Desperta ansiosa ao início da tarde. Se põe a coletar pedras perfeitamente redondas e ordená-las, um comportamento obsessivo, mas que parece manter sua sanidade. Até que dois dos habitantes obscuros saltam das sombras engendrados em uma disputa. Cada um preso a uma das extremidades da carcaça do que fora o primata abatido noites passadas. Puxam, sacodem e exigem o direito de terminar de devorar os últimos restos de ossos presos à cartilagem, articulações e troços da pelagem marrom de onde pendiam de um lado parte da cabeça; do outro, a cauda, tendo na linha média as quatro patas, que são agitadas de um lado ao outro ao léu. Um deles, pequeno e determinado, disputa com o mais antigo o dobro de seu tamanho, fazendo Danu erguer as sobrancelhas ao reconhecer que lhe falta parte de uma das magníficas antenas, e é ele o dono original da presa. Por um segundo, ela vê seu próprio ser tomar o lugar do animal e, arrebatada pelo pânico, cai para trás, sobre a pilha de lenha que havia criado, e t
Tem a cabeça do perdedor ostentado na ponta da lança enquanto alimenta com mais madeira a chama que quase se extingue. Nessa manhã e nas outras seguintes, o vômito matutino cessara. Abraça os joelhos e observa o círculo luminoso acima. Está em um dia de ar pesado; seu tornozelo aparenta estar menos inchado, contudo, ainda resmunga ao apoiar o peso do corpo sobre ele. Abre o frasco laranja e traga outros dois comprimidos. *Silêncio* Se ocupa de juntar mais lenha quando algo acima lhe chama a atenção. Abaixo da entrada, tenta gritar até que sua face se pôs vermelha, respira cansada e enfim para. Ri seco, parecendo conversar consigo mesma enquanto gesticula com as mãos. Arfa sem ar e se senta. Quando o Sol atinge o centro do sumidouro, é possível ver as ondas de calor emanando das pedras ao redor. Com o cabelo aderido à testa e a blusa branca colada ao corpo, a essa altura, já bebeu mais água do que fracionara para o dia. Da pele exposta, onde antes ossos saltavam salientes, agora sã
Nervosamente esfrega os dedos sobre o bloqueio da tela até que se dá por vencida, pois sua digital não é aceita, tendo acesso apenas à data, hora e lanterna. Carga da bateria em 94% e sem sinal da operadora telefônica para qualquer tipo de chamada de emergência. De onde está é possível ver o rádio acima, perto da borda exterior. Quando a onda de euforia passa, respira pesado e um silêncio absoluto toma conta do lugar. Senta-se ao canto e, calada, encara a escuridão, não se mexe por várias horas e acaba por adormecer sentada em um estreito em “V” na pedra. Acorda com o som que remete ao gotejar d’água, o ruído ecoa ao fundo e a atrai como se dali transbordara um rio vindo desde as passagens artificiais. Traga seco e vira o olhar para suas reservas, estão vazias há dias. Põe um seixo na boca para estimular a salivação e, com ar de séria preocupação, se senta e espera... Nesse dia, come sem fome a última das quatro partes do primeiro sonho açucarado e o engole se
Sempre há uma dívida a ser paga. E os humanos endividados nunca se veem livres, muito pelo contrário, acabam por trabalhar mais para conseguir estar a salvo de suas dívidas. Entretanto, para esse processo necessitam gerar outras dívidas, e a liberdade que tanto almejam se torna cada vez mais distante. Por isso, desde que com eles nasci, passei a observá-los, uns mais que outros, confesso. E foi um fato deveras curioso quando borbulhou o tema: “caçarola do inferno”. Definição dada pelos moradores dessa interessante cidade diante dos danos resultados da enchente nas últimas semanas. De tantos lugares para habitar, escolheram urbanizar a baixada, por onde cruza um grande rio, abastecido por córregos e afluentes menores que provêm da mata nativa típica de topografia acidentada, dominante nesta região. Faz duas décadas desde que os moradores viram uma monção tão forte, e a deste ano teve a força para transbordar o rio principal ao ponto de tomar metade da cidade. Casas construídas a esmo
Algumas quadras desde a delegacia. Em uma das quinas do teto branco de um quarto particular, no principal hospital da cidade, na cama, a senhora elegante encara de cenho franzido em sinal de desafio frente ao pertinaz despontar da formação sinistra. Recosta aos travesseiros e diz: — Desapareça daqui! Oras! Não é agora e nem nunca que comerá o meu juízo... — resmunga, apontando o dedo. Talvez só precise de um pouco mais de sua indignidade, Lúcia — a presença obscura estreita os olhos. Até que... de rompante a porta do quarto abre. — Mãe! — Ainda uniformizado, em disparada, como se fosse parar o tráfego. — A cuidadora disse que a senhora parou de comer e te internaram! Está querendo morrer? Elegante como uma estátua de mármore somente revira os olhos. — Ah! José! Sabe muito bem que Marilinda é uma mulher exagerada! Apenas tive um episódio infeliz com minha gastrite. Agora já posso comer, o doutor ajustou a dosagem do meu medicamento... Senta-se na cama, ao lado da mãe. Como se ig
Come a última metade da pequena maçã e observa ao redor. Não era a primeira vez que vasculhava e, em nenhum momento, encontrou formigas, aranhas, morcegos, larvas ou qualquer outra forma de vida que não fossem as árvores que caíram e as criaturas que se escondiam entre as sombras naquele lugar. Em uma de suas mãos, tinha todo o tempo o cantil ainda cheio com a água do alagado de outro dia. *Silêncio do tipo que ecoa no ouvido* No frasco laranja solitário sobre uma das pedras, restavam apenas oito pastilhas azuis. Um dia, curiosa, como se maquinasse algo, resolveu subir o declive que leva para as cavernas naturais. Quando parou na entrada, todos os pelos de seu corpo eriçaram. O som que saía dali era rítmico, baixo e agudo, como se essa parte da caverna respirasse. Estremece e recua até seu refúgio. Com o tênis posto a secar, veste uma roupa leve e inicia a rotina de recolher galhos e troncos dos escombros, até que encontra um emaranhado de cipó espinhoso de superfície cerosa difere
E ali, por várias vezes, tenta escalar de volta, mas tudo que consegue é retornar abaixo, por mais que tente se agarrar, a subida íngreme e o peso extra a fazem deslizar. Pensativa, roda em círculos, até que para e começa a juntar pedregulhos sobre a base, pedra sobre pedra, as apoia sobre o declive côncavo até criar uma improvisada escada tombada. De frente para a “3bD”, decide seguir pelo outro caminho, o marca como “3bE” e prossegue para o túnel até que o espaço se torna tão estreito que se vê obrigada a caminhar de lado. Em um ponto, a passagem enfunila de tal modo que só a permite seguir a espessura do corpo, deixa a mochila ao chão e derruba vigas de madeira para conseguir espaço para prosseguir. Então, mais à frente, repetiu o processo outra vez mais, indo para a direita, onde anotou “4bD”. Com a tocha, ilumina uma grande abertura, ao chão, há velhos uniformes laranjas espalhados, tais como a do invasor devorado. Verifica o lugar, e não encontra nada útil, segue adiante até ch
Amanhece, Danu ainda balbucia, observando o monte ordenado de pedras. Perdida em sua mente, recordações desdobram uma de cima de outras mais profundas como a casca de cebola. Inflama uma versão dela mesma eternamente escondida em um pequeno armário apertado, tendo como única visão a proporcionada por uma fresta entre as portas, e de dali observa o vulto do homem alto buscando-a. Somado a isso, havia uma Danu mais crescida e se apresenta em outra realidade ajoelhada, cercada de memórias estilhaçadas, como o vidro da janela às margens da consciência. Peça por peça, junta os cacos, a dor ao tocar as pontas afiadas se faz presentes a cada instante. São as recordações que lhe deformam a face: revive a continuação do dia da caminhada na floresta. Oculta na vegetação da mata, de uma forma covarde, segue até onde os captores levam seus amigos. Vê que entram em uma caverna, cuja localização busca relembrar há meses e demarcara um sem-número de possibilidades em todos os mapas sobre a mesa da