Aproxima a mão até a boca, com os lábios, agarra para morder a maior lasca de madeira que lhe transpassava o dedo médio, porém, em um ímpeto, segura a respiração e mete a língua no espaço vazio entre os dentes da arcada superior. Arregala os olhos quando o alcançou com o dedo para confirmar, parece não acreditar que lhe falta um incisivo lateral. Trêmula, respira fundo, encolhendo o corpo em posição fetal. Do jeito que está, a sua maneira, emite um chamado uma e outra vez. Provavelmente aguarda a resposta de seus amigos, em especial, da vizinha.
Em aparente exaustão, adormece por alguns minutos, escondendo o rosto com as mãos, e sua mente mergulha no vazio profundo, como se a alma saísse do corpo, desistindo de tudo, até que de golpe arregala os olhos e se senta.
Tenta várias vezes agarrar com os dentes a farpa do dedo médio, enfim logra com uma mordida lateral e, com um tremor nervoso nos lábios, acaba puxando o empecilho de uma só vez. Quando o arranca, tinha-lhe um orifício que permite ver do outro lado. Cospe o troço de madeira ao chão e, ao observar suas mãos, parece desacreditada.
Ao comprimir os lábios em sinal de pura frustração, percebe estar presente nos lábios o muco translúcido que cobria a mão, imediatamente o cospe e limpa a boca. Logo começa a se pôr atenta ao mordiscar os lábios e a ponta da língua, tal como se faz após regressar com uma anestesia do dentista.
Com as mãos amparadas sobre o regaço, permanece horas olhando para cima, como que se desviar o olhar um instante a faria perder sua única chance de salvação. Outra parte do tempo, dá voltas sem sair do lugar. Em claro desconforto, evita apoiar por muito tempo em um dos pés ou se mantém sentada. No fim, agacha, balança o corpo de um lado ao outro e aguarda impaciente. Até que abaixa a cabeça entre os joelhos e, por fim, cai aos prantos.
Quando as lágrimas secam, com dificuldade, agarra cascalhos ao chão e os atira para cima, mal alcança a metade da altura para caírem de volta sobre ela. Para e cobre a boca com as mãos, para logo se deitar novamente em posição fetal.
Observa as pequenas pedras que cobrem seu leito, mescladas ao léu como o destino ordenara. Sem mexer mais que a distância do braço, alcança as arredondadas e ordena em classe de cor, tamanho, formato, criando então um padrão decrescente. De alguma maneira, aquilo a faz sorrir.
Com o semblante menos tenso, de ombros encolhidos, blusa rasgada e pele arrepiada, desce dos entulhos. Quando a visão se acostuma com a escuridão, enxerga melhor seu entorno. Está dentro de uma imensa rede de túneis naturais ao lado de uma velha mina. O lugar inóspito faz parecer que se passaram séculos desde que alguém esteve ali. Se abraça e recua até encostar na parede iluminada por um feixe de sol. Nota que, aos poucos, a luminosidade a abandona, estufa o peito corajosa para vista acima e, sem planejar, começa a escalar. A cada meio metro, escorrega da parede de terra úmida até o lamaçal abaixo, então, tenta por outros lados, e tudo dá igual. Em uma última tentativa, finalmente alcança a camada pedrosa da parede, a parede côncava é formada de pedras calcárias que se desfazem entre seus dedos, novamente volta a deslizar até a lama ao fundo.
Quando deu por si, suas mãos sangravam, com os dedos em garra que já não respondem a sua vontade. Assim, finalmente parou.
Acima de um monte de barro e escombros, observa ao redor, só há o escuro. Chama por horas com seu grito afogado, ainda demonstrando esperança de que a ajuda chegue e a tire de dentro do imenso buraco em forma de funil invertido. Até que cada estrela que brota ao céu faz reduzir o ritmo do chamado angustiado, chegando ao ponto em que o silêncio reinou.
Sob a fraca luz da meia-lua, chuta galhos com folhas frescas para um canto até o solo seco, organiza como pode e se deita. Fecha os olhos. O zunido em sua cabeça. Constante como estática elétrica. O silêncio impossível. E, ao fundo, uma voz dizia:
— Conte a eles. Conte a eles.
Passa a noite em claro.
No pequeno apartamento, a senhora elegante, agora chorosa, é amparada pelo homem fardado, em uma nova versão, não tão feliz, da foto presa à porta da geladeira. — Senhor, tem certeza de que esses mapas não apontam um possível destino da sua filha? — perguntou quando segurou dois dos mais novos, dentro de sacos para custódia de evidências. — Minha filha é fraca! E mal está conseguindo subir uma escada. Nunca iria pedalar até qualquer um desses pontos marcados nos mapas. Sua mãe reage a essas palavras o observando com ar de preocupação e incredibilidade. Os peritos criminais já haviam investigado cada metro quadrado do lugar e dado atenção especial à mancha de sangue no carpete do quarto, além da incomum ordenação de maior a menor de tudo que havia dentro da quitinete. No quarto, entre sussurros discretos, observavam os troféus: — Modalidade "Airsoft", Asa Negra? Eu não sabia que a filha do Fantasma era competidora olímpica de tiro. — Pois é, Novato. O chefe sempre foi contra. Quer
É visível que, a essa altura, suas mãos começam a lhe causar desconforto. Em uma pequena poça cristalina sob a pedra côncava, lava os dedos afetados — os três últimos de cada mão. Em um ímpeto involuntário, treme enquanto retira o restante das farpas com a boca. Seca as feridas em uma toalha de mão e, com cautela para não movimentar os dedos afetados, a espreme, retirando o excesso de água, então, a reserva. Usando o canivete do “kit”, rasga parte de uma camisa fina em tiras e as põe para enfaixar os dedos em pior estado. Com os ferimentos protegidos, começa a agir com certa normalidade. Apanha a toalha úmida e limpa o corpo onde o barro está mais evidente, revelando parte de seu corpo, de seios pequenos e ombros de ossos salientes com largura reduzida, músculos fibrosos e pernas maiores que a média; com facilidade, pôde passar por ser mais magra e jovem do que realmente é. Senta-se sob a luz natural e verifica os outros bolsos laterais da mochila. Seus olhos acendem ao encontrar o re
Como em todas as manhãs, tosse em meio à densa fumaça que sobe e cuida para que o fogo não apague. Segue alimentando a chama até que uma fogueira média surja devidamente montada de maneira circular com a madeira ordenada de maior a menor espessura. Com a cara comprimida, se senta ao lado e evita a todo tempo apoiar o peso sobre a perna ruim. Segura acima do joelho, a coloca sobre uma elevação e assim recosta na parede de pedra. Ali come a última parte da barra de cereal, toma dois goles de água e, com as pálpebras cada vez mais pesadas, sem perceber, fecha os olhos. Em seus sonhos, adentra lembranças profundas. Estava na caminhada com os amigos em meio à floresta, quando preferiu outra rota e se afastou solitária. Acaba por avistar homens armados, que trajam, de peito estufado, um conhecido colete, símbolo de traficantes da região. Congela ao reconhecer o rosto de um deles, o mesmo visto em pastas policiais que esmiuçou secretamente na casa do pai e que, ao folhear os arquivos, fico
Desperta ansiosa ao início da tarde. Se põe a coletar pedras perfeitamente redondas e ordená-las, um comportamento obsessivo, mas que parece manter sua sanidade. Até que dois dos habitantes obscuros saltam das sombras engendrados em uma disputa. Cada um preso a uma das extremidades da carcaça do que fora o primata abatido noites passadas. Puxam, sacodem e exigem o direito de terminar de devorar os últimos restos de ossos presos à cartilagem, articulações e troços da pelagem marrom de onde pendiam de um lado parte da cabeça; do outro, a cauda, tendo na linha média as quatro patas, que são agitadas de um lado ao outro ao léu. Um deles, pequeno e determinado, disputa com o mais antigo o dobro de seu tamanho, fazendo Danu erguer as sobrancelhas ao reconhecer que lhe falta parte de uma das magníficas antenas, e é ele o dono original da presa. Por um segundo, ela vê seu próprio ser tomar o lugar do animal e, arrebatada pelo pânico, cai para trás, sobre a pilha de lenha que havia criado, e t
Tem a cabeça do perdedor ostentado na ponta da lança enquanto alimenta com mais madeira a chama que quase se extingue. Nessa manhã e nas outras seguintes, o vômito matutino cessara. Abraça os joelhos e observa o círculo luminoso acima. Está em um dia de ar pesado; seu tornozelo aparenta estar menos inchado, contudo, ainda resmunga ao apoiar o peso do corpo sobre ele. Abre o frasco laranja e traga outros dois comprimidos. *Silêncio* Se ocupa de juntar mais lenha quando algo acima lhe chama a atenção. Abaixo da entrada, tenta gritar até que sua face se pôs vermelha, respira cansada e enfim para. Ri seco, parecendo conversar consigo mesma enquanto gesticula com as mãos. Arfa sem ar e se senta. Quando o Sol atinge o centro do sumidouro, é possível ver as ondas de calor emanando das pedras ao redor. Com o cabelo aderido à testa e a blusa branca colada ao corpo, a essa altura, já bebeu mais água do que fracionara para o dia. Da pele exposta, onde antes ossos saltavam salientes, agora sã
Nervosamente esfrega os dedos sobre o bloqueio da tela até que se dá por vencida, pois sua digital não é aceita, tendo acesso apenas à data, hora e lanterna. Carga da bateria em 94% e sem sinal da operadora telefônica para qualquer tipo de chamada de emergência. De onde está é possível ver o rádio acima, perto da borda exterior. Quando a onda de euforia passa, respira pesado e um silêncio absoluto toma conta do lugar. Senta-se ao canto e, calada, encara a escuridão, não se mexe por várias horas e acaba por adormecer sentada em um estreito em “V” na pedra. Acorda com o som que remete ao gotejar d’água, o ruído ecoa ao fundo e a atrai como se dali transbordara um rio vindo desde as passagens artificiais. Traga seco e vira o olhar para suas reservas, estão vazias há dias. Põe um seixo na boca para estimular a salivação e, com ar de séria preocupação, se senta e espera... Nesse dia, come sem fome a última das quatro partes do primeiro sonho açucarado e o engole se
Sempre há uma dívida a ser paga. E os humanos endividados nunca se veem livres, muito pelo contrário, acabam por trabalhar mais para conseguir estar a salvo de suas dívidas. Entretanto, para esse processo necessitam gerar outras dívidas, e a liberdade que tanto almejam se torna cada vez mais distante. Por isso, desde que com eles nasci, passei a observá-los, uns mais que outros, confesso. E foi um fato deveras curioso quando borbulhou o tema: “caçarola do inferno”. Definição dada pelos moradores dessa interessante cidade diante dos danos resultados da enchente nas últimas semanas. De tantos lugares para habitar, escolheram urbanizar a baixada, por onde cruza um grande rio, abastecido por córregos e afluentes menores que provêm da mata nativa típica de topografia acidentada, dominante nesta região. Faz duas décadas desde que os moradores viram uma monção tão forte, e a deste ano teve a força para transbordar o rio principal ao ponto de tomar metade da cidade. Casas construídas a esmo
Algumas quadras desde a delegacia. Em uma das quinas do teto branco de um quarto particular, no principal hospital da cidade, na cama, a senhora elegante encara de cenho franzido em sinal de desafio frente ao pertinaz despontar da formação sinistra. Recosta aos travesseiros e diz: — Desapareça daqui! Oras! Não é agora e nem nunca que comerá o meu juízo... — resmunga, apontando o dedo. Talvez só precise de um pouco mais de sua indignidade, Lúcia — a presença obscura estreita os olhos. Até que... de rompante a porta do quarto abre. — Mãe! — Ainda uniformizado, em disparada, como se fosse parar o tráfego. — A cuidadora disse que a senhora parou de comer e te internaram! Está querendo morrer? Elegante como uma estátua de mármore somente revira os olhos. — Ah! José! Sabe muito bem que Marilinda é uma mulher exagerada! Apenas tive um episódio infeliz com minha gastrite. Agora já posso comer, o doutor ajustou a dosagem do meu medicamento... Senta-se na cama, ao lado da mãe. Como se ig