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I - Dia Zero: parte 2

Revolve a roupa espalhada sobre a cômoda e chão, veste as que encontrou mais limpas. Evitando olhar no espelho, prende os cabelos sem pentear em um rabo de cavalo, esconde a cabeça com o gorro do largo moletom e puxa uma bolsa de tecido debaixo de uma pilha de apostilas, cujo tema é odontologia, sem se importar para onde cairiam. Desce as escadas de emergência iluminadas de vão em vão, até deixar o edifício de quitinetes. Então toma caminho para a padaria, na generosa distância de oito quadras.

Durante o trajeto, a maioria dos residentes está afora, entre resmungos e queixas. Após três quadras, viu o que seria a imagem da vizinha que se despedia da tia depois de mais uma das suas “curtas” longas conversas de passagem. Em silêncio, seguiram até o destino, juntas.

Sobre Danu, paira uma existência misteriosa oculta, que observa a garota alta desde um mundo obscuro, e vez ou outra solta um comentário.

 —Tanto desejo para ver o que não mais existe. Por ter ignorado por tanto tempo aqueles comprimidos verdes, agora posso agir sobre sua mente livremente — fala e depois lança um sorriso fechado.

Na padaria, constata que não havia recém-orneados. Escolhe, entre os embalados, os mais barato e duas águas. Ao pagar, estala a língua entre os dentes ao perceber estar sem trocados; tudo que era elétrico não funciona, e os cartões de crédito eram a única presença financeira na carteira. No fim, acaba na situação de estar educadamente recusando o empréstimo do senhor que havia separado dois sonhos e pede desculpas pelo cancelamento da compra.

No caminho de volta, era visível o seu desgosto, ainda via a amiga dando-lhe broncas, mas permanece em silêncio, trazendo consigo os dois sonhos e duas águas.

Para no primeiro caixa rápido de seu Banco. Tenta sacar o dinheiro, e seu cartão é engolido pela máquina. Gira de um lado ao outro, como se maldissesse a vida. Então, segue até a porta giratória e é bloqueada em uma travada da porta, pregado a sua frente, leu o aviso sobre o fechamento do estabelecimento devido ao feriado local e às consequências da falta de energia elétrica.

De volta à casa, senta-se no sofá, exalando descrença, encara bem de frente o pacote da padaria quando então escuta alguém bater à porta. Ao atender, vê a vizinha vestida com traje completo de ciclismo, uma mochila nas costas, outra na sua mão e um grande sorriso.

Segue até a mesa onde estão os mapas e aponta o destino, uma trilha cuja demarcação parecia recente. Como lhe era sabido, havia uma bicicleta extra na garagem, esperando por ela. Não aparenta estar muito animada, mesmo assim apronta-se e juntas seguem abaixo. Lá, surpreende-se ao encontrar os seus outros amigos, todos equipados para o esporte e com sorrisos celebram com a canção de aniversário. Após abraços e beijos, pegam a estrada.

Cada pedalada fazia aparentar um martírio. Olha os carros passarem com olhar de piedade, como se buscasse um rosto conhecido. Tudo cessa quando começa a descer para a área urbana mais nivelada. Até que alcança um ponto com o trânsito parado e entende que apenas quem estava a pé ou de bicicleta tinha livre passagem para o outro lado sobre uma balsa improvisada. Aparenta estar impressionada quando constata o estrago do alagamento. Sobre a balsa, as conversas se centravam no tema de uma forte tempestade da noite anterior, notícia que a deixa surpresa, pois finalmente havia dormido, e dessa vez feito pedra. Foi quando dá conta da quantidade de postes elétricos e telefônicos caídos logo à frente na outra margem, responsáveis por abastecer a cidade.

Poucas horas depois. Longe dali.

De volta à via asfaltada, nos limites da área urbana. Parou na antiga birosca. Um flash de memória confundindo passado e presente a faz ver seus amigos na última parada. Porém, dessa vez, a birosca está com quase todo rés-do-chão coberto por terra lamacenta. Ignorando esse fato do presente, ainda vê os amigos comprando doces e água, então, escolhe ficar no passado.

Enquanto isso, no edifício de quitinete. Uma senhora grisalha de cabelo curto e roupa alinhada traz consigo uma sacola de pães doces e, com a chave em mãos, abre a porta.

— Danu? Danu querida, ainda está na cama? — diz com voz doce.

Ao colocar a sacola sobre a mesa, observa com atenção os círculos e rotas marcados nos mapas espalhados na superfície. Ergue as sobrancelhas, parecendo estar diante de uma novidade. Segue até o quarto e franze o cenho ao se deparar com o único espelho da casa trincado ao centro. Logo inicia uma busca aflita no guarda-roupa, dentro da banheira, debaixo da cama e desde a sacada abaixo, revolveu a roupa amontoada, até perceber que a colorida mochila de viagem não estava pendurada em seu lugar habitual, e logo abaixo, o frasco transparente de tarja negra com os comprimidos verdes jogados ao chão com seu lacre intacto. Seus olhos se enchem de preocupação, então, ela se abaixa e apanha o frasco, gira o rótulo para sua direção e lê “Clozapina”.

— Ah! Querida! Eu entendo por que não quer tomar esse... Se seu pai fosse menos cabeça dura, nada disso seria necessário.

Finalmente, ao juntar as apostilas espalhadas sobre o chão, percebe sangue fresco logo abaixo,  a senhora empalidece diante do carmim fresco sobre o carpete junto à janela, em uma reação de quem parecia saber com certeza de quem era.

Entre um vão e outro dos lances de escada, apanha o celular de dentro da lustrosa bolsa de couro e faz uma ligação descendo as escadas até a garagem. Os seus olhos congelam quando vê vaga a área da bicicleta do apartamento nº 157. Quando a pessoa do outro lado da linha não atende a sua chamada, percebe que ainda estava sem sinal. Diz em voz alta, num desabafo quase se ar:

— Tudo que é sagrado! Não permita que a minha neta esteja sofrendo outra crise!

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