula, respira fundo, encolhendo o corpo em posição fetal. Do jeito que está, a sua maneira, emite um chamado uma e outra vez. Provavelmente aguarda a resposta de seus amigos, em especial, da vizinha. Em aparente exaustão, adormece por alguns minutos, escondendo o rosto com as mãos, e sua mente mergulha no vazio profundo, como se a alma saísse do corpo, desistindo de tudo, até que de golpe arregala os olhos e se senta. Tenta várias vezes agarrar com os dentes a farpa do dedo médio, enfim logra com uma mordida lateral e, com um tremor nervoso nos lábios, acaba puxando o empecilho de uma só vez. Quando o arranca, tinha-lhe um orifício que p
No pequeno apartamento, a senhora elegante, agora chorosa, é amparada pelo homem fardado, em uma nova versão, não tão feliz, da foto presa à porta da geladeira. — Senhor, tem certeza de que esses mapas não apontam um possível destino da sua filha? — perguntou quando segurou dois dos mais novos, dentro de sacos para custódia de evidências. — Minha filha é fraca! E mal está conseguindo subir uma escada. Nunca iria pedalar até qualquer um desses pontos marcados nos mapas. Sua mãe reage a essas palavras o observando com ar de preocupação e incredibilidade. Os peritos criminais já haviam investigado cada metro quadrado do lugar e dado atenção especial à mancha de sangue no carpete do quarto, além da incomum ordenação de maior a menor de tudo que havia dentro da quitinete. No quarto, entre sussurros discretos, observavam os troféus: — Modalidade "Airsoft", Asa Negra? Eu não sabia que a filha do Fantasma era competidora olímpica de tiro. — Pois é, Novato. O chefe sempre foi contra. Quer
É visível que, a essa altura, suas mãos começam a lhe causar desconforto. Em uma pequena poça cristalina sob a pedra côncava, lava os dedos afetados — os três últimos de cada mão. Em um ímpeto involuntário, treme enquanto retira o restante das farpas com a boca. Seca as feridas em uma toalha de mão e, com cautela para não movimentar os dedos afetados, a espreme, retirando o excesso de água, então, a reserva. Usando o canivete do “kit”, rasga parte de uma camisa fina em tiras e as põe para enfaixar os dedos em pior estado. Com os ferimentos protegidos, começa a agir com certa normalidade. Apanha a toalha úmida e limpa o corpo onde o barro está mais evidente, revelando parte de seu corpo, de seios pequenos e ombros de ossos salientes com largura reduzida, músculos fibrosos e pernas maiores que a média; com facilidade, pôde passar por ser mais magra e jovem do que realmente é. Senta-se sob a luz natural e verifica os outros bolsos laterais da mochila. Seus olhos acendem ao encontrar o re
Como em todas as manhãs, tosse em meio à densa fumaça que sobe e cuida para que o fogo não apague. Segue alimentando a chama até que uma fogueira média surja devidamente montada de maneira circular com a madeira ordenada de maior a menor espessura. Com a cara comprimida, se senta ao lado e evita a todo tempo apoiar o peso sobre a perna ruim. Segura acima do joelho, a coloca sobre uma elevação e assim recosta na parede de pedra. Ali come a última parte da barra de cereal, toma dois goles de água e, com as pálpebras cada vez mais pesadas, sem perceber, fecha os olhos. Em seus sonhos, adentra lembranças profundas. Estava na caminhada com os amigos em meio à floresta, quando preferiu outra rota e se afastou solitária. Acaba por avistar homens armados, que trajam, de peito estufado, um conhecido colete, símbolo de traficantes da região. Congela ao reconhecer o rosto de um deles, o mesmo visto em pastas policiais que esmiuçou secretamente na casa do pai e que, ao folhear os arquivos, fico
Desperta ansiosa ao início da tarde. Se põe a coletar pedras perfeitamente redondas e ordená-las, um comportamento obsessivo, mas que parece manter sua sanidade. Até que dois dos habitantes obscuros saltam das sombras engendrados em uma disputa. Cada um preso a uma das extremidades da carcaça do que fora o primata abatido noites passadas. Puxam, sacodem e exigem o direito de terminar de devorar os últimos restos de ossos presos à cartilagem, articulações e troços da pelagem marrom de onde pendiam de um lado parte da cabeça; do outro, a cauda, tendo na linha média as quatro patas, que são agitadas de um lado ao outro ao léu. Um deles, pequeno e determinado, disputa com o mais antigo o dobro de seu tamanho, fazendo Danu erguer as sobrancelhas ao reconhecer que lhe falta parte de uma das magníficas antenas, e é ele o dono original da presa. Por um segundo, ela vê seu próprio ser tomar o lugar do animal e, arrebatada pelo pânico, cai para trás, sobre a pilha de lenha que havia criado, e t