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Ao pé de uma cadeia de colinas avermelhadas de arenito, um casebre de tijolos de terra crua e palha se assemelhava a uma grotesca caverna. Uma solitária tamareira sombreava a entrada da porta de madeira já gasta pelo tempo, pequenas janelas haviam sido esculpidas nas laterais que se projetavam da pedra, cobertas com pele grossas e secas de animais.

Ao pé de uma cadeia de colinas avermelhadas de arenito, um casebre de tijolos de terra crua e palha se assemelhava a uma grotesca caverna. Uma solitária tamareira sombreava a entrada da porta de madeira já gasta pelo tempo, pequenas janelas haviam sido esculpidas nas laterais que se projetavam da pedra, cobertas com pele grossas e secas de animais.

Amara Al Jabri amarrou as rédeas do cavalo no caule da tamareira com um laço firme, acariciou o pelo do animal com a ponta dos dedos e andou em direção à entrada de seu casebre para trazer água para cansado cavalo que acabara de roubar. Apesar de velho, era um animal bem cuidado e sadio, para a moça era uma grande surpresa que tenha encontrado algo tão valioso em meio ao deserto, indicando pertencer a alguém abastado. Sentiu certa pena do homem que deixou sozinho em sua pequena armadilha de viajantes, não sentia orgulho algum de roubar, mas eram tempos difíceis. Sobretudo para uma jovem solitária.

Desde a morte do pai, não lhe restara muito a não ser o pequeno casebre erguido pelas mãos de seu genitor e um poço quase seco há dois quilômetros de distância de casa. As aldeias eram lugares perigosos para uma garota como ela, lhe disse o pai certa vez, Amara tinha consciência de sua ascendência forasteira, os olhos azuis e pele mais clara entregavam a sua origem, filha de mãe beduína e pai vindo de um reino da Hispânia.

A mãe pouco chegou conhecer, morrera quando Amara tinha apenas dois anos devido a uma febre hostil, em seu leito de morte afirmara que a doença que lhe acometera era fruto de uma maldição rogada pela família ao fugir com o forasteiro. Arrependida de suas escolhas, renegou a pequena filha nos seus dias finais e definhou depressa, o pai enterrou-a há poucos metros da casa, fundo o bastante para que o vento do deserto não a desenterrasse jamais. Ele disse à filha que as palavras duras de sua mãe eram apenas fruto dos delírios provocados pela doença, Amara nunca soube a verdade.

Preferia acreditar no pai, afinal de contas, teve somente o homem ao seu lado por todos esses anos.

Ao entrar no casebre, a garota encheu uma tigela de barro em um dos seus jarros de terra vermelha tão grandes quanto uma criança, prendeu os cabelos para trás e retirou o lenço de seu rosto. Voltou a área externa carregando a tigela de barro com cuidado, depositou-a sobre a areia bem à frente do cavalo e retornou ao interior da casa, os sapatos de couro batido se arrastando pela areia quente até a porta.

No interior, uma torcera de vistosa de flores cor-de-rosa crescia entre as pedras de um canteiro improvisado, iluminadas pelos raios de sol em um brilho esplêndido. De base grossas como vasos de cerâmica, a rosa do deserto possui caules que se afinam em direção ao topo, onde flores pequenas e estreladas de um rosa-claro sobrepondo o branco em suas pétalas delicadas. Amara sempre gostou das flores, e as rosas do deserto eram as únicas que floresciam no clima árido extremo de onde escolheu permanecer.

Haviam torceras ao redor de toda a casa, eram como o seu pequeno segredo colorido em meio a falta de cores que seus dias se resumiam. Além disso, se identificava profundamente com aquelas flores, que por fora podiam parecer delicadas e inofensivas como uma brisa fresca, mas que seu veneno mortal poderia derrubar até mesmo elefantes. Amara não demorou muito para descobrir que as rosas do deserto não serviam somente de ornamento, logo, o veneno das rosas lhe serviu para caçar pequenos lagartos e pássaros, e com o passar do tempo, humanos.

Teve de aprender sozinha como se defender às condições adversas, quando o pai se foi só lhe restou o medo do mundo lá fora que mal poderia esperar para ferir e consumi-la. Transformou o medo em coragem e a utilizou para sobreviver da melhor forma, com tudo que o pai havia lhe ensinado, era capaz de se proteger com uma afiada faca e uma zarabatana recheada de espinhos coberto pelo veneno das rosas que extraía com muito cuidado.

Amara sentou-se sobre o tapete gasto no chão do único cômodo do casebre e espalhou sobre ele tudo que havia obtido do viajante que abordara no deserto. Tocou as bolsas de couro retraída, um tanto receosa, ainda tinha a mesma sensação amarga na boca quando terminava uma caçada, realizava uma pequena oração desculpando-se com o seu deus, em seguida analisava com cautela o que havia conseguido.

Descobriu depressa que o cavalo não foi nem de perto o melhor que pôde obter naquele dia, ao analisar as sacolas de moedas douradas, os olhos brilharam incrédulos. Havia mais ouro em suas mãos agora do que jamais um dia veria em sua vida, talvez nem fosse necessário vender o cavalo, havia o bastante para sobreviver confortavelmente pelos próximos anos. Talvez o bastante até mesmo para ir embora em busca de uma vida menos sofrida no deserto.

Estava cansada demais. Cansada de tudo o que fazia, que apesar de uma escolha, era melhor que deixar ser capturada e vendida como escrava em alguma aldeia. Por isso, sempre que se afastava de casa, usava-se das vestes mais pesadas do pai e cobria o rosto, lhe confundiam com um menino jovem aonde quer que fosse. Só assim era possível obter suprimentos e um pouco de incenso nas feiras. Era necessário arriscar, já sabia imitar todos os trejeitos masculinos e disfarçar suas curvas femininas bem delineadas com uma ou mais túnicas pesadas.

Fazia o que tinha de fazer.

O relinchar do corcel lhe tirou de seus pensamentos instantaneamente. Amara agarrou o punhal que descansava em sua cintura e correu para fora alarmada. A velha tamareira sacudia severamente com os guinchos do animal, que por algum motivo, havia pisado sobre a tigela de barro e a transformado em uma dezena de pedaços. A água secava pela areia que parecia chiar, o cavalo bufou resfolegante e bateu os cascos contra o chão levantando uma fina camada de poeira que pairou no ar.

Confusa, afastou-se da porta e se aproximou do animal tentando acalmá-lo, não pareceu surtir nenhum efeito.

— Venha — Murmurou ela baixinho com seus passos lentos em direção ao corcel — Está seguro aqui, meu amigo.

Uma mão agarrou o pescoço da jovem bruscamente e a arrebatou para trás com um solavanco. Amara gritou.

— Eu não acreditaria em nenhuma das palavras desta moça. — Respondeu Riad segurando-a pelo pescoço e pelos punhos, impedindo-a de avançar.

— Você... — Falou surpresa — Como chegou até aqui?!

O sultão sorriu apertando um pouco mais o seu toque contra a pele da jovem mulher, suas mãos firmes pareciam feitas de rocha. Em choque, Amara travou o seu corpo sentindo o calor daquelas mãos contra a sua pele, jamais havia sido seguida até em casa, somente a mais remota possibilidade fazia o seu sangue congelar. Em anos de caça, nunca um homem ousou seguir em seu encalço, sua casa era terreno sagrado, tomava cuidado por todo o caminho para que não houvessem pistas.

Como ele havia o feito? Como a seguira até ali? Cobrira suas pegadas, seguiu pelo caminho mais longo e tortuoso, precaveu-se minuciosamente, pois sabia que qualquer descuido custaria a sua vida. E agora, lá estava ela, nos braços de um estranho prestes a ser castigada por seus atos infames. Inabalável, o homem aproximou o rosto do pé da orelha da moça, seus lábios roçando entre os seus cabelos escuros e na ponta de sua orelha, fazendo-a se arrepiar.

— Se lhe contar os meus métodos, serei obrigado a matá-la. — ameaçou — Diga-me, Amara, como prefere que ocorra o seu fim?

Ela sacudiu a cabeça contrariada.

— Faria mesmo mal a uma jovem mulher desprotegida, meu senhor?

— Não cairei em tuas mentiras mais uma vez. Acredita mesmo que sou assim tão tolo?

— Foi tolo o bastante para cair uma vez — Argumentou a jovem se remexendo inutilmente de uma lado para o outro na tentativa falha de soltar-se — Não pode me julgar por minha persistência. Não posso fazer nada, não posso lhe fazer mais nenhum mal, seria covarde de sua parte ferir a mim sem qualquer oportunidade de defesa.

Riad não conseguiu conter uma risada. Sua garganta estava seca, era como se houvesse engolido um punhado de areia de uma só vez, ainda estava levemente tonto e enxergava embaçado, mas não hesitou.

— Tem tempo o bastante para se defender, não é problema meu se não consegue se desvencilhar. O que foi que injetou em mim? Que tipo de veneno corre agora em meu sangue?

— Jamais saberá se me matar. Tente a sorte, se gosta de um desafio, estou certa que será instigante descobrir se viverá ou não até o anoitecer.

— Não brinque com a sorte — O sultão apertou sua mão contra o pescoço fino e macio da mulher — Se eu morrer, tenha certeza de que morrerá junto a mim.

E então soltou-a, fazendo com que a jovem cambaleasse pela areia até cair sobre o chão apoiando-se em ambas as mãos. Olhou-o de relance e sorriu, era divertido ver o desespero que lentamente crescia no rosto do homem, mas, ao mesmo tempo, o desespero também salientava em seu peito de forma alarmante. Bateu as mãos cortadas pela queda contra o se vestido e se ergueu sob os seus calcanhares depressa.

— É veneno de rosa do deserto. — Ela comunicou soprando para longe uma mecha de cabelo do rosto — Mas não em quantidade o suficiente para lhe matar. Por mais que gostaria, não mato a quem roubo, tampouco roubo por que gosto. Ou roubo, ou sucumbo à fome como tantos outros agora, há pessoas morrendo de fome por toda a parte, estou sozinha neste mundo onde a guerra não nos permite existir.

Riad semicerrou os olhos desconfiado, olhou para a mulher sem saber se deveria ou não acreditar em suas palavras. Seria necessário correr o risco.

— Sabe que os teus crimes lhe resultariam no apedrejamento até a morte? Tenho o dever moral de não permitir que saia impune, por mais que me compadeça por suas razões. Tua brincadeira poderia ter resultado na morte de muitos outros inocentes.

— Os homens nunca são inocentes. — Amara sorriu de forma amarga — Se fará justiça, apenas acabe com o meu sofrimento aqui mesmo.

Riad continuou a observá-la, ergueu as suas grossas sobrancelhas surpreso pela audácia da jovem mulher, não havia visto tamanha coragem nem mesmo em guerreiros aos quais conheceu por sua jornada. Era o suficientemente corajosa para aceitar a morte rápida por seus pecados, as mulheres não costumavam cultivar tanta determinação em seu tempo, qualquer um postergaria a morte e tentaria barganhar pela vida, era inerente ao instinto humano.

Além disso, a mulher não fazia ideia de quem Riad era de fato, estava completamente alheia de sua autoridade ou posição. Era tão ignorante quanto uma pedra, vivia a margem de toda a civilização como um animal selvagem, sobrevivendo por puro ímpeto. Tinha de admitir para si mesmo, estava perdidamente fascinado pela audácia dela, Amara havia sido o acontecimento mais interessante pelo qual esbarrara nos últimos anos, desde que largara de lado a sua paixão marítima.

— Não a machucarei, assim como lhe disse desde o primeiro instante.

— Não? — Suspirou ela aliviada.

— Tem a minha palavra. — Respondeu sério — Mas não posso permitir que continue a exercer sua atividade criminosa. A levarei comigo.

Amara meneou a cabeça e arregalou os olhos, a possibilidade de deixar sua casa, a única casa que conheceu, era assustadora. Era lá onde os corpos de seus pais descansavam naquele solo árido sem vida, ela lá onde aprendera a viver e a dar os primeiros passos. Antes que fosse necessário reagir, o homem envolveu os punhos da jovem com uma corda, as mesmas cordas que Amara havia deixado para trás em sua rápida fuga da armadilha no deserto, quis gritar pela ironia de tal acontecimento.

Sentiu-se humilhada, completamente vencida. Ergueu os olhos até o rosto do homem que lhe capturara feito um cavalo indomado e franziu o cenho, os olhos castanhos de Riad foram de encontro aos dela, Amara sentiu um arrepio.

— Me levará para onde? Não pertenço a lugar algum que não seja esta terra. Apenas me mate, ninguém jamais saberá.

Riad sorriu com o canto dos lábios, seu bigode se curvando engraçadamente nos cantos. Apertou o laço da corda nos punhos da jovem e a prendeu a ele. Estavam unidos por todo o caminho, e sultão precisava retornar quanto antes, não tinha tempo a perder.

— Eu saberei. E minha consciência já não suportaria mais nenhuma morte, menina.

Amara calou-se, a vergonha em seu rosto era visível. Sem desperdiçar nem mais um segundo, o sultão recolheu os seus pertences do casebre da jovem mulher e os retornou para o lombo de seu animal. Com o seu ouro de volta e o cavalo em sua posse, partiu tendo Amara como sua prisioneira. Havia um longo caminho pela frente, teria tempo o bastante para decidir o que fazer com aquela jovem flor do deserto em sua posse.

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