Sempre há uma dívida a ser paga. E os humanos endividados nunca se veem livres, muito pelo contrário, acabam por trabalhar mais para conseguir estar a salvo de suas dívidas. Entretanto, para esse processo necessitam gerar outras dívidas, e a liberdade que tanto almejam se torna cada vez mais distante. Por isso, desde que com eles nasci, passei a observá-los, uns mais que outros, confesso. E foi um fato deveras curioso quando borbulhou o tema: “caçarola do inferno”. Definição dada pelos moradores dessa interessante cidade diante dos danos resultados da enchente nas últimas semanas. De tantos lugares para habitar, escolheram urbanizar a baixada, por onde cruza um grande rio, abastecido por córregos e afluentes menores que provêm da mata nativa típica de topografia acidentada, dominante nesta região. Faz duas décadas desde que os moradores viram uma monção tão forte, e a deste ano teve a força para transbordar o rio principal ao ponto de tomar metade da cidade. Casas construídas a esmo
Algumas quadras desde a delegacia. Em uma das quinas do teto branco de um quarto particular, no principal hospital da cidade, na cama, a senhora elegante encara de cenho franzido em sinal de desafio frente ao pertinaz despontar da formação sinistra. Recosta aos travesseiros e diz: — Desapareça daqui! Oras! Não é agora e nem nunca que comerá o meu juízo... — resmunga, apontando o dedo. Talvez só precise de um pouco mais de sua indignidade, Lúcia — a presença obscura estreita os olhos. Até que... de rompante a porta do quarto abre. — Mãe! — Ainda uniformizado, em disparada, como se fosse parar o tráfego. — A cuidadora disse que a senhora parou de comer e te internaram! Está querendo morrer? Elegante como uma estátua de mármore somente revira os olhos. — Ah! José! Sabe muito bem que Marilinda é uma mulher exagerada! Apenas tive um episódio infeliz com minha gastrite. Agora já posso comer, o doutor ajustou a dosagem do meu medicamento... Senta-se na cama, ao lado da mãe. Como se ig
Come a última metade da pequena maçã e observa ao redor. Não era a primeira vez que vasculhava e, em nenhum momento, encontrou formigas, aranhas, morcegos, larvas ou qualquer outra forma de vida que não fossem as árvores que caíram e as criaturas que se escondiam entre as sombras naquele lugar. Em uma de suas mãos, tinha todo o tempo o cantil ainda cheio com a água do alagado de outro dia. *Silêncio do tipo que ecoa no ouvido* No frasco laranja solitário sobre uma das pedras, restavam apenas oito pastilhas azuis. Um dia, curiosa, como se maquinasse algo, resolveu subir o declive que leva para as cavernas naturais. Quando parou na entrada, todos os pelos de seu corpo eriçaram. O som que saía dali era rítmico, baixo e agudo, como se essa parte da caverna respirasse. Estremece e recua até seu refúgio. Com o tênis posto a secar, veste uma roupa leve e inicia a rotina de recolher galhos e troncos dos escombros, até que encontra um emaranhado de cipó espinhoso de superfície cerosa difere
E ali, por várias vezes, tenta escalar de volta, mas tudo que consegue é retornar abaixo, por mais que tente se agarrar, a subida íngreme e o peso extra a fazem deslizar. Pensativa, roda em círculos, até que para e começa a juntar pedregulhos sobre a base, pedra sobre pedra, as apoia sobre o declive côncavo até criar uma improvisada escada tombada. De frente para a “3bD”, decide seguir pelo outro caminho, o marca como “3bE” e prossegue para o túnel até que o espaço se torna tão estreito que se vê obrigada a caminhar de lado. Em um ponto, a passagem enfunila de tal modo que só a permite seguir a espessura do corpo, deixa a mochila ao chão e derruba vigas de madeira para conseguir espaço para prosseguir. Então, mais à frente, repetiu o processo outra vez mais, indo para a direita, onde anotou “4bD”. Com a tocha, ilumina uma grande abertura, ao chão, há velhos uniformes laranjas espalhados, tais como a do invasor devorado. Verifica o lugar, e não encontra nada útil, segue adiante até ch
Amanhece, Danu ainda balbucia, observando o monte ordenado de pedras. Perdida em sua mente, recordações desdobram uma de cima de outras mais profundas como a casca de cebola. Inflama uma versão dela mesma eternamente escondida em um pequeno armário apertado, tendo como única visão a proporcionada por uma fresta entre as portas, e de dali observa o vulto do homem alto buscando-a. Somado a isso, havia uma Danu mais crescida e se apresenta em outra realidade ajoelhada, cercada de memórias estilhaçadas, como o vidro da janela às margens da consciência. Peça por peça, junta os cacos, a dor ao tocar as pontas afiadas se faz presentes a cada instante. São as recordações que lhe deformam a face: revive a continuação do dia da caminhada na floresta. Oculta na vegetação da mata, de uma forma covarde, segue até onde os captores levam seus amigos. Vê que entram em uma caverna, cuja localização busca relembrar há meses e demarcara um sem-número de possibilidades em todos os mapas sobre a mesa da
Como se estivesse preso sob pressão, uma espécie de gás marrom escapa de dentro, contorce o nariz e se põe apreensiva. Escolhe um longo pavio de cipó ceroso e o pôs no orifício por onde o projétil atravessara e, então, o acende. Afastada e aguarda o fogo consumir lentamente o cipó. Espera por quase meia hora, quando, por fim, lentamente adquire coragem para voltar e empurrar uma abertura na porta. O ar do lugar a faz tossir e tapar o nariz. Se afasta, retira a blusa regata e a faz de meia máscara que cobre nariz e boca. Agora, com toda a força, termina de abrir a porta emperrada a pontapés. Com a entrada escancarada, o restante de uma névoa café escapa sem pressa. Cautelosa, ilumina o local. Logo na entrada, desbaratadas latas e caixas de papelão vazias preenchem velhas prateleiras de madeira. Então segue para o outro extremo do recinto, onde encontra empilhados uns sobre os outros pacotes e mais pacotes do mesmo pó branco espalhado afora, suficiente para construir uma parede. Então,
Aproveita a recém-calmaria e, em um passo de cada vez, segue para fora do refeitório quando então um borbulhar inquieto de pura escuridão toma a luz ao fim do túnel — outra revoada retornava. Quase não teve tempo de abaixar e se proteger atrás da mochila. Enquanto passavam, perde as contas de quantos trombam contra seu capacete e, ao dar a volta, dá de cara com um deles pousados ao chão. O reconhece de imediato — é o batedor —, ele está em busca das manchas rubras e frescas, concentrado demais em drená-las para notar a presença da mulher. Foi então que as sobrancelhas de Danu erguem-se ao perceber tratar de seu próprio sangue quando finalmente se dá conta do ferimento no braço. Agachada, recua até bater com a mochila na parede, rasga uma tira da blusa e a amarra sobre o corte vívido. O animal insidioso agita as asas e, com suas longas patas, começa a se aproximar. Nesse mesmo tempo, Danu, cautelosa e sem desviar a atenção dele, se afasta caminho acima. Nesse hiato, um fio de água at
Sem dizer uma palavra, ela sorri, vira e segue para dentro da gruta. Danu grita seu nome repetidas vezes, mas o som já não sai de sua boca. Por mais rápido que a persiga, mais rápido ela se distancia. Estende a mão várias vezes para a agarrar, sempre a um fio de alcançá-la. Em um dado momento, tropeça, caindo em meio ao pó e ali permanece. De onde está, ergue a cabeça e arregala os olhos, o que enxerga abaixo é um círculo perfeito de pedras arredondadas, tendo ao centro uma larga e plana com a superfície preenchida de inscrições talhadas. Pressiona o ferimento no braço, abaixa a cabeça e se põe de pé. Ao olhar novamente para o monumento, assusta-se de tal forma que a faz desequilibrar e deslizar abaixo. Quando seus pés tocam o fundo, aperta os olhos, como se estivesse tentando concentrar-se no que era real. Ao olhar novamente, sua boca abre em espanto. Parado ao lado da pedra com inscrições, há a figura em negro do homem alto, trajando chapéu, o mesmo ser que a perseguia em seus pes